Saúde não pode ser mercadoria!

O pré-candidato à Presidência pelo PSOL debate as propostas elaboradas pela Plataforma Vamos! no que diz respeito à saúde pública.

Plínio de Arruda Sampaio Jr. 28 fev 2018, 15:06

A política de saúde proposta pela Vamos! baseia-se na ideia de que é necessário universalizar o acesso a uma saúde de qualidade e humanizada pelo aprimoramento do SUS, considerado “um dos mais avançados sistemas de saúde do mundo”, e pela fiscalização e regulamentação do sistema privado de saúde. O diagnóstico implícito é que, para tanto, bastaria reverter o risco de sucateamento do SUS provocado pelas políticas privatistas do governo Temer, reforçar o financiamento público à saúde e aprimorar a legislação que normatiza o funcionamento da indústria da saúde. O enfoque é legal e gerencial. Como no programa para a educação, tudo se resume, em última instância, a fazer as instituições existentes, públicas e privadas, funcionarem adequadamente. A premissa subjacente é de que não existe uma contradição insuperável entre medicina pública e privada.

As propostas apresentadas para reforçar o SUS podem ser reunidas em quatro grupos:

a) Medidas para interromper o desmantelamento do SUS – proibição de privatização e terceirizações como as Organizações Sociais instituídas na reforma do Estado patrocinada pelo governo FHC; retomada da administração direta das unidades de saúde; combate à influência do setor privado nas políticas de saúde; revogação da EC 95, que congela por 20 anos os gastos públicos;

b) Medidas para reforçar o SUS – ampliação dos serviços do SUS e qualificação de seu pessoal, com destaque para a Estratégia Saúde da Família e o reforço do programa Mais Médicos; ampliação das fontes de financiamento do SUS por meio de “aportes” de recursos do Pré-Sal para a saúde e fim da renúncia fiscal para os planos de saúde; e reforço dos mecanismos de participação da cidadania na definição da organização e financiamento do sistema;

c)Medidas para melhorar a cobertura e a qualidade da medicina privada, com um conjunto de providências para reforçar a capacidade de fiscalização, regulação e punição do Estado – exigência de cobertura integral dos planos de saúde, proibição de reajustes abusivos; e

d) Medidas complementares que garantam o acesso a medicamentos gratuitos e estímulo à produção de remédios em laboratórios públicos.

A abordagem da saúde na Vamos! é convencional. A relação entre doença e condições de vida e trabalho, tão cara a Engels, não é objeto da Vamos!. A relação entre doença, classe social e acesso à medicina, preocupação de Salvador Allende, é escamoteada. Não há uma linha que questione a reprodução de uma visão da medicina baseada no enfrentamento dos sintomas da doença e não em suas causas. Em todas as dimensões, a Vamos! trabalha dentro dos parâmetros da ordem – a medicina alienada do capital subordinada à lógica dos negócios da saúde.

A ausência de qualquer visão crítica sobre a relação capitalismo, doença e medicina, suas especificidades no capitalismo contemporâneo e sua particularidade em sociedades submetidas à reversão neocolonial leva a Vamos! a abstrair os problemas mais candentes que abalam a saúde da população. Não há uma linha sobre como evitar as doenças do trabalho. Não há nada sobre a relação entre deterioração do meio ambiente e doença. A associação entre indústria de alimentos e doenças também não faz parte das preocupações da Vamos!. Nada é dito sobre o reaparecimento de doenças que se imaginavam erradicadas, típicas de sociedades muito atrasadas, como dengue, chikungunya, zika e febre amarela. As doenças modernas – epidemias de depressão, ansiedade, obesidade, diabetes – também não são mencionadas. Não existe a menor preocupação em compreender a distância entre o SUS ideal, desenhado na Constituição de 1988, e o SUS real, conhecido diariamente pela população que sofre pela precariedade da saúde pública. De maneira abstrata e descontextualizada, a Vamos!, insiste em soluções institucionais que nunca se concretizam, na esperança de que, agora, quem sabe, o SUS pegue no tranco.

