Der junge Marx: a classe e o partido
Como compreender a questão da classe trabalhadora e do partido político a partir da obra original de Karl Marx?
O ano que passou foi marcado pelo centenário da revolução russa, sem dúvida esse é o principal exemplo guia para aquelas e aqueles que lutam e acreditam na construção de um mundo novo, sob o prisma da emancipação da classe trabalhadora. Já este ano celebramos a memória de Marx, dado a marca de duzentos anos de seu nascimento. Na passagem de um ano para o outro, oficialmente chegou ao público brasileiro o filme O Jovem Karl Marx. Evidentemente, a película não está no mesmo quadrante de importância das datas mencionadas. Porém, considero que se encaixou como uma luva sua circulação nesse biênio cercado de simbolismo para os socialistas. Ao mesmo tempo, o longa-metragem retrata lições e pontos estratégicos que nunca é demais explorar à luz dos primeiros anos da parceria sem precedentes e de conteúdo original de Marx e Engels. Dois desses pontos serão objetos de discussão deste artigo conforme anuncia o título. Assim sendo, as linhas seguintes darão holofotes à gênese do proletariado enquanto classe em si e classe para si. E sua materialização como sujeito social revolucionário, tendo a Inglaterra como berço privilegiado desse curso, sob o batismo de sangue das greves, das insurreições operárias e das revoluções de 1848. No mesmo recorte temporal, irei destacar a natureza e as características do partido em Marx e Engels, elucidando o processo objetivo e subjetivo do avanço de consciência e de organização da classe trabalhadora no período fundante do marxismo. Todavia, o presente texto não tem a pretensão de esgotar os temas destacados dessa primeira época de organização da classe.
A primeira etapa da organização dos trabalhadores
O capitalismo desenvolveu a indústria através da propriedade privada dos meios de produção. As tarifas e taxas feudais que impediam o desenvolvimento do comércio foram eliminadas. A agricultura foi transformada e racionalizada, rompendo os laços que acorrentavam o servo à terra. Uma grande massa de camponeses pobres e sem-terra foi atraída para as emergentes manufaturas nas cidades. A partir desse trânsito e, consequentemente, com a consolidação da revolução industrial, se desenvolveu uma nova e numerosa classe social, o proletariado.
A revolução industrial foi o marco fundamental na pavimentação do capitalismo moderno. Esse processo teve sua semente com a introdução de máquinas no ramo do algodão, resultando assim a troca de parte da energia humana pela energia motriz e do modo de produção doméstico pelo sistema fabril.
O contínuo desenvolvimento do capitalismo industrial em bases de extrema exploração levou ao inevitável crescimento reivindicativo e insurrecional do proletariado. Engels, em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1844), estuda e pesquisa as condições de vida do proletariado e vê a olhos nus a penúria dos operários e das operárias. Para produzir essa obra, percorreu especialmente os bairros pobres e as fábricas de Manchester – “a oficina do mundo” até então, se vinculou com famílias proletárias, com os imigrantes operários, em sua maioria irlandeses, e aprendeu seu modo de vida. Relacionou-se diretamente com artesões, mineiros, carpinteiros, tecelões, sapateiros, alfaiates, artífices mecânicos, soldadores, etc. Foram vinte e um meses, mergulhado nas fontes originais em um sistemático estudo com ricas observações, relatos e lições. Para além dessa fabulosa experiência empírica, Engels participou de mobilizações de trabalhadores e se uniu afetivamente a uma operária, Mary Burns, imigrante irlandesa que lhe abriu as portas do meio proletário. Certamente, sem o auxílio de Mary, Engels teria extrema dificuldade para alcançar seu objetivo em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra.
Apenas para reforçar essa tomada, agrego que Émile Zola no romance Germinal (1885) também retratou de modo brilhante as condições de pauperização que viviam os operários mineiros na França. O mesmo quadro de exploração, com pequenas ressalvas, poderia ser representado pelos mesmos personagens em outros pontos da Europa sem alterar em qualidade o enredo. Victor Hugo, no clássico Os Miseráveis (1862), narrou a sarjeta e a lumpenização do proletariado francês, o triste destino das mulheres empurradas para a prostituição e dos homens empurrados para a prisão, além da cruel perseguição policial. Por outro lado, Victor Hugo, também retratou a combatividade das barricadas antiabsolutistas de 1830.
Desse modo, em maior ou em menor medida, a questão social, a pauperização da massa proletária e suas explosivas reivindicações por melhores condições de vida foram os fatores objetivos para parte determinante do surgimento das sociedades secretas conspirativas, das associações, dos sindicatos e dos partidos operários nos países industrializados.
