Segurança pública: até quando seguiremos enxugando gelo?

Encarceramento não reduz a violência, são necessárias a mediação de conflitos e políticas preventivas passa necessariamente pelo fim da guerra às drogas.

Luciana Genro e Samir Oliveira 21 fev 2018, 17:19

A situação dramática da segurança pública no Brasil nos provoca a um permanente debate sobre o tema. Ao mesmo tempo em que a população sofre com uma brutal sensação de insegurança, alimentada pelos frequentes assaltos e noticias de homicídios, a sensação de que os “bandidos” não ficam presos também é alimentada pela mídia. Por outro lado vemos presídios superlotados, verdadeiras masmorras onde os direitos humanos mais básicos são negligenciados. O perfil dos presos é conhecido: a maioria esmagadora são jovens negros oriundos das periferias das grandes cidades, presos por tráfico, muito embora o número de mulheres encarceradas por tráfico tenha crescido assustadoramente nos últimos anos.

Recentemente a Emancipa Mulher1 promoveu um interessante debate na Câmara Municipal de Porto Alegre, convidando exclusivamente mulheres para compor a mesa e discutir o problema da segurança pública. Estiveram presentes a juíza Sonáli Zluhan, da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, a defensora pública Tatiana Boeira, a titular da Delegacia da Mulher de Viamão, Jeiselaure Souza, e a doutora em Ciências Criminais, Christiane Freire. Como advogada e presidente da ONG Emancipa Educação Popular, também estive presente na mediação e coordenação do encontro. A proposta era que as mulheres tomassem a palavra no debate sobre segurança pública. Geralmente mesas só com mulheres acontecem para debater questões de gênero, o que é muito importante e necessário. Mas não aceitamos que nos confinem exclusivamente nos debates de gênero, pois as mulheres podem liderar debates sobre questões políticas gerais, inclusive na área da segurança pública, que costuma ser bem masculina.

A juíza Sonáli Zluhan é responsável pela fiscalização da execução das penas na Cadeia Pública de Porto Alegre – nome dado ao Presídio Central. Num desabafo, ela confessou que opera na ilegalidade. “Se eu exigir o cumprimento da lei de execuções penais, vou ter que fechar todos os presídios sob a minha jurisdição. Eu trabalho na ilegalidade, porque não consigo fazer cumprir a lei. Quem conhece a lei de execuções penais sabe que não se cumpre nada em relação aos presos. Cumpre-se a lei na hora de condenar, mas na hora em que os presos estão cumprindo a pena, não se quer saber de mais nada”, lamentou.

Sonáli falou sobre as péssimas condições do Presídio Central, que está superlotado – conta com 5 mil presos e tem capacidade para 1,4 mil vagas. “O muro alto dos presídios não existe apenas para que os detentos não saiam, mas também para que a gente não veja todo o tipo de arbitrariedade que ocorre lá dentro. É um sistema comparado à Idade Média, aos tempos em que prendíamos pessoas em masmorras e torturávamos”, comentou, enfatizando que os presos são condenados não apenas a cumprir penas, mas também a se filiar em alguma facção.

O último relatório do Infopen revelou que o Brasil já ultrapassou a Rússia e possui a terceira população carcerária do mundo, com 726 mil presos. Cerca de 40% deles sequer foram condenados. A imensa maioria é negra, pobre e com ensino fundamental incompleto. E o déficit de vagas só aumenta. Enquanto a população carcerária aumentou em 28.094 presos no primeiro semestre de 2016, os presídios registraram uma queda de 3.152 vagas.

A defensora pública Tatiana Boeira apontou “uma banalização das prisões cautelares” no Brasil e afirma que os juízes, muitas vezes, optam pelo encarceramento provisório em resposta a uma pressão da mídia e a um clamor popular punitivista.

