É preciso ir muito além dos “resultados finais” da plataforma Vamos

Tal como foram escritos, estes “Resultados” pesam negativamente para a elaboração de um programa consequente por parte do PSOL.

João Machado 20 fev 2018, 19:27

No Congresso do PSOL realizado em dezembro de 2017, foi aprovada (por uma maioria de cerca de 60%) uma resolução sobre a participação do PSOL nas eleições de 2018, que inclui o seguinte parágrafo:

4. O PSOL terá uma candidatura própria que amplie o debate de reorganização da esquerda, que tenha como lastro programático o processo democrático e participativo construído pela plataforma Vamos mais o acúmulo programático do partido, e que tenha como principal compromisso a revogação das medidas antipopulares do Temer, como a reforma trabalhista e a lei da terceirização.”

Assim, o resultado dos debates da Plataforma Vamos (um texto intitulado “Resultados Finais”) foi apontado como a referência programática básica para a formulação do programa do PSOL nestas eleições. Este texto havia sido divulgado pouco antes do Congresso, e tinha sido pouco lido até então. Muito provavelmente, sua aprovação como referência básica se deveu menos a haver acordo com seu conteúdo, e mais à ideia de que ele tinha sido o resultado de um amplo e participativo debate democrático – além, obviamente, da vontade de fazer uma sinalização para o principal impulsionador da Plataforma Vamos, Guilherme Boulos. Deve ter pesado favoravelmente também o fato de parte do PSOL ver com muito bons olhos a aproximação com setores do petismo.

Depois do Congresso, o debate no PSOL sobre o texto do Vamos vem sendo bastante limitado. Até onde eu sei, apenas uma discussão sistemática de suas formulações vem sendo feita: uma série de avaliações críticas, divulgadas pela pré-candidatura de Plínio Sampaio Jr. à presidência. E, também até onde eu sei, só uma resposta a estas críticas se propôs a uma discussão séria com elas: uma mensagem do companheiro José Luís Fevereiro na lista de e-mails do Diretório Nacional do PSOL. Outras respostas a elas se limitaram a tentar desqualificar o companheiro Plínio Sampaio Jr.

Por outro lado, as contribuições da pré-candidatura de Plínio Sampaio Jr. vêm se concentrando na análise do conteúdo do texto dos “Resultados Finais”. Ainda não foi feito um exame crítico do processo de debates que constituiu a Plataforma Vamos (de novo, até onde eu sei) e da sua auto avaliação de que este processo foi amplamente participativo e democrático.

Como uma pequena contribuição para preencher estas lacunas, procuro neste texto, em primeiro lugar, questionar a ideia de que o texto dos “Resultados Finais” (finais até agora) da Plataforma Vamos foi fruto de uma ampla participação, “de baixo para cima”. Esta participação foi limitada por critérios previamente definidos e pelo método de construção da Plataforma. Em segundo lugar, procuro mostrar que estas limitações tiveram uma influência decisiva nas insuficiências do texto programático apresentado. Finalmente, chamo a atenção para que os problemas de falta do debate programático necessário no PSOL tiveram responsabilidade direta numa decisão grave e extremamente negativa em curso, que é a decisão de a Fundação Lauro Campos e o próprio partido participarem da redação do manifesto “Unidade Para Reconstruir o Brasil” e de seu lançamento, neste dia 20 de fevereiro.

O texto “Resultados Finais” foi o resultado de um amplo processo participativo, construído “de baixo para cima”?

O texto dos “Resultados Finais” é aberto com uma enfática afirmação do caráter democrático e participativo da Plataforma Vamos. Diz que foram realizados encontros presenciais com “intelectuais, ativistas, lideranças de movimentos sociais”, que “cada cidadão pôde participar levantando propostas e interagindo com as já existentes, o que criou um processo ativo de participação social”. Toda a auto avaliação positiva é resumida e ampliada no seguinte parágrafo:

“Ao longo de quatro meses de discussões foram mais de 134.000 acessos na plataforma com mais de 100.000 interações nos eixos temáticos em cerca de 1500 propostas enviadas. Foram realizados 55 debates presenciais em 24 cidades, nas 5 regiões do país. Ao final deste ciclo de discussões, as propostas provenientes do site e dos debates presenciais foram sistematizadas para a construção dos primeiros resultados”.

