“A guerra na Síria está longe de terminar”

O professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos de Londres se debruça, em entrevista, sobre a situação política e militar do país do Oriente Médio.

GIlbert Achcar 27 fev 2018, 12:17

Gilbert Achcar é professor de Estudos sobre o Desenvolvimento na SOAS, Universidade de Londres, e um autor conhecido que se foca no Médio Oriente Médio e no mundo árabe. Reuniu com a Syria Awareness Week 2018. Achcar acredita que o conflito está longe de terminar e que, para que Bashar al-Assad estabeleça um novo marco político, é necessário um acordo entre os EUA e a Rússia. Achcar diz que o papel do Irão numa futura Síria é um dos temas chave em jogo e analisa a guerra turca contra o PYD, o papel regional da Arábia Saudita, as conferências internacionais de paz para a Siria, as recentes manifestações no Irão e a nova política exterior dos EUA para o Médio Oriente na seguinte entrevista.

Syrian Corner – Recentemente, Assad e Putin declararam que “ganharam a guerra”. Terminou a guerra síria? O que acontecerá com Bashar al-Assad?

Gilbert Achcar – Há muitas ilusões em tais proclamações: ainda são travadas batalhas na região de Idlib e em Ghuta Oriental. É verdade, no entanto, que o regime, apoiado pelo Irão e pela Rússia, se consolidou e já não enfrenta uma ameaça existencial. Em duas ocasiões anteriores, esteve à beira de uma grande derrota, contando com intervenção estrangeira, primeiro pelo Irão e depois pela Rússia. Como resultado, o regime agora tem uma vantagem militar. Mas quando digo “regime”, estou realmente a referir-me ao eixo Rússia-Irão-Assad, já que o regime de Assad sozinho não poderia ter conseguido nada disto. Aliás, já há muito teria sido derrotado.

Além disso, ainda existe uma grande área da Síria fora do controlo do regime no nordeste, dominada pelas Forças Democráticas da Síria (SDF, sigla em inglês). As Unidades de Proteção do Povo Curdo Sírio (YPG), lideradas pelo Partido da União Democrática (PYD), são a espinha dorsal do SDF. Controlam uma grande parte da Síria, que compreende toda a área a leste do Eufrates até às fronteiras turca e iraquiana, e é aí que as tropas dos EUA estão realmente envolvidas no campo. Mais duas áreas estão sob o controlo do YPG e dos seus aliados: Manbij, a oeste do Eufrates, e Afrin, onde a atual ofensiva turca está a ter lugar.

Abordando especificamente o assunto do YPG: a Turquia iniciou um ataque na área de Afrin controlada pelo YPG. Isto representa uma nova escalada do conflito?

Aqui está uma grande contradição. Durante muitos anos, as potências ocidentais seguiram o seu aliado turco, um membro-chave da NATO, rotulando o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) como uma organização terrorista. Ao longo dos anos, o exército turco participou em várias ofensivas contra a população curda na Turquia com o apoio dos países da OTAN.

No entanto, quando os Estados Unidos decidiram combater o ISIS, tanto na Síria como no Iraque, em 2014, não quiseram envolver diretamente as suas tropas dos EUA no terreno; em vez disso, forneceram apoio aéreo e material às forças locais. Portanto, descobriram que os melhores aliados possíveis nessa batalha na Síria, sob uma perspetiva militar, seriam as forças curdas. Washington encorajou a criação do SDF, com a inclusão dos árabes sírios, que, na sua maioria, pertencem à região sob o controlo do SDF. Portanto, os Estados Unidos não parecem estar envolvidos numa luta étnica ao lado da minoria curda. Como todos sabem que PYD e YPG estão intimamente ligados ao PKK, essa aliança criou um paradoxo político. Na luta contra o ISIS, os EUA confiaram numa força que está ligada a um movimento político oficialmente rotulado como “terrorista” pela Turquia e pelos seus aliados da NATO, incluindo Washington. Como esperado, isso irritou muito o estado turco, indignado ao ver os Estados Unidos cooperarem com o seu inimigo público número um.

