Boulos e a herança do lulismo

Roberto Robaina, dirigente do PSOL, avalia a aproximação de Guilherme Boulos ao lulismo na construção de sua pré-candidatura à Presidência da República.

Roberto Robaina 4 mar 2018, 16:20

Para o povo brasileiro, a diferença entre esquerda e direita passou a ser muito confusa, sútil, as vezes até inexistente. É que os anos de governo do PT, atuando em nome da esquerda, tiveram muitos elementos de continuidade com as experiências dos governos dos partidos burgueses e da direita em sentido amplo. Não é um fenômeno nacional. Mas no Brasil ocorreu recentemente. Henrique Meirelles, por exemplo, atual ministro da economia de Temer, foi o nome forte de Lula no comando do Banco Central desde o início das gestões petistas. Como se sabe, também o patrimonialismo e a apropriação ilegal dos fundos públicos foram algo comum. Os elementos de continuísmo são inúmeros. A percepção do povo de que esquerda e direita não têm diferença se reforçou. Tal percepção reflete o real. Deve ser levada a sério. Não reflete, porém, todo o real.

Tanto é assim que, com a crise de 2008 no mundo e suas repercussões no Brasil pouco depois, a maioria da burguesia apertou ainda mais o executivo federal para ajustar com força redobrada os interesses e cortar os direitos dos trabalhadores e do povo. O segundo mandato de Dilma tentou cumprir esta tarefa escolhendo Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda (homem forte do Bradesco e das equipes econômicas tucanas) mas o PT não teve coesão para levar adiante o plano Levy. Tal ausência de coesão foi a base para que a crise entre o PT e a burguesia se estabelecesse. A burguesia já havia percebido que a utilidade maior do PT de controlar a rebeldia do movimento de massas havia se esgotado, tal como indicavam as jornadas de junho de 2013. Agora percebia a dificuldade do PT de fazer o trabalho sujo maior num momento de crise econômica. Assim também deve ser levado a sério que a esquerda representada pelo PT e os partidos da burguesia brasileira não são iguais. Neste sentido, esquerda (mesmo a que podemos chamar de esquerda tradicional ou reformista) e direita seguem sendo diferentes.

Há elementos do real na identidade e na diferenciação entre tal esquerda e a direita. A experiência das massas com os governos petistas, contudo, foi interrompida. Quando estaria para ser tomada a decisão final entre dois elementos do real, a identificação e a diferenciação, veio o impeachment. Embora não tenha sido planejado de modo unificado pela burguesia e tenha grande parte de seu desencadeamento motivado pelas divergências dos antigos aliados petistas do PMDB, então encurralados pela operação Lava Jato, acabou contando com o apoio do capital financeiro, interessado nas promessas de Temer de fazer o que Dilma não tinha governabilidade para executar no terreno econômico. Com a impeachment efetuado e com Temer governando, uma parte das massas viram que a situação podia ficar, sem o PT, pior do que com ele. A experiência em curso das massas com o petismo foi interrompida. Não toda, até porque uma experiência forte já havia sido feita. Mas o horizonte do possível, tão comum em situações normais, marcou a consciência das massas no sentido de ver apenas dois polos da política, PT e Lula, por um lado, e os partidos tradicionais da burguesia e sua mídia corporativa por outro. Um terceiro campo foi bloqueado pelas dificuldades objetivas e a inação do próprio PSOL se estabeleceu, impedindo a luta por uma subjetividade nova e alternativa. Não se diferenciar do PT foi fatal.

Além destes dois polos, e pelos anos de regime comum entre o PT e os partidos burgueses, há um enorme descrédito das massas com tudo o que aí está. Uma parte deste descrédito tem sido aproveitada pela candidatura de Bolsonaro. Tal descrédito, contudo, é muito maior, mais profundo e não tem apenas tendências latentes pela direita, mas também pela esquerda. Um descrédito com peso de massas, que tem mais peso do que todas as forças positivas somadas. Estamos num estágio de consciência negativa predominando nas amplas massas.

