Feminismo não é só empoderamento individual, é luta coletiva
O próprio fato de ser mulher num mundo de homens nos empurra a uma condição feminista, mesmo que muitas não se percebam assim.
O dicionário da editora Merriam-Webster’s elegeu “feminismo” como a palavra do ano em 2017, tendo sido a mais pesquisada em seus registros. No mundo todo as mulheres estão quebrando o silencio e exigindo igualdade, respeito e dignidade.
No Brasil tivemos um ano marcado pela luta das mulheres, desde os expressivos protestos de 8 de março até a participação ativa da mobilização das mulheres contra a reforma da Previdência – o que contribuiu para enfraquecer o governo, que precisou adiar a votação para fevereiro. A inacreditável PEC do Cavalo de Troia, que tenta criminalizar o aborto até mesmo nos casos em que já é permitido no Brasil, também provocou uma forte reação das mulheres, principalmente nas redes sociais.
É neste marco que estamos próximos de comemorar, em Porto Alegre, um ano de atividades da Emancipa Mulher: uma escola de formação feminista e resistência antirracista. Desde abril do ano passado, realizamos mais de 200 horas de atividades, envolvendo mais de 300 mulheres nas aulas fixas e nos eventos abertos ao público em geral.
O nosso primeiro curso, idealizado e ministrado pela Joanna Burigo e pela Winnie Bueno, foi batizado de “Laudelina de Campos Mello”, não por acaso.Nossa intenção foi homenagear esta mulher negra que foi uma lutadora pelos direitos das mulheres e das empregadas domésticas, fundadora do primeiro sindicato de trabalhadoras domésticas do Brasil. Entendemos que classe, raça e gênero são vivenciados por mulheres de formas diferentes, e as implicações das discriminações múltiplas se aprofundam para as mulheres pobres e negras. Por isso talvez vocês nunca tenhma ouvido falar da Laudelina. No Brasil, 94% das pessoas que fazem trabalho doméstico são mulheres e a conquista de direitos trabalhistas para este segmento é muito recente.
O feminismo que buscamos fortalecer com a Emancipa Mulher é interseccional. Kimberlé Williams Crenshaw foi a primeira a utilizar este termo, em 1991, em pesquisa sobre violências vividas por mulheres não brancas nos Estados Unidos. A interseccionalidade estuda não só o fato de ser mulher, mas ao mesmo tempo o fato de ser negra, ou LGBT, trabalhadora, explorada, buscando capturar as consequências da interação entre as diferentes formas de subordinação. O racismo estrutural da sociedade se projeta sobre as mulheres negras de forma brutal, e as consequências estão evidenciadas em todas as estatísticas que demonstram que as mulheres negras vivem dificuldades ainda maiores para acessar educação, saúde, moradia e emprego. São também as maiores vítimas da violência.
Recentemente o dia 9 de janeiro marcou o aniversário de Simone de Beauvoir.Uma pensadora à frente de seu tempo, que abriu o caminho para muitas que vieram depois. Sua célebre frase que diz que “não se nasce mulher, torna-se” pode ser muito bem adaptada para a própria formação feminista. Afinal nenhuma mulher nasce feminista, mas nos tornamos feministas – muitas vezes mesmo sem conhecer o termo ou ter proximidade com as leituras e a militância – com o tempo e a vivência. O próprio fato de ser mulher num mundo de homens nos empurra a uma condição feminista, mesmo que muitas não se percebam assim.
O feminismo é também uma luta pedagógica dentro do processo de emancipação das mulheres. Uma disputa que travamos através de palavras e ações pela construção de uma sociedade sem discriminação, onde o assédio seja combatido, em que não haja desigualdade salarial entre homens e mulheres e na qual a cultura do estupro possa ter fim. No Brasil, é impossível falar em todos estes problemas sem colocar a questão racial e de classe no centro do tabuleiro, pois são as mulheres negras e pobres as mais atingidas por eles – e frequentemente as mais silenciadas.
Neste ano de 2018 vamos seguir este trabalho da Emancipa Mulher, buscando cada vez mais fortalecer este feminismo interseccional, enfrentando o racismo, a LGBTfobia, o machismo e todas as formas de opressão. Para nós feminismo não é apenas uma questão de empoderamento pessoal. É uma luta coletiva e concreta: contra a violência doméstica e social, contra a divisão sexual do trabalho, por salários e direitos iguais de verdade, por creches, por saúde, por moradia e por tantos outros direitos que este sistema capitalista e patriarcal sonega às mulheres trabalhadoras. É nesta trilha que caminhamos, e seguiremos.
Artigo originalmente publicado no portal huffpostbrasil.