Finalmente, a apresentação dos “Resultados Finais” conclui dizendo que “os debates vão continuar, aprofundando temas de grande interesse nacional”.

Entretanto, por mais que seja importante terem sido feitos todos estes debates, é evidente que, para o processo da Plataforma Vamos poder ser apresentado como democrático e participativo, e construído de baixo para cima, é imprescindível que: a) a decisão sobre os resultados finais tenha sido tomada, de alguma maneira, pelo conjunto dos participantes, ou por uma representação deles; e b) que a própria decisão sobre quem constituiu o processo, quais seriam os interlocutores privilegiados, e sobre a orientação básica dos debates tenha sido resultado de um amplo processo de discussão com todos os envolvidos.

Ora, pelas informações disponíveis, isto não aconteceu.

a) Começo por um comentário sobre como foi decidido o conteúdo dos “Resultados Finais”. Ao longo do processo foram apresentadas propostas distintas e, às vezes, conflitantes, em vários temas – como seria de se esperar em qualquer debate deste tipo. Os participantes, entretanto, não puderam opinar sobre o que deveria ser incluído e o que seria deixado de fora. Todo o processo foi uma iniciativa da Frente Povo Sem Medo, e as decisões sobre o conteúdo final dos “Resultados” foram tomadas por uma comissão desta Frente, sem que o conjunto dos participantes pudesse participar delas. Os não integrantes da Frente Povo Sem Medo participaram na condição de convidados, sem nenhum poder deliberativo. Ou seja: ofereceram análises, pontos de vista e sugestões, que foram (ou não) aceitos e incorporados aos Resultados Finais, a critério da direção da Frente Povo Sem Medo.

Naturalmente, pode ser argumentado que o fato de não ter sido adotado um método de decisão participativo e democrático entre todos os que contribuíram para os debates da Plataforma Vamos não é necessariamente um grande problema, pois a própria Frente Povo Sem Medo pode ter tomado suas decisões de forma democrática. Mas ainda que isto seja verdade, o fato de ela ter feito as escolhas decisivas já limita muito a validade do argumento de que o processo foi “aberto”, “amplamente participativo”, realizado “de baixo para cima” ou decidido por 100.000 ou 134.000 acessos virtuais, e pela participação de todos os que assistiram aos debates presenciais.

Neste ponto, é bom lembrar que a FPSM é uma frente de “movimentos sociais”, da qual o PSOL, como tal, não participa; filiados e militantes do PSOL só podem participar enquanto militantes de “movimentos”. Além disso, ao que se sabe, as instâncias de direção da FPSM não são eleitas em congressos, a partir de delegadas e delegados e de um debate na base.

Não cabe a quem não é membro da FPSM questionar seu funcionamento. Tampouco cabe dizer que a FPSM não tinha legitimidade para construir e dirigir todo o processo, como ocorreu. Cabe, entretanto, concluir que os “Resultados Finais” do processo da Plataforma Vamos não foram fruto de um processo “aberto” ou “realizado de baixo para cima”.

b) Igualmente importante para avaliar o grau de abertura do processo é saber como as definições iniciais e gerais que lhe deram forma foram tomadas. Houve alguma discussão ampla sobre quais seriam os interlocutores privilegiados, e sobre a orientação básica dos debates? Os diversos convidados e convidadas puderam opinar, por exemplo, sobre se era importante ou correto incluir nas mesas defensores e defensoras dos governos do PT, ou se, numa outra direção, deveriam ser incluídos setores mais à esquerda dos movimentos sociais ou dos partidos políticos, como a central sindical CSP-Conlutas ou o PSTU?

Até onde se sabe, não houve debates amplos e abertos sobre quais seriam os setores que seriam convidados ou sobre a relação de todo o processo com os governos do PT. Houve uma definição prévia, tomada pela direção da FPSM (certamente ouvindo aliados, mas isto não muda a natureza de quem tomou a decisão), de qual seria o espectro político convidado. Esta direção deliberou toda a forma do processo – desde a composição das mesas nacionais (e boa parte da composição das mesas estaduais) até a já mencionada escolha do que entraria nos Resultados Finais. Foi ela quem definiu que em todas as mesas, ou na grande maioria delas, seriam incluídos representantes de setores do PT e de seus aliados em seus governos. Todo o processo foi estritamente dirigido pelas instâncias decisórias da Frente Povo Sem Medo. Repetindo o que já foi dito antes: os outros participantes tiveram a condição de “convidados não deliberativos”.