Isto agudizou-se ainda mais pelo facto de que Erdogan sofreu uma forte mudança nacionalista em 2015 quando o seu partido, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), perdeu a maioria parlamentar. Isso deveu-se a um aumento nos votos obtidos por uma aliança à esquerda em que o movimento curdo desempenhou um papel central, mas também se deveu, o que é mais importante, à perda de votos dos nacionalistas de direita turcos. Diante dessa situação, Erdogan retomou a guerra contra os curdos depois de anos de paz com o movimento curdo, recorrendo a provocar o nacionalismo turco. A posição conservadora islâmica do seu discurso não mudou, mas houve uma nova mudança na direção do nacionalismo turco e uma nova ofensiva contra os curdos. Erdogan organizou uma segunda eleição cinco meses depois, em que o seu partido recuperou a maioria parlamentar. Atualmente, o AKP está em aliança com o principal partido nacionalista de extrema-direita turco.

Basicamente, a posição de Erdogan deixou-o em curso de colisão com os Estados Unidos. As tensões com a administração Obama aumentaram. Erdogan apostou durante algum tempo na administração Trump. Donald Trump prometeu parar de apoiar as forças curdas na Síria. No entanto, o Pentágono contradisse-o, uma vez que as forças curdas demonstraram que são excelentes lutadores e foram instrumentais na derrota do ISIS.

O Pentágono considera que o SDF é a principal carta que tem na hoje na Síria. Sabem que, se cortarem os laços com o SDF, o regime de Assad e as forças lideradas pelo Irão tentarão inevitavelmente recuperar a vasta área estratégica a leste do Eufrates. Dado que os Estados Unidos estão determinados a conter a expansão do Irão na região, o Pentágono não vê outra opção senão apoiar as forças sírias-curdas e continuar a apoiar o SDF. É aqui que está a fricção.

Erdogan está atualmente a atacar a região de Afrin, de maioria curda, no noroeste da Síria. Esta região não desempenhou nenhum papel na luta contra o ISIS e, portanto, não diz respeito aos EUA. Não há tropas dos EUA na área. Mas Erdogan ameaçou voltar-se contra Manbij, onde o SDF é apoiado pela presença direta dos Estados Unidos no terreno. A Rússia renovou a intervenção turca na região de Afrin, retirando dali as suas próprias tropas. O objetivo é exacerbar a diferença turco-americana.

Toda esta situação é ainda mais complicada, e é aqui que podemos voltar à pergunta original: se a guerra na Síria está longe de terminar. Qualquer “missão cumprida”, como Bush anunciou descuidada e imprudentemente pouco depois da ocupação do Iraque, e como Putin proclamou duas vezes sobre a Síria, é meramente uma ilusão. Nada está resolvido na Síria. O regime de Assad, mesmo com o apoio da Rússia, não tem a capacidade de controlar o país. Ele precisa do Irão. No entanto, a presença do Irão na Síria é inaceitável tanto para os Estados Unidos como para Israel.

Se a Turquía derrotar as forças curdas, estará disposta a ir longe ao ponto de ocupar Manbij?

Na verdade, o assunto é complexo, e o que está a acontecer agora é muito revelador. Para as forças turcas, seria difícil ficarem na região de Afrin durante muito tempo, mesmo que conseguissem ocupá-la, pois estariam sob constante ataque. Além disso, estariam envolvidos na guerra num território estrangeiro, sem a desculpa de terem sido convidados pelo governo oficial, ao contrário das forças do Irão e da Rússia.
Erdogan está a brincar com o fogo. Assumiu um grande risco com esta operação. Ao enfrentar o descontentamento mesmo dentro do seu próprio partido, está a usar um impulso nacionalista para consolidar o seu poder. Mas um revés militar poderia sair-lhe caro.

Sob que circunstâncias é que o Irão deixaria a Síria?

O Irão teria de ser obrigado a sair. Isto aconteceria se houvesse um acordo russo-americano, sob a forma de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, estipulando que, com base num acordo político a ser alcançado em Genebra, todas as tropas estrangeiras que entraram na Síria depois de 2011 (excluindo os russos, que já estavam na Síria muito antes desse ano) deveriam abandonar o país.

