Um pensamento alucinado

Há 109 anos nascia Simone Weil. Em memória à filosofa francesa, resgatamos resenha sobre um livro seu e um artigo de sua própria autoria.

Antonio Gomez Movellan e Simone Weil 3 fev 2018, 17:53

Um pensamento alucinado

Por Antonio Gomez Movellan, Viento Sur/ Dezembro de 1996)

Resenha de “A gravidade e a graça” de Simone Weil, Editoria Trotta, 1995

“Levava vestidos negros, mal cortados e sujos. Dava a impressão de ver diante de si, e com frequência tropeçava nas mesas ao passar. Sem chapéu, seu cabelo curto, duro e mal penteado, parecia asas de corvo em ambos os lados de sua cara. Tinha um nariz grande de judia delgada em meio a uma pele macilenta, que sobressaía das asas por baixo de óculos de aço. Ela provocava inquietação: falava lentamente com a serenidade de um espírito alheio a tudo; a enfermidade, o cansaço, a nudez ou a morte não contava para ela… exercia certo fascínio, tanto pela sua lucidez como pelo seu pensamento alucinado”.

Assim G. Bataille descreveu Simone Weil no começo dos anos 30. Esse pensamento alucinado é talvez o mais característico de Weil. Alguns a consideravam uma mística do século XX, ao estilo de São Juan de la Cruz. Simone Weil nasceu em Paris em 1909, filha de uma família judia acomodada e morreu 34 anos mais tarde em Asford, próximo de Londres. Nesses 34 anos, Simone Weil deixou uma obra muito extensa, porém profunda e rara. Seu pensamento é uma mescla de análise social e misticismo inclassificável. Desde muito jovem esteve vinculada às organizações operárias francesas e escreveu centenas de artigos e ensaios sobre a situação da classe operária e a política internacional. Simone de Beauvoir descrevia-a como uma pequena mulher que sempre estava “atravessando os corredores da Sorbonne, com um livro debaixo do braço e L’Humanité no bolso”. Seus círculos mais afins foram os anarcossindicalistas franceses e os ambientes comunistas anti-estatalistas: realizou um trabalho pedagógico nos ateneus e centros de formação sindical, combinando isso com a vida acadêmica. Albert Camus declarou: “Desde Marx… o pensamento político e social não havia produzido no Ocidente nada mais penetrante e profético”.

Sua vida foi uma contradição permanente: era judia mas teve inclinações antissemitas; acreditava em Deus e esteve a ponto de abraçar o catolicismo e, no entanto, declarava-se ateia; esteve muito envolvida no movimento operário de seu tempo, porém foi pessimista ante os processos revolucionários; pacifista empedernida, mas justificava a violência e a guerra. Acreditava que um dos grandes problemas da sociedade e a raiz da desigualdade e opressão era a divisão do trabalho manual e intelectual e por isso deixou sua cômoda vida acadêmica de catedrática de filosofia para trabalhar de operária numa fábrica parisiense. Durante a guerra civil espanhola, Simone defendeu a política de neutralidade e de não-ingerência do governo francês, mas esteve lutando na Coluna Durruti; denunciou a falta de unidade da esquerda alemã ante a ascensão do fascismo com conteúdos muito similares aos argumentados por Trotsky, ainda que qualificasse, da mesma forma que fazia o stalinismo, à social-democracia alemã de “social-fascista”. Com Trotsky também polemizou numa série de artigos nos anos 30. Simone Weil, analisando o sistema soviético, conclui que as mudanças nas formas legais da propriedade não conduzem necessariamente ao término das desigualdades sociais e estas afirmações foram as que fizeram reagir duramente a Trotsky que qualificou seu pensamento como “uma fórmula de liberalismo antigo endereçado com a barata exaltação anarquista”. Durante a estadia de Trotsky em Paris – em 1933 – conseguiu que este, junto a seus correligionários, tivessem uma série de reuniões na casa de seus pais e assim poder discutir com o líder revolucionário sobre o Estado

Operário burocratizado. Algumas testemunhas declararam que nas discussões com Simone Weil, Trotsky chegou a levantar a voz mais de uma ocasião. Quando partiram de sua casa, Trotsky declarou aos pais de Simone: “vocês podem dizer que a Quarta Internacional se constituiu na sua casa”.

Loucura. Durante a ocupação francesa, Simone, junto com seus pais, se transferiu para uma cidade próxima a Londres e começou a trabalhar nos serviços administrativos de France Livre. Chega a escrever para De Gaulle, solicitando missões de alto risco ao interior da França e este, ao que parece, anotou à margem da solicitação: “está louca”. Talvez essa loucura da qual falava o General a levou, no último ano de sua vida, a deixar de comer como protesto ante a ocupação francesa; esta anorexia voluntária agrava uma recém-diagnosticada tuberculose que a leva para a morte em 1943.