Quem lança um processo de discussões tem todo o direito de definir inicialmente quem será convidado, e é até difícil pensar outra maneira de começar um processo. Entretanto, seria possível, se houvesse interesse nisso, fazer depois a discussão, com o conjunto dos participantes, de se o espectro político inicial de convidados deveria ser ampliado numa ou noutra direção, ou reduzido por algum critério.

Ora, não só isto não foi feito, como se sabe que até críticas feitas aos governos do PT em pelo menos parte das mesas foram mal recebidas por dirigentes da Plataforma e tachadas de “antipetismo”. Dito de outra maneira, o critério de “não afastar”, ou mais do que isto, de fazer o possível para aproximar setores do PT e de seus aliados, supondo que com isso seria possível ganhar parte do apoio social que eles têm, parece ter sido uma “cláusula pétrea” de todo o processo, cláusula definida pela direção da FPSM.

Afinal, pelas informações disponíveis, não houve participação significativa, no processo de debates, de setores ligados ao PT ou a seus aliados nos governos. Sua participação nas mesas foi antes protocolar. Mas, mesmo assim, a sombra dos governos do PT e da decisão prévia de “não afastar” setores do PT pairou sobre todo o processo e condicionou seus resultados.

Em resumo: voltamos a constatar que, por mais que as discussões tenham tido méritos, e tenham contado com boas contribuições, o processo não foi “aberto” ou “conduzido de baixo para cima”.

2. As limitações do método e dos critérios de construção da Plataforma tiveram uma influência decisiva nas insuficiências do texto programático apresentado

a) O que talvez seja a lacuna mais evidente e difícil de explicar de todo o processo da Plataforma e dos seus “Resultados Finais” seja a completa ausência de discussão do que foram os governos do PT e, a partir daí, do que se procurará fazer de semelhante ou de diferente.

Embora tenhamos fartas razões para questionar o senso comum que prevalece no Brasil a este respeito, os governos do PT são majoritariamente considerados “governos de esquerda” ou “populares”. Por isso mesmo, um programa que se pretenda “de esquerda” ou “popular” não pode deixar de dizer alguma coisa a seu respeito. As orientações gerais dos governos do PT serão repetidas? Ou corrigidas, de alguma maneira? Ou será feita uma coisa completamente diferente?

Estas questões são anteriores à discussão de se o programa que se pretende é reformista ou revolucionário, de transição, neodesenvolvimentista ou socialista, minimalista, maximalista ou qualquer outra definição. Não há como dialogar com a população sobre um programa para o Brasil em qualquer perspectiva minimamente de esquerda ou popular sem dizer alguma coisa a respeito dos governos do PT – mais ainda quando haverá, nas eleições, candidatas e candidatos do PT e de outros partidos que compuseram seus governos. E não seria razoável argumentar que as medidas propostas no programa já serão, por si mesmas, uma resposta a estas questões – obviamente, não são. Um candidato ou uma candidata que represente a Plataforma Vamos, quando perguntado sobre o que acha dos governos do PT, não poderá responder: “leiam nossas propostas e façam suas deduções”.

Além disso, não há como fugir à discussão de por que os governos do PT terminaram desaguando num golpe e num governo como o de Temer. Possíveis limitações, erros ou, quem sabe, traições dos governos do PT tiveram responsabilidade sobre tudo de ruim que está acontecendo? E outra pergunta: os golpes contra os trabalhadores e o povo já existiram nos governos do PT ou só se iniciaram depois?

Alguém acredita que seja possível fazer uma campanha eleitoral de esquerda ou popular no Brasil sem falar nada a respeito de tudo isto?

