“A falta de solidariedade das mulheres naquele artigo me espanta”

Historiadora das mulheres francesa analisa a recente polêmica em torno de artigo escrito por artistas em resposta à onda de denúncias de casos envolvendo assédio sexual.

Michelle Perrot 17 jan 2018, 18:38

Historiadora de renome internacional, especialista na história das mulheres, professora emérita da Universidade de Paris-VII – Denis-Diderot à qual a revista ‘Critique’ consagrou um número completo em setembro de 2017, autora de ‘Minha história das mulheres’, ‘História dos quartos’ e diretora, com Georges Duby, de História das mulheres no Ocidente. Michelle Perrot faz uma análise crítica do artigo, assinado notadamente por Catherine Deneuve, de cem mulheres para “liberar outra fala” publicado no jornal francês Le Monde em 10 de janeiro.

As cem mulheres reunidas coletivamente para “liberar uma outra palavra” têm razão de querer ser contra ao “puritanismo” que apareceu, segundo elas, com o caso Weisntein?

Eu teria gostado que essas cem mulheres criadoras tivessem colocado seu conhecimento do meio artístico e midiático e seu prestígio “ao serviço” das revoltadas do #metoo, mesmo se elas não tivessem jamais tido pessoalmente caso com os “porcos”. Pode-se sentir solidário de uma injustiça sem tê-la experimentado.

A sua distância de mulheres não preocupadas, livres e triunfantes, acima do corpo a corpo, refugiadas em seu interior inexpugnável, me decepciona mais do que me choca. A sua falta de solidariedade e a sua inconsciência das violências reais sofridas pelas mulheres me espanta. Mas, sobretudo, elas dizem o que elas pensam, outras compartilham o seu ponto de vista. O debate existe. É preciso assumi-lo.

Em quais pontos você se junta a elas?

Essas mulheres chamam a atenção sobre a fronteira tênue que separa a paquera, sedução, assédio, essa zona confusa, turva, na qual os sexos se encostam, sem saber ainda se se trata do jogo, do desejo ou da captação. O imaginário, a poesia e o romance são fomentados. Isso se compreende. Mas se trata exatamente disso?

Elas recusam que o sexo forte seja totalmente assimilado aos porcos, o que não seria nem justo nem agradável para os parceiros. Elas, ou eles mesmos, desvalorizados por essa proximidade. Mas é uma questão? Certamente não.

Elas têm medo que esse protesto feminino faça regredir as fronteiras das liberdades de todas as ordens: sexual, artística, criadora. Que um moralismo retrógrado não recubra as praias descobertas e às vezes rudemente conquistadas pelo pensamento libertário, como antigamente se descobriu os nus dos afrescos de Michelangelo. Que o corpo e o sexo voltem para um mundo proibido. Que em nome da proteção das mulheres, uma inflamável ordem moral não favorize a censura contrária à invenção criadora e à livre circulação dos desejos. Desde muito tempo, as análises de Foucault desenrolaram as linhas pretas da historia da sexualidade e as armadilhas das proibições. E isso, sim, nós podemos ter medo.

Quais são os que te parecem inadmissíveis e insustentáveis?

Esses argumentos são banais, enfadonhos. Eles fazem das mulheres as eternas “prisioneiras” que impendem a dança de roda. As vítimas muito fracas para afrontar os combates da vida. Inimigas dos homens enviados “ao abatedouro”. Agora, o protesto das mulheres só seria assimilado para uma queixa que as trancaria no “estatuto de eternas vítimas”. Ao contrário, esse protesto, às vezes individual ou coletivo, faz delas atrizes que recusam e resistem a uma pressão, a uma dominação que elas não querem mais. O mal-entendido é total. Dizer “não” é justamente se afirmar como indivíduo livre.

É evidente nem todos os homens são predadores. Denunciar o abuso de alguns, de Weinstein e assimilados, não representa de jeito nenhum a “onda purificadora” de eu não sei qual Inquisição. Mas para além de alguns comparsas, a força dessa fala enfim liberada é denunciar um sistema de dominação considerado tão normal que é indecente de falar sobre ele. Um sistema que perverte a relação dos sexos que poderíamos sonhar em outros livres jogos do amor e do azar.

“Os acidentes que podem tocar o corpo de uma mulher não atingem necessariamente sua dignidade (…). Porque nós não somos redutíveis ao nosso corpo. Nossa liberdade interior é inviolável”, escreve as autoras. Isso é insuportável. Persigam-nos, nos assediem, nos violem: nós estamos além desses atentados e eles não podem nos atingir. Pensam que estão sonhando. “Nosso corpo, nós mesmas”, diziam as militantes do movimento de liberação das mulheres dos anos 1970. É o que dizem as mulheres de hoje que continuam seu combate.