Seria difícil para o Irão dizer “não”, especialmente se o regime sírio fizesse parte do acordo. Assad não optaria pelo Irão em vez de Moscovo. Moscovo tem as forças do regime sírio no terreno, enquanto o Irão está a ocupar o terreno. Teerão não permitiria ao regime sírio a mesma margem de autonomia que Moscovo. Acrescente a isso que o regime iraniano é ideologicamente muito diferente do regime sírio. O regime sírio tem sido descrito por muitos como um baluarte contra o fundamentalismo islâmico, apesar de ser apoiado no terreno pelas forças fundamentalistas islâmicas lideradas pelo Irão. Isso também faz parte da complexidade da situação.

No Irão, tem havido manifestações importantes desde o dia 28 de dezembro do ano passado. Que influência podem ter na intervenção do Irão na Síria?

Se o movimento tivesse continuado a expandir-se, poderia ter criado uma situação que obrigasse o regime a reconsiderar a sua intervenção na Síria, que foi condenada pelos manifestantes. Mas o movimento diminuiu e foi suprimido, e o regime voltou a ter controlo. No entanto, vemos um aumento de tensão entre os dois setores do regime. A ala reformista, representada pelo presidente iraniano Rouhani, está a tentar reduzir o setor de linha dura da Guarda Revolucionária (Pasdaran), argumentando que este último e as suas intervenções estrangeiras são um fardo para a economia iraniana.

Se a instabilidade social retomar, as coisas podem mudar, mas, por enquanto, o regime tem o controlo total. Além disso, a Síria é uma carta importante no confronto de Teerão com a administração Trump, que ameaça cancelar o acordo nuclear. Tal movimento encorajaria a continuação da expansão do Irão como um movimento contrário à pressão dos EUA.

Crê que a União Europeia (UE) devia ter um papel mais importante na crítica à Turquia por causa do ataque contra os curdos?

A nível mundial e a respeito de questões políticas e militares, a UE não atuou de forma independente dos Estados Unidos. Até agora, comportou-se principalmente como um apoio dos Estados Unidos. Com a administração Trump, isso tornou-se num problema para a Europa, porque é a primeira vez que há um presidente dos Estados Unidos tão oposto à tradição política da Europa e tão próximo da extrema-direita europeia. A administração Bush teve problemas com alguns governos europeus, como a França e a Alemanha, que se opunham à invasão do Iraque por causa dos seus diferentes interesses. Mas o governo britânico de Tony Blair, por exemplo, estava completamente envolvido no lado de Bush.

No que diz respeito à Palestina, houve uma cristalização de uma opinião diferente da UE, razão pela qual o presidente da Organização de Libertação da Palestina (OLP), Mahmoud Abbas, está agora a tentar fazer com que os europeus reconheçam o estado palestiniano. Em relação ao Irão, há também divergências abertas entre os europeus e a administração Trump. Os governos europeus estavam bastante satisfeitos com a política de Obama que levou ao acordo nuclear com o Irão, que Trump considera o pior acordo já feito pelos EUA. Se Trump rescindir o acordo nuclear, criará uma crise aberta nas relações entre os EUA e a Europa. Portanto, a Palestina e o Irão, por enquanto, são duas questões polémicas em que há um marcado contraste entre os EUA e a UE. No entanto, na questão síria não há pontos de vista opostos entre a Europa e os Estados Unidos. Na Síria, a UE não mostrou uma posição independente até hoje.

Tendo em conta que o conflito não terminou, acha que há alguma hipótese de reconstrução, como Assad está a pedir?

Mais uma vez, isso é uma ilusão. A própria Rússia pediu várias vezes à UE que financiasse a reconstrução da Síria. Têm muito valor porque a Rússia assegurou uma posição segundo a qual, se houvesse uma reconstrução da Síria, desempenharia um papel fundamental nela. Moscovo gostaria de que os europeus financiassem a reconstrução da Síria com empresas russas a apropriaremse da maioria dos contratos. Mas isso não irá acontecer porque os europeus não desembolsarão dinheiro sem uma luz verde americana, o que não acontecerá até que Washington esteja convencido de que o Irão não aproveitará a situação. Sob as condições atuais, o Irão também teria necessariamente uma parte segura do mercado. Portanto, a reconstrução não estará realmente na agenda até que este enigma político seja resolvido.