Entretanto, nem estes temas foram parte explícita dos debates da Plataforma Vamos, nem há nenhuma linha a respeito no texto dos “Resultados Finais” – embora algumas medidas propostas defendam a revogação de leis aprovadas nos governos do PT (como a chamada “Lei Antiterrorismo”) e outras sugiram, se lidas com boa vontade, críticas indiretas e sutis às práticas dos governos do PT (como a afirmação de que “a governabilidade deve ser feita com as maiorias sociais, contrapondo o pacto com as elites que favorecem (sic) a corrupção e ampliando a democracia e a participação das pessoas nas decisões do Estado”).

No geral, o texto enfatiza problemas originários do governo Temer e faz algumas alusões à existência de problemas históricos e antigos no país. E não tem nenhuma palavra explícita sobre o que representaram os governos do PT.

b) Outro tema não menos importante, também ausente dos “Resultados Finais”, é o da contextualização do momento que vivemos no país e no mundo, da crise mundial (não mencionada) e da crise brasileira (mencionada por vezes de passagem, mas nunca analisada). Não foi feito um diagnóstico da situação, para a partir dele propor receituários. Além disso, como observou a contribuição “Para onde Vamos”, da campanha de Plínio Sampaio Jr., não houve “o cuidado de definir a relação de causa e efeito entre diagnóstico e receituário, especificar os sujeitos coletivos das ações, qualificar os vínculos entre intenções, ações e mediações e estabelecer os nexos entre as partes e o todo”. Não houve “a definição das bases objetivas e subjetivas que determinam a luta de classes” para, a partir daí, determinar “o campo de oportunidades vislumbrável pelo pensamento e alcançável pela ação”.

Estas ausências fundamentais são certamente consequência do método de fragmentar a discussão em eixos específicos, e de não ter nenhum item sobre o caráter geral da situação brasileira (e internacional), do programa e das tarefas a enfrentar.

Como explicar um método tão estranho? A única explicação que vejo é a vontade de contornar a discussão do que foram os governos do PT, e de por que terminaram mal, ou seja, por que foram derrotados, afinal.

Sem uma análise geral da situação brasileira e internacional e sem uma visão de conjunto sobre como enfrentá-la, os “Resultados” apresentam boas ideias e itens que devem ser incorporados a qualquer programa de esquerda, ao lado de algumas propostas francamente ruins; mas, principalmente, têm muitas lacunas e insuficiências.

Uma análise de conjunto da situação brasileira e mundial não poderia deixar de chamar a atenção para o endurecimento da luta de classes, para o agravamento feroz da ofensiva burguesa e conservadora contra trabalhadores e setores populares, particularmente com todas as contrarreformas do governo Temer, mas também com a criminalização dos protestos sociais iniciada no governo Dilma. E não poderia deixar de levar em conta a questão: uma solução do ponto de vista popular para a gravíssima crise brasileira pode ser alcançada nos marcos do nosso capitalismo dependente? Os governos do PT tentaram fazer isto, e não conseguiram. Seria possível fazê-lo de outra maneira?

Acredito que uma discussão séria e serena da situação só pode concluir que uma alternativa capitalista “progressista” ou “humana” não é possível hoje (e, aliás, só pareceu possível num curto período histórico, os chamados “anos dourados” do pós-segunda Guerra Mundial, quando a burguesia dos principais países capitalistas, pressionada pelo medo do “comunismo”, se dispôs a, por algumas poucas décadas, fazer concessões). Chamar a atenção, de várias maneiras e até com detalhes, para a inviabilidade de uma alternativa popular nos marcos do capitalismo dependente e, a parir daí, chamar a atenção para as insuficiências das propostas dos “Resultados Finais” brasileiro é sem dúvida uma contribuição fundamental das avaliações críticas que têm sido divulgadas pela campanha de Plínio Sampaio Jr.

A resposta de José Luís Fevereiro aos textos críticos da campanha de Plínio Sampaio Jr., “Plínio Jr e os diagnósticos errados”, desenvolve principalmente dois argumentos. O primeiro deles, que ocupa a maior parte de seu texto e que inclusive justifica o título da contribuição, é que no Brasil não há um problema de estoque da dívida pública, mas apenas de fluxo dos juros pagos. É um argumento técnico, muito questionável (entre outras razões, porque o estoque da dívida pública tem influência sobre o fluxo de juros), que não vou discutir aqui.