“Temos pessoas presas há cinco anos provisoriamente. Tu podes impetrar habeas corpus, entrar com pedidos nos tribunais em Brasília, e eles vão seguir presos preventivamente, aguardando um julgamento em que, às vezes, são absolvidos. Ao ficar tanto tempo aguardando o nosso sistema funcionar, acabam entrando para uma facção e adquirindo dívidas com elas”, explicou.

Encarceramento não reduz a violência

Doutora em Ciências Criminais e pesquisadora da área da segurança pública, Christiane Freire trouxe para a mesa as elaborações que a academia vem produzindo acerca do tema. Ela contesta a discurso de que haja impunidade no Brasil. “A nova racionalidade penal diz que existe impunidade no país. Na verdade existe impunidade com um recorte bem específico, que tem a ver com a tipologia criminal e com quem praticou o crime”, analisou.

Ela ressaltou que há uma relação direta entre o encarceramento em massa no Brasil e os índices de violência, contrariando a visão comum de que mais prisões significariam mais segurança nas ruas. “O aumento do encarceramento não reduz a criminalidade. Não é uma afirmação ideológica, é algo objetivo, racional e matemático. O aumento da criminalidade violenta no Brasil não sofre nenhum impacto com o aumento do encarceramento. Quem alimenta as organizações criminosas no Brasil é justamente o grande encarceramento”, pontuou.

Para Christiane, que é pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Criminal (GPESC) na PUC-RS, é preocupante o papel da militarização na segurança pública. “Podemos verificar isso na criminalização dos movimentos sociais e nas grandes operações dentro das comunidades com o Exército. Ninguém ouve falar do ministro da Justiça, quem dá o tom da segurança pública é o Exército e o Ministério da Defesa”, critica.

Mediação de conflitos e políticas preventivas

A delegada Jeiselaure Souza, titular da Delegacia da Mulher de Viamão, avaliou que a segurança pública só poderá avançar a partir de um trabalho integrado entre todas as instituições. Ela discorda da noção de que este seria apenas um problema da polícia. “Temos que desmistificar essa cultura de que segurança pública é um problema da polícia. A polícia deveria ser o último meio para garantir segurança”, ponderou.

Jeiselaure criticou o número excessivo de presos detidos em delegacias no Rio Grande do Sul – segundo ela, uma “bomba prestes a explodir”, pois coloca em risco os policiais, as pessoas que buscam atendimento nas unidades e os próprios detentos, mantidos em locais sem condições adequadas ao encarceramento.

Para a delegada, é preciso apostar em programas de prevenção à violência e no diálogo com as comunidades. Ela citou o exemplo do projeto “Papo de Responsa”, em que a Polícia Civil conversa com alunos nas escolas sobre temas como drogas, bullying e violência doméstica. E também falou sobre o programa “Mediar”, em que a entidade atua diretamente na mediação de conflitos, reduzindo índices de reincidência e desafogando a demanda do Poder Judiciário.

Jeiselaure também comentou sobre sua área de atuação, a Delegacia da Mulher, apontando a necessidade de se tratar os agressores de mulheres. “Não podemos pensar em acolher as mulher vítimas de violência sem também tratar os agressores. Se não fizermos isso, eles certamente irão reproduzir esse comportamento com outras vítimas e gerar um novo ciclo de violência”, expressou.

A guerra às drogas precisa acabar

Ouvindo estas mulheres podemos perceber claramente que o problema da segurança pública não pode ser resolvido com medidas simples como o aumento das penas, uma resposta muito frequente dada pelo Parlamento diante de algum crime de repercussão. Há muita gente presa e mesmo assim a criminalidade tem aumentado na mesma medida em que aumenta a crise social e piora a situação dentro das prisões, levando os réus primários a juntar-se às facções para sobreviver nestes infernos.