Sem indagar as razões que levaram à derrota da luta pela construção de um sistema público de saúde de qualidade acessível a todos os brasileiros, a Vamos! insiste na possibilidade de recauchutar o sonho da Reforma Sanitarista sem enfrentar as mudanças estruturais que seriam indispensáveis para que ela pudesse de fato se realizar. Correndo atrás do próprio rabo, não vamos a lugar algum.

a) O desmantelamento do SUS não começou com a EC 95 do governo ilegítimo de Temer, como insinua a Plataforma Vamos!, mas bem antes. A inviabilização do SUS como um sistema “único” de saúde data, pelo menos, do governo Collor, para não falar de suas contradições intrínsecas, derivadas da Constituição de 1988 estipular a convivência entre serviços públicos, estatais e privados de saúde. O avanço acelerado da saúde como importante frente de acumulação de capital, processo sancionado por todos os governos da Nova República – Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma -, é incompatível com a construção de um Sistema “Único” de Saúde. Sem a proibição da mercantilização da saúde é impossível conceber uma saúde pública gratuita, universal e de qualidade;

b) As fontes de recursos para reforçar o financiamento da saúde pública apontadas pela Vamos! são absolutamente insuficientes para resolver as necessidades do setor. A saúde precisa de pelo menos 10% do PIB para funcionar a contento – mais do que o dobro dos recursos atuais. A Vamos! omite-se em relação à necessidade de garantir a vinculação compulsória dos recursos para a Saúde, calando-se em relação à urgência de acabar com a Desvinculação da Receita da União – DRU – que, desde FHC, Lula e Dilma, sangra anualmente os recursos constitucionalmente destinados às políticas sociais. Silencia-se também em relação à garantia de que os gastos públicos com saúde sejam destinados exclusivamente ao sistema público de saúde e não ao financiamento do setor privado. Acreditar no reforço do financiamento do SUS sem colocar em questão a dívida pública e sem enfrentar os interesses privados que transformam a saúde num grande negócio é, na melhor das hipóteses, de uma ingenuidade pueril. Os interesses do rentismo e da indústria da saúde são irreconciliáveis com os interesses da saúde pública;

c) A intenção de reforçar o poder de regulação do mercado de saúde peca pela absoluta falta de crítica à cumplicidade dos governos Lula e Dilma -que manifestavam o mesmo desejo -, mas que, atropelando dispositivos constitucionais, acabaram franqueando a exploração da saúde pelo capital internacional. Uma das principais características do capitalismo contemporâneo é a progressiva perda de capacidade do Estado de “regular” as grandes corporações. No capitalismo dependente e subdesenvolvido, onde essa capacidade de “regulação” sempre foi mínima, o controle do capital sobre o Estado é praticamente absoluto. A reversão neocolonial representa exatamente a vitória definitiva dos negócios e o fim de qualquer possibilidade de conciliar capitalismo, democracia e soberania nacional; e

d) Ainda que se mencione lateralmente a necessidade de uma maior prioridade à medicina preventiva, não há nada de concreto que indique o sentido das mudanças na orientação da política de saúde pública.

Em suma, embora a Vamos! manifeste a pretensão de reforçar a medicina pública, não apresenta nada que possa levar a uma mudança de qualidade na política de saúde. A suposição de que seja possível uma convivência civilizada entre os sistemas público e privado de saúde ignora a relação umbilical entre os obstáculos financeiros e políticos à plena realização do SUS e os gigantescos interesses econômicos que se mobilizam em torno da mercantilização da doença. Numa sociedade extraordinariamente desigual, a complementariedade dos sistemas públicos e privados reproduz um padrão de acesso à saúde e à medicina rigidamente segregado: os pobres submetidos a uma saúde pública precária; os ricos atendidos de maneira luxuosa pelas grandes empresas da saúde privada (e, se necessário, furando a fila, nos raros nichos de excelência da saúde pública).

A Saúde da Vamos! é um decalque do programa do PT. A busca de um caminho que permita conciliar as condições de saúde da população com os negócios da saúde – indústria farmacêutica, laboratórios, hospitais, planos de saúde – não leva a lugar algum. A Vamos! não nos dá elemento algum para compreender por que o que deu errado ontem, em condições ainda mais adversas, daria certo amanhã.

O que ganhamos quando transformamos o passado idealizado em utopia? Sem coragem e criatividade para enfrentar os interesses responsáveis pelo círculo vicioso do comércio de doenças e dos bloqueios estruturais à universalização da saúde pública a saúde dos brasileiros irá de mal a pior.


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