O segundo argumento pode ser resumido nos dois últimos parágrafos do texto de José Luís:

“Por fim, Plinio encerra seu texto com a seguinte frase: ‘A possibilidade de uma economia subordinada às necessidades dos trabalhadores passa por transformações econômicas, sociais e culturais que colocam na ordem do dia a necessidade de ir além do capital. A bandeira do socialismo precisa entrar em campo. ’

Essa frase cala fundo em todos nós e em todos aqueles que por essas lutas andaram antes de nós, nos últimos 100 anos. Infelizmente as classes trabalhadoras insistem em priorizar suas necessidades materiais de curto prazo e se nós não nos credenciarmos na viabilização dessas demandas concretas e sensíveis, não conseguiremos colocar absolutamente mais nada na ordem do dia, muito menos ‘em campo’. ”

É óbvio que qualquer programa de esquerda deve dar destaque a demandas concretas e sensíveis referentes às necessidades materiais (e não apenas materiais) das classes trabalhadoras e de todos os setores oprimidos, além de demandas de curto prazo referenciadas ao enfrentamento da gravíssima crise ambiental atual (o que é imprescindível para todo o povo, ou melhor, para a humanidade; embora isto nem sempre seja aparente, a crise ambiental já tem consequências graves também imediatas).

Entretanto, uma análise realista da situação brasileira e mundial nos mostra que, para avançar neste caminho, teremos de enfrentar as classes dominantes (cujo propósito, sabemos bem, é justamente o oposto). Este enfrentamento com as classes dominantes tende a nos levar além do capitalismo, e não devemos reforçar ilusões de que as necessidades “concretas e sensíveis” do povo podem ser satisfeitas nos marcos do capitalismo, ainda mais de um capitalismo crescentemente dependente, como o brasileiro (erro em que, a meu ver, o texto “Plínio Jr e os diagnósticos errados” incorre).

Por outro lado (e este é o ponto que José Luís busca enfatizar), os explorados e oprimidos não se mobilizam, hoje, diretamente em favor do socialismo.

A tradição revolucionária do marxismo começou a tratar desta questão, na velha Internacional Comunista, com a ideia de um “Programa de Transição”, que depois foi plenamente desenvolvida no Congresso de fundação da IV Internacional. Tal programa deve combinar demandas imediatas e democráticas com outras que já apontem para a superação do capitalismo, e que sejam capazes de mobilizar as massas nesta direção. Não vou desenvolver este ponto aqui, mas acho oportuno lembrar que o velho Programa Democrático e Popular do PT (de 1987) tinha, entre outros, o seguinte parágrafo escrito no espírito de um programa de transição:

“75. Nas condições do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter anti-imperialista, antilatifundiário e antimonopólio – tarefas não efetivadas pela burguesia – tem um duplo significado: em primeiro lugar, é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto, um governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; em segundo lugar, a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitante de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfrentamento da resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático-popular, e, o que é mais grave, criando ilusões, em amplos setores, na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática e popular.”

Hoje, no PSOL, há opiniões muito diferentes sobre o velho Programa Democrático e Popular. Há os que acham que ele foi ruim, e até que teve um papel relevante na degeneração do PT que ocorreu anos depois. Há os que acham que ele foi positivo, mas que foi abandonado em seguida pelo PT, e que os governos do PT não tiveram nada a ver com ele, e que são favoráveis a atualizá-lo hoje e a colocá-lo em prática pra valer. Há ainda os que (como eu próprio) têm uma posição intermediária: o Programa Democrático e Popular tinha muitos aspectos positivos, mas também limitações, e algumas delas tiveram uma influência negativa no curso que o PT seguiu depois, embora, de fato, o PT tenha depois abandonado este programa, e não tenha nem tentado pô-lo em prática em seus governos.

Sem pretender entrar nesta discussão de balanço aqui, quero apenas chamar a atenção para que, para qualquer destas três avaliações que se aceite, não teria sentido defender hoje um programa mais recuado do que foi o velho PDP. Se o capitalismo brasileiro já não representava um quadro razoável para atender demandas populares em 1987, certamente hoje representa muito menos. Ora, mas é precisamente isto que os “Resultados Finais” da Plataforma Vamos são: um programa bem mais recuado do que foi o velho PDP do PT.

c) O fato de o Congresso do PSOL ter aprovado a Plataforma Vamos como referência básica para a formulação do programa do PSOL nestas eleições nos coloca, então, um problema (atenuado pelo fato de a resolução a respeito, cotada acima, falar também dos “acúmulos programáticos do partido”). Podemos superar este condicionante negativo? Na minha opinião, sim.