A Inglaterra foi o país mais industrializado da Europa do século XIX e, como consequência, os primeiros embriões de organização genuinamente da classe trabalhadora se deram lá. No entanto, a revolução francesa contribuiu de modo decisivo para elementos da vanguarda de trabalhadores se organizarem como uma espécie de “seção” do jacobinismo em solo inglês. Em 1792, o sapateiro escocês Thomas Hardy e oito seguidores (artesões, mecânicos e lojistas) fundaram “uma associação operária chamada de Sociedade de Correspondência de Londres, que por ele [Hardy] foi posta em contato com os jacobinos franceses”1. A associação iniciou com menos de uma dezena de membros, porém, segundo E. P. Thompson, seis meses depois a SCL anunciava ter dois mil membros 2. A associação “era organizada em seções [células ou núcleos], cada uma com 30 membros, que ao atingir 45 ou 60 membros, formava uma nova seção”3. A SCL se correspondia com outras associações de perfil similar que igualmente existiam em Manchester, Derby e Sheffield.
Dois anos depois da fundação da SCL, Thomas Hardy foi preso acusado de alta traição. A Sra. Hardy morreu durante o parto em consequência do choque sofrido por ter tido a casa sitiada por um grupo conservadores aos gritos de “Rei e Igreja”. Após nove dias de julgamento, devido a uma forte pressão, Thomas Hardy foi libertado e saiu do tribunal carregado por uma multidão de londrinos. Porém, em seguida, a SCL seria duramente perseguida até o encerramento de suas atividades cinco anos após seu nascimento.
A finalidade dessa associação se balizava pela conquista das ideias igualitaristas – Direito do Homem – com destaque para a defesa do sufrágio universal (direito ao voto dos operários), a reforma parlamentar, a reivindicação de uma legislação destinada à proteção dos operários e, até mesmo, a abolição da escravidão no além-mar. Em que pese a existência efêmera da Sociedade de Correspondência de Londres, essa embrionária organização se agrega como primeira dobra do leque acumulativo do movimento operário britânico e internacional.
Esgotada a vida útil das sociedades de correspondência, a energia dos trabalhadores foi jogada no movimento ludista4 (1812). Sua ação prioritária consistia na destruição de maquinários nas manufaturas. Todavia, Hobsbawm em Os Trabalhadores5 elucida que a destruição de máquinas era um método de ação padrão dos trabalhadores no período nascente da revolução industrial, aplicado correntemente no decorrer do século XVIII.
Do ludismo é importante salientar três pontos: 1) em essência a destruição dos maquinários tinha motivos concretos para acontecer, como a chegada de máquinas nas tecelagens que gerava desemprego. Esse fator agregado a outros, como os maus tratos nas oficinas, levou os trabalhadores a se rebelarem e darem o recado para os patrões via o método da destruição; 2) a ação ludista não se restringia ao maquinário, mas igualmente às matérias-primas, produtos manufaturados e ferramentas do ofício. Em alguns levantes a ação chegou a ocupar casas de patrões e de fura-greves, destruindo utensílios domésticos e a mobília; 3) esse método de ação também foi utilizado para combater o aumento do preço dos alimentos, para impedir a redução de salários e como meio de intimidação na hipótese dos patrões não atenderem as reivindicações dos operários.
Em suma, o ludismo foi uma tentativa ainda rudimentar de orientar as ações do movimento operário. Porém, esse método não vingou como uma alternativa eficaz, já que era limitado a determinadas localidades e balizado no imediato. Não havia horizonte potencial. Para dificultar ainda mais, após a ação, a burguesia voltava suas energias para castigar vorazmente os membros do movimento. Cabeças foram a prêmio e traidores delatavam os líderes ludistas para abocanhar duas mil libras de recompensa. Assim, de prisão em prisão, execução em execução, o movimento dos “destruidores de máquinas” não se desenvolveu. Entretanto, a latência reivindicativa e de organização genuína dos trabalhadores permaneceu. Devido a essa “panela de pressão”, foi aprovado no parlamento inglês, em 1824, a liberdade de livre associação aos operários. Direito que até então era negado aos trabalhadores do Império Britânico.