Loïc Wacquant, em As Prisões da Miséria2, demonstra como o “mais Estado policial” tem substituído o “menos Estado econômico e social”, e que este menos é, em última análise, a causa do aumento da violência generalizada. Se tomarmos a VIDA e a LIBERDADE como os bens jurídicos mais valiosos para o ser humano, a ideia de que o direito penal tem como objetivo tutelá-los é apenas uma função declarada, mas nunca realizada. A retórica humanista apenas dissimula a realidade cruel: um direito penal autoritário, discriminatório, violento e ineficaz do ponto de vista da defesa da vida e da liberdade.

A chamada guerra às drogas é hoje o mais poderoso instrumento de criminalização da pobreza e de instigação ao racismo. Conforme Wacquant, o sistema penal hipertrofiado tem “um lugar central no aparato emergente para a gestão da pobreza”3. Está cada vez mais evidente que os efeitos negativos agregados da criminalização e do proibicionismo são muito superiores às consequências do uso ou do abuso das drogas ilícitas. Dos 50 mil homicídios dolosos anuais, grande parte relaciona-se ao tráfico de drogas, seja fruto das disputas entre os traficantes, seja do enfrentamento da polícia com os mesmos. E há, ainda, os mortos “por engano”, como o famoso caso de Amarildo, até hoje não esclarecido, e tantos outros que não tiveram repercussão na mídia. Sabe-se também que a corrupção policial é alimentada pelas oportunidades de negócios ilícitos que o comércio clandestino propicia. E ainda há que somar os custos financeiros e humanos impostos pelo sistema penitenciário, assim como os gastos com as instituições de segurança e de justiça criminal, cujas energias são em boa parte consumidas com essa vasta problemática.

A nossa lei antidrogas (nº 11.343/06), promulgada pelo ex-presidente Lula, é o que se chama de “norma penal aberta”. Isto é, não há uma diferenciação estrita entre o usuário e o traficante, pois não fornece critérios objetivos para diferenciá-los.

Para o usuário não há pena de prisão, porém a questão é quem terá o “privilégio” de ser tratado como usuário. Para determinar se a droga destina-se a consumo pessoal “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstancias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente” (artigo 28 parágrafo 2º).

Aqui, evidentemente, não há um critério objetivo. Se a pessoa flagrada em posse da droga tiver uma “aparência” de traficante, poderá ser indiciada pela polícia ou denunciada pelo MP como traficante. Isto é, se estiver numa favela, ou for visivelmente pobre e/ou negro, mesmo que esteja com uma quantidade pequena de droga, poderá responder por tráfico. Entretanto, se a sua aparência for de um jovem de classe média, o mais provável – mesmo que a quantidade de droga não seja tão pequena assim – é que ele seja considerado um usuário. A mera leitura do parágrafo 2º do artigo 28 é suficiente para evidenciar que esta discriminação está autorizada pela própria lei.

O problema não se restringe à diferenciação entre usurário ou o traficante, mas também ao indivíduo que será considerado em associação com o tráfico ou não. O artigo 35 que caracteriza a associação para o tráfico determina a pena de reclusão de 3 a 10 anos, que se soma à pena do artigo 33 que caracteriza o tráfico. Assim, se o indivíduo for considerado membro de uma associação para o tráfico sua pena será aumentada significativamente. Tal caracterização também não é objetiva.

O resultado desta lei é a prisão em massa de pequenos traficantes que vendem droga para ter dinheiro para usar. Isso é totalmente inútil e inclusive contraprodudente, pois o jovem que vai para a prisão acaba por tornar-se mais perigoso ao juntar-se com facções.

Como bem lembrou a delegada Jeiselaure no debate de Porto Alegre, é preciso fortalecer a investigação dos crimes de lavagem de dinheiro, agindo sobre os bens dos grandes traficantes. “Temos que atacar o patrimônio das pessoas que estão no comando das facções e repensar a política de drogas. Punir e prender usuários de drogas não enfrenta o problema.”

E os grandes traficantes, como os que carregam helicópteros recheados de cocaína, não estão nas favelas e nem nas prisões.