A negação por si mesma é incapaz de oferecer uma alternativa. Ainda assim, acreditamos que uma política de emancipação deve se apoiar nela. Ocorre que uma parte dos dirigentes do PSOL aposta em ter uma herança do petismo e em particular de Lula. Este setor do PSOL, que agora conta com a vontade de Guilherme Boulos de ser candidato a presidente numa aliança de movimentos sociais com o partido, se apoia no fato de que Lula ainda tem um peso eleitoral de massas. De fato, em termos positivos, há duas tendências fortes na consciência das massas, para além da negação e da repulsa com todos os partidos. Aqueles que consideram que esquerda e direita são todos iguais e aqueles que diferenciam esquerda e direita mas consideram que o PT é a única esquerda ou que é o líder da esquerda, especialmente Lula. Mas neste ponto também é que o PSOL deveria entrar e construir o novo. Em seus anos de existência o partido conseguiu existir. Converteu-se num fato. Em alguns lugares começou a disputar com o PT e a ocupar o espaço que até então era do PT. E ocupava este espaço não se subordinando, mas se postulando como alternativa. Em alguns estados em que o PT faliu antes do PSOL nascer, o trabalho foi mais fácil. É o caso do Rio de Janeiro, onde o PT foi liquidado em 1998, com a intervenção do próprio Lula e de José Dirceu contra Vladimir Palmeira. Nacionalmente, contudo, o processo é mais difícil e o trabalho estava e está em curso, como de resto também no Rio.

Este trabalho, porém, com a política que está levando adiante a liderança de Boulos, sofrerá uma mudança de rota e irá confundir mais o PSOL com o PT. Isso porque Boulos quer ter como linha central de sua campanha herdar os votos de Lula. Para isso se apresenta dia sim e outro também como defensor de Lula. E não está se apresentando apenas como defensor do direito de Lula ser candidato. Tal defesa é lícita. Mas se apresenta reivindicando o caráter progressista dos governos do PT, como exemplos limitados de governos progressistas, dando a entender que foram governos populares que apenas erraram porque confiaram na possibilidade de conciliação com a burguesia. Penso que esta linha é de renúncia de construção de uma verdadeira nova esquerda. E creio que é uma linha pragmática que se opõe a necessidade de uma nova política. Até porque, se é para defender o caráter progressista dos governos petistas e da liderança de Lula, reivindicando-o como principal expoente da esquerda, então o certo e corajoso é defender o nome que Lula vai indicar, caso ele não possa ser o candidato.

De nossa parte, da parte daqueles que fundaram o PSOL e sabem que a direita atual e a esquerda atual dirigida pelo PT têm em comum a defesa da política sem a participação ativa das massas, não vamos desistir de lutar por um caminho realmente novo. O lulismo foi uma expressão de uma estratégia de conciliação de classes, como até mesmo Boulos tem dito algumas vezes. Querer ser seu herdeiro inevitavelmente é uma forma de valorização desta estratégia. Se é para afirmar o novo, é preciso ser realmente novo. Hegel dizia que os mortos que enterrem os seus mortos. Em termos de mudança revolucionária é o caso, ainda que no terreno eleitoral sei que não é o caso do lulismo nestas eleições. Mas cabe aos petistas sua herança. Nosso cálculo não pode ter como eixo obter os votos que Lula não poderá ter, uma orientação eleitoralista que nos afasta da necessidade de construção de uma verdadeira novidade política (e creio ainda que será uma linha estúpida em termos eleitorais porque os eleitores irão preferir o indicado por Lula e não apenas quem se declara seu amigo e aliado). Devemos apostar na construção de um projeto próprio que mostre para aqueles que acham que a esquerda e a direita são iguais que outra esquerda é possível; aos que acham que Lula é a esquerda possível, que outra esquerda é necessária; e, para os que não acreditam em mais nada, que confiem apenas em si mesmos.


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