A Rússia está a tratar de estabelecer um quadro político pós-guerra para a Síria. Começaram a fazê-lo no final de 2016, pouco antes de Trump ter iniciado a sua presidência. Esperavam que ele cumprisse a promessa de novas relações com a Rússia, mas, por enquanto, isso não está a acpmtecer, pois o establishment em Washington reagiu com uma posição fortemente anti-russa. Em qualquer caso, Trump não alcançará qualquer acordo com os russos, a menos que eles concordem em deixar de cooperar com o Irão na Síria e em expulsar as suas forças do país.

Para Trump, o cenário ideal seria chegar a um acordo com Putin, confiar aos russos para que assumam a Síria sob a condição de expulsarem o Irão. Em troca disso, os Estados Unidos poderiam eliminar as sanções contra a Rússia e conceder-lhe algumas concessões na Europa. Mas isso, obviamente, não está no horizonte por enquanto.

Achas que alguma das conversações em Sochi e Genebra mudará alguma coisa na Síria?

Essas conversações tratam das condições de um acordo político. Sabemos mais ou menos como é que isso acontecerá: um período de transição, uma nova constituição, novas eleições, tudo isso com Assad no poder e em novas eleições presidenciais, e por isso não há muito a esperar novamente a esse respeito. Moscovo e Assad proclamam que estão dispostos a ter observadores internacionais para monitorizar as novas eleições. Poderiam apostar na vitória de Assad numas eleições presidenciais livres na Síria atual, porque o regime de Assad é um bloco, enquanto a oposição está muito dividida. O caos na oposição pode dar ao regime de Assad confiança suficiente para experimentar esse cenário.

No entanto, para que tal solução ocorra, é necessário primeiro um acordo internacional. Nas conversações de Sóchi patrocinadas por Moscovo, só participaram a Rússia, a Turquia, o Irão, o regime sírio e uma parte desacreditada da oposição síria. Os Estados Unidos e a Europa estão envolvidos nas negociações patrocinadas pela ONU em Genebra. Não vejo os Estados Unidos a aceitar um acordo que não estipula a retirada de todas as tropas estrangeiras que entraram na Síria após 2011. Por outras palavras, os Estados Unidos diriam: “Estamos dispostos a abandonar a Síria, desde que as forças iranianas também o façam. ” É por isso que os EUA estão atualmente a permanecer na região leste do Eufrates. A mensagem de Washington para os russos é: “Deixaremos Síria se vocês se livrarem dos iranianos; caso contrário, não o faremos”.

A visão de Trump do conflito é diferente da de Obama. Está a tentar isolar o Irão e reconheceu Jerusalém como a capital do Estado israelita. Por que é que as suas políticas são diferentes e quais serão as implicações da política de Trump para a região?

Aqui são apresentados diferentes problemas. Quando se trata de Israel, Trump dirige-se a uma audiência específica: evangélicos e outros sionistas cristãos, que constituíram uma grande parte do eleitorado republicano sob Bush e a ser sendo uma parte importante da base de eleitores de Trump. Mike Pence, vice-presidente dos Estados Unidos, é o representante deste setor. Até está a superar o chefe no discurso pró-israelita. Pelo contrário, não há consenso sobre esta questão no establishment mais amplo dos EUA. Mesmo entre a comitiva de Trump, há pessoas insatisfeitas com a sua posição sobre Jerusalém, que é muito ideológica. O único problema sobre o qual há consenso na administração é uma atitude dura em relação ao Irão, mas isso nem sequer inclui o abandono do acordo nuclear.

O regime saudita ainda desempenha um papel decisivo no conflito sírio, especialmente no que concerne ao Irão?

Trump encorajou os governantes sauditas a escalarem as hostilidades contra o Irão. Foram muito torpes a lidar com episódios como o de pressionar o Qatar ou a demissão forçada do primeiro-ministro libanês Saad Hariri, que foi um fiasco. Os governantes sauditas não têm uma estratégia própria em relação à Síria, alinham-se atrás dos Estados Unidos. O resto da oposição síria ligada a eles foi muito enfraquecida. Portanto, a influência geral de Riade na Síria foi muito debilitada. A sua principal preocupação é conter o Irão e fazê-lo retroceder e, para isso, só pode confiar em Washington.

Reprodução da versão traduzida e publicada pelo esquerda.net.


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