A desencarcerização do usuário é um avanço, mas totalmente insuficiente. Além da discriminação evidente, vemos que mesmo com o desencarceramento do usuário seguimos com uma lei que estimula a manutenção da política de “Guerra às Drogas”.

Mas esta política tem fracassado no mundo todo. O aumento dos esforços policiais no combate às drogas e as penas mais duras não têm como consequência uma diminuição no número de usuários e dependentes, mas sim um aumento dos crimes relacionados às drogas – tanto crimes contra a vida como crimes de corrupção.

Salo de Carvalho explica que existe uma falsa imagem de que o direito penal e o processo criminalizador podem ser instrumentos eficazes no controle ou erradicação do consumo de drogas e que esta falsa imagem deriva de uma visão equivocada do fenômeno das drogas. Nesta ótica haveria um vínculo indissolúvel entre consumo e dependência, uma irreversibilidade desta dependência, uma necessária subcultura criminal formada pelos usuários e ainda a convicção de que o usuário não tem condições de ter uma vida produtiva. Os estudos criminológicos, entretanto, têm desconstituído esta imagem, sobretudo demonstrando ser falsa conexão entre usuários e toxicômanos e ainda entre usuários e subculturas criminais.4

Luís Eduardo Soares, experiente antropólogo e estudioso do tema, insiste sempre que está evidenciado que não há eficácia prática na proibição. O acesso de consumidores potenciais às drogas continua sendo uma realidade inabalável ao longo das últimas décadas, apesar das políticas repressivas, independentemente do volume de dinheiro investido (ou perdido) nessa guerra e da qualidade das polícias mobilizadas. O acesso não é afetado pela proibição. Por isso, flexibilizações legais não importam em expressiva mudança na demanda.

Muito embora insuficiente do ponto de vista da desestruturação do tráfico e de todas as suas consequências, a descriminalização da maconha seria um inegável passo adiante na luta contra o proibicionismo. Marcelo Niel, médico psiquiatra e psicoterapeuta especializado no tratamento de dependentes químicos e professor do Departamento de Psiquiatria da Santa Casa de São Paulo, pontua que hoje a discussão sobre a descriminalização gira em torno principalmente da maconha, pois ela é considerada pelos organismos internacionais de saúde como uma droga “leve”, pois os prejuízos para quem a consome são muito menores quando comparados a outras drogas. Ele relata ainda que a maconha pode ser utilizada de forma bastante eficiente no controle da dependência do crack. Um estudo realizado pelo Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) demonstrou que 68% dos dependentes de crack avaliados conseguiram atingir a abstinência fumando apenas maconha. Evidentemente que o uso da maconha não é isento de risco, pois é uma substância que pode causar dependência e trazer prejuízos, assim como outras substâncias lícitas, como o álcool, o café e o cigarro, que causam dependência e muitos danos à saúde5.

Enquanto não repensarmos a política de tratamento à droga, não só no Brasil, mas no mundo, não vamos conseguir ir ao cerne do problema da violência e da superpopulação carcerária. O fato que salta aos olhos de quem analisa o problema é que os índices de violência e encarceramento estão ligados a essa política repressiva às drogas.

Para além da questão das drogas, uma política de segurança pública eficaz não pode estar desvinculada de mudanças estruturais, com a criação de políticas públicas que ofereçam alternativas à juventude marginalizada. Os presos têm classe, cor e condições precárias de moradia. Sem atacar as raízes da desigualdade e da marginalização qualquer política de segurança será apenas enxugar gelo.


Notas

1 A Emancipa Mulher é um braço da ONG Emancipa Educação Popular, que promove debates e cursos voltados para mulheres, com enfoque feminista e antirracista.

2 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

3 Wacquant, Loic. As prisões da Miséria. Rio de janeiro: Zahar, 2011. Pág. 22.

4 Carvalho, Salo de. Estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª Ed.rev.,atua. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 237-238

5 http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/86/descriminalizacao-das-drogas-do-debate-a-guerra-293295-1.asp


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