Para muitas signatárias, é o desenvolvimento do “revisionismo cultural” ou a tendência em querer esconder ou retirar de circulação as obras consideradas sexistas que atiçaram a adesão a esse texto. A senhora compreende essa inquietação?

Sobre o revisionismo cultural, é preciso cocordar. Se se trata de reler as obras do passado com nosso olhos, nós fazemos isso todos os dias. Nós não podemos mais ler Céline, mesmo o magistral ‘Viagem ao Fim da Noite’, como se nada acontecesse ali.

De maneira análoga (não idêntica, é verdade), a crítica induzida pela reflexão sobre gênero nos conduz a reler de outra forma a literatura, como Catherine Clément já fez com as óperas, ou os textos filosóficos – como fez Françoise Hériter, Françoise Collin e outras. Tal leitura crítica não é somente legítima, mas necessária. Ela nos permite compreender em que sistema nós vivemos, de quais representações nós dependemos.

É legítimo querer mudar o fim da ópera Carmen? Devemos retirar um quadro de Balthus? Era necessário proibir a retrospectiva do cineasta Roman Polanski?

Em relação a censurar, esconder, até mesmo modificar as obras, literais ou pictóricas, isso seria insensato, como excluir o cigarro de Sartre de sua foto. Elas existem para sempre. Balthus é intangível, mesmo se nós o percebemos de outra forma. Os filmes de Polanski também. Precisava o convidar para abrir um festival? Aí é outra coisa. Mudar o final de Carmen? É um desafio divertido. Uma Carmen matando o toureiro, que história! Mais aí é da ordem da criação, quase da interpretação.

Essa polêmica é o reflexo de uma guerra dos feminismos, de um lado o feminismo de inspiração anglo-saxão vindo dos campos americano que ganha a França e, de outro, um feminismo “à francesa”?

Os feminismos são diversos, e há desde muito tempo uma diferença entre as duas margens do Atlântico. As estadunidenses sempre foram mais audaciosas que as francesas: MLF, Women’s Studies, Gender Studies, todos eles têm raízes nos Estados Unidos. O feminismo francês é temperado – quem sabe até apegado – numa tradição de “cortesia” e de “galanteria”, que pede para ser desconstruído enquanto que dissimula a desigualdade sob as flores.

Georges Duby já analisou o estratagema que representava a cortesia na conquista da dama. A galanteria é uma maravilhosa invenção do século das luzes, que faz das mulheres as mestras dos salões da sociedade ao recusar a igualdade em nome de uma diferença enraizada pela medicina em seus corpos. O corpo, centro de tudo, ontem e hoje, e que as mulheres tem razão de querer defender e se apropriar.

O movimento #metoo revela a “delação” ou é uma etapa decisiva na longa marcha em direção da emancipação das mulheres?

#metoo é um evento de escopo social, geográfico e geracional. Um evento de fala onde se diz sobre um sofrimento por muito tempo morto, reprimido, uma humilhação dissimulada. Ele se inscreve em um combate que começou faz tempo, mais especificamente a partir dos anos 70: luta pelo direito ao aborto, contra o estupro, contra as violências realizadas contra as mulheres no trabalho, depois na esfera conjugal, as quais as estatísticas são esmagadoras.

Através do direito ao aborto as mulheres conquistaram seu habeas corpus, o acesso a uma sexualidade livre que intensificou a consciência delas mesmas. Paralelamente, elas conquistaram a sua independência pelo trabalho (assalariado ou não). Os homens não são mais para elas senhores ou mestres, mas parceiros. A atitude de assediadores como Weinstein esta totalmente desatualizada, sem adequação com o que as mulheres se tornaram. É por isso que elas endireitam a cabeça e os mandam passear. #metoo é um chamado para que os homens mudem também: são muitos que precisam compreender isso fazer. O caso Weinstein é, por sua vez, um símbolo brilhante e o início de um processo que está apenas começando.

O governo tem razão em querer legislar sobre o assédio?

É preciso de leis? As feministas muitas vezes recorreram a elas porque eram o único meio de fazer reconhecer seus direitos: leis sobre o aborto, estupro, para a paridade… marcaram etapas importantes e geralmente positivas, também no sentido simbólico: o reconhecimento das mulheres como indivíduos livres.

A dificuldade de hoje reside na definição do delito e sua apreensão. Isso demanda uma consulta jurídica e psicológica, interrogação sobre os efeitos perversos, reflexão em suma. Mas nem tudo passa pela lei e é preciso às vezes desconfiar. Na ocorrência, elas são menos importantes que as mudanças de mentalidade, inclusive entre as mulheres. Visivelmente, ainda resta muito a ser feito sob esse ponto de vista.

Entrevista realizada pelo jornal Le Monde. Tradução de Pedro Micussi para a Revista Movimento.


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