Mas para que os problemas da Plataforma Vamos possam ser enfrentados nas próximas discussões, o decisivo é abandonar o que parece ter sido sua preocupação central: fugir da discussão do que foram os governos do PT e da natureza da crise atual, ou seja, de tudo o que pode nos afastar de setores do PT e de seus aliados em seus governos.

Precisamos construir um programa no espírito de um programa de transição, ainda que não obrigatoriamente usando este termo, já que sobre isto não há consenso no PSOL.

Medidas propostas nos “Resultados Finais” da Plataforma Vamos podem ser aproveitadas, ao mesmo tempo em que precisamos nos esforçar para superar seus limites. Para isto, devemos incorporar propostas que têm sido feitas pelos pré-candidatos registrados no PSOL. A campanha de Plínio Sampaio Jr. tem dado contribuições muito importantes para a discussão, ainda que não tenha se proposto a elaborar sozinha um programa alternativo ao da Plataforma Vamos. Os outros três pré-candidatos (Sonia Guajajara, Hamilton Assis e Nildo Ouriques) também têm contribuições indispensáveis, como, por exemplo, as contribuições da campanha de Hamilton Assis sobre a luta contra a opressão racial e as formulações da campanha de Sonia Guajajara sobre a questão indígena e sobre a questão ambiental, entre outros temas essenciais. Aliás, falar em “questão indígena” é muito reducionista: a tradição dos povos originários tem uma capacidade de apontar para formas de relações humanas não capitalistas e não mercantis que são fundamentais para a construção de todo novo projeto socialista.

Um exemplo lastimável do descaso do setor majoritário na direção do PSOL com a discussão programática no partido

Finalmente, termino esta contribuição chamando a atenção para outra manifestação do descaso do setor majoritário na direção nacional do PSOL com as questões programáticas.

Trata-se da aprovação da assinatura da Fundação Lauro Campos e, logo, do PSOL, no manifesto “Unidade para reconstruir o Brasil”, ao lado das assinaturas das fundações vinculadas ao PT, ao PC do B, ao PSB e ao PDT, a ser lançado neste dia 20.

Esta assinatura é um erro gravíssimo. A visão programática deste manifesto se opõe frontalmente a tudo que possamos chamar de “acúmulo programático do PSOL”, além de se opor explicitamente também a resoluções aprovadas no Congresso do PSOL de 2017, como chamou a atenção, por exemplo, o Setorial Ecossocialista do PSOL em nota divulgada no último fim de semana.

Como tenho acordo total com a nota “O PSOL deve defender um programa anticapitalista e se posicionar contra o manifesto ‘Unidade para Reconstruir o Brasil’”, divulgada no dia 17, não vou me alongar sobre isto agora. Observo apenas que este segundo exemplo de descaso com a discussão programática no PSOL se baseia na ideia completamente equivocada de que podemos passar de alianças pontuais na defesa de temas concretos (a oposição à reforma da Previdência, por exemplo, que de fato podemos fazer junto com estes partidos, ou com uma parte deles), para programas comuns e alianças políticas e estratégicas, sem maiores problemas. Falta aos que aprovaram a assinatura neste manifesto a noção de que alianças políticas gerais são coisas muito diferentes de alianças pontuais. Dependem de acordos programáticos sólidos, e isto não é possível com partidos nitidamente burgueses (como o PDT e o PSB – o PSB, aliás, até apoiou o golpe do impeachment), ou com partidos que já consolidaram a visão de que programas viáveis ou “governabilidade” implicam vultosas doses de colaboração de classes, como fazem o PT e o PC do B.

A mobilização da militância do PSOL para anular esta assinatura escandalosa pode ser uma parte importante da mobilização mais geral para debater e construir um programa eleitoral que vá muito além do que foi registrado nos “Resultados Finais” da Plataforma Vamos, que não fuja da discussão sobre o que foram os governos do PT, e que possa atender, portanto, às necessidades que estão colocadas para os setores populares brasileiros.


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Pedro Micussi