Na Espanha, a obra de Weil não estava publicada, mas desde 1994 a editora Trotta começou a publicar alguns de seus textos mais relevantes. A gravidade e a graça é talvez um de seus textos de pensamento mais puro e sincero. Constitui uma seleção de pensamentos que ela ia anotando em diários desde 1934 até sua morte. A editora Trotta os textos acompanhados por uma extensa e excelente introdução realizada por Carlos Ortega.

A leitura deste texto não é fácil: estamos ante as portas da alucinação. Entre uma e outra alucinação, Simone Weil deixa cair pensamentos como este: “o social é por excelência o lugar do relativo e da maldade. Por isso, nesse campo, o dever de uma alma sobrenatural não consiste em identificar-se com um partido, mas em tratar de restabelecer os equilíbrios, pondo-se ao lado dos vencidos e oprimidos”.

Nos últimos anos de sua vida, deixou um de seus mais consistentes textos inacabados: O enraizamento, um ensaio sobre o desenraizamento e perda do Passado na sociedade contemporânea. “Não poderia ter nascido em outra época melhor do que esta, em que tudo se perdeu” disse Simone Weil, que, sem dúvida, teria estado de acordo com o que o escritor britânico John Berger, outro estudioso literário do desenraizamento contemporâneo, escreveu em seu romance Terra Nua: “O papel histórico do capitalismo é destruir a história, cortar todo o vínculo com o passado e orientar todos os esforços e toda a imaginação para com o que está a ponto de ocorrer. O capitalismo só pode existir como tal se está continuamente reproduzindo-se. Esta é a metafísica do capital”.

Riscos e Raízes

Por Simone Weil

Segurança é uma necessidade vital para a alma. Segurança significa que a alma não está esmagada sob o peso do medo e do terror. Medo e terror, se convertidos em estados permanentes, são venenos mortais, seja quando causados pela ameaça da fome, perseguição policial, pela presença de um conquistador estrangeiro, probabilidade de guerra ou quaisquer outras calamidades. Os senhores romanos costumavam pendurar um chicote na entrada de suas casas, à vista dos escravos, sabendo que a visão do instrumento repressor os reduziria ao estado de semimorte, indispensável à escravidão. Os egípcios antigos diziam que homem justo seria aquele que poderia afirmar convictamente ao morrer: “Jamais causei medo a ninguém”. Mesmo que o medo esteja escondido sob forma latente e seus dolorosos efeitos só raramente sejam vividos, continua sendo uma terrível doença. É a paralisia da alma.

Risco é uma necessidade vital da alma. A ausência de risco produz uma apatia que paralisa a alma de forma diferente do medo, porém com a mesma intensidade. Existem situações que produzem ebulições difusas sem contudo apresentar nenhum risco definido e que contêm os dois tipos de paralisia: a do medo e da apatia. O risco é uma forma de perigo que provoca uma reação deliberada pois não ultrapassa os recursos e possibilidade da alma, a ponto de esmagá-la sob o peso do medo. Em alguns casos, o risco envolve aspectos lúdicos. Em outros, quando obrigações definidas e extremamente claras são apresentadas diante do homem, representa perfeito estímulo. A proteção da humanidade contra o medo e o terror não implica absolutamente a abolição do risco. Implica, ao contrário, a permanente presença de uma certa dose de risco em todos os aspectos da vida social. A ausência de risco enfraquece a coragem, a ponto de deixar a alma sem a menor autodefesa contra o medo, desacostumando-a da necessidade dos imprevistos. O que se quer do risco é que não seja transformado numa sensação de inexorabilidade ou fatalidade. A honra é uma necessidade da alma. O respeito que se conceda a um ser humano em particular, mesmo satisfatório, não é suficiente para compensar o desrespeito com que, porventura, se trate o gênero humano. A dignidade e decência não se restringem a vivências singulares, mas à convivência ampla. Um bandido trata bem da sua família, mas, não obstante, humilha suas vítimas. A opressão despreza a necessidade de honra. As conquistas subjugam honra e dignidade dos conquistados, ao mesmo tempo em que ensurdecem honra e dignidade dos conquistadores. Estar aberta à vida é uma necessidade vital da alma. Não rejeitar mudanças, admitir o bafejo do novo, contrariar o conformismo são imposições do viver. A inércia estanca a criatividade. O rancor é uma forma de inércia, o terror é uma forma de inércia, a beligerância é uma forma de inércia. A busca da paz é uma forma dinâmica de viver. A necessidade de criar e buscar raízes não poder ser confundida com a impassibilidade do medo. É uma necessidade vital para a alma.


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