A partir desse marco democrático, associações legais brotaram vertiginosamente por toda a Inglaterra. Essas associações se chamariam Trade Unions. Sua natureza consistia na defesa dos direitos dos trabalhadores. Entre suas bases, estava a regulação dos salários em relação ao lucro dos industriais, a garantia de mediação nas negociações entre empregados e patrões nas fábricas, a organização de greves, mobilizações etc. Na prática, em forma e conteúdo, as Trade Unions foram as primeiras organizações sindicais amplamente reconhecidas como tal6.
Nesse ambiente, ainda no Reino Unido, sob os ventos da livre associação e das nascentes Trade Unions, surge no final da década de trinta o cartismo (maio de 1838) – representantes da Carta do Povo. Essa organização apresentava um programa democrático-radical para a época. Em essência, os cartistas defendiam: sufrágio universal; renovação anual do parlamento; remuneração para os parlamentares, de modo que os operários pudessem exercer os mandatos plenamente7; eleição por voto secreto; colégios eleitorais iguais para garantir a igualdade de representações; supressão da exigência de posse de propriedades fundiárias no valor de trezentas libras como condição de elegibilidade; redução da jornada de trabalho para dez horas8; proteção ao trabalho infantil, entre outros pontos.
A Carta do Povo agrupou indivíduos que viviam do seu próprio suor ao redor de um programa social e democrático que, em certa medida, universalizava parte das principais aspirações e necessidades da classe trabalhadora naquele tempo. E, com esse programa na mão, organizaram comícios, manifestações, greves e petições com milhares de assinaturas, que foram levadas ao parlamento inglês com suas reivindicações. Ou seja, se organizaram e militaram por esse programa. O cartismo era a materialização condensada da oposição à burguesia, que até então se apresentava de modo fragmentado e com limites organizativos. Portanto, o cartismo foi um partido ou um proto-partido operário que teve influência de massas na Inglaterra e que irradiou seu exemplo para outros países da Europa.
Do ponto de vista interno, o cartismo agregava duas tendências políticas principais. Uma intitulava-se “partido da força física”. E a outra parte de “força moral”9. A primeira defendia a preparação de uma insurreição com o povo pegando em armas. A segunda era mais inclinada ao trabalho político-sindical. Em que pese tais matizes políticas, o centro comum do cartismo foi a própria existência da Carta, isto é, do programa e de sua organização universal. Agrega-se ainda, a greve de massas como poderoso método de ação.
No final de década de 1840 o cartismo desidrata. Entretanto, deixou um rico legado já que a década de quarenta foi um período de grandes reformas democratizantes na Inglaterra. Em tempos de contra-reformas no Brasil, é conveniente citar as reformas inglesas daquela época: regulamentação da Lei do trabalho infantil e de mulheres nas fábricas (1842); Lei de supressão dos direitos sobre os cereais (1846); Lei da jornada de trabalho de dez horas (1847). Em 1837 já havia ocorrido a reforma do código penal. Todas essas reformas progressivas para a classe trabalhadora só podem ser explicadas pelo acúmulo e tradição de combate do movimento operário inglês. E, principalmente, pela força do cartismo.
Qual a conclusão mais básica que se pôde tirar desse protótipo? Os cartistas mostraram a necessidade da classe trabalhadora se organizar politicamente e, assim, lutar por seus direitos de modo universal. A ação organizada por emendas democráticas, apoiada pela mobilização e por greves, se impôs sobre o regime monárquico-constitucional inglês. Contudo, esse notável salto à frente do movimento operário ainda não era suficiente. Cirurgicamente, Engels caracterizou a virtude e a fraqueza do partido cartista, numa comparação com os socialistas ingleses (Robert Owen):
“os cartistas são de longe os mais atrasados e menos evoluídos; mas são proletários autênticos, de carne e osso, e representam legitimamente o proletariado. Os socialistas têm horizontes mais amplos, apresentam propostas práticas contra a miséria, mas provêm originalmente da burguesia e, por isso, são incapazes de se amalgamar com a classe operária. A fusão do socialismo com o cartismo, a reconstituição do comunismo francês em moldes ingleses, será a próxima etapa e ela já está em curso. Quando estiver realizada, a classe operária será realmente senhora da Inglaterra. Até lá, o desenvolvimento político e social seguirá seu curso, favorecendo esse novo partido, esse progresso do cartismo”.10
Se fizermos uma analogia com um trem, podemos interpretar que o programa cartista “não chegava até a última estação”. Assim sendo, utilizando o gabarito de Engels, conclui-se que o Manifesto Comunista foi justamente o avanço consciente de uma organização com um programa que propõe chegar até a “estação terminal do capitalismo” e ir adiante, guiado pela bússola da emancipação dos trabalhadores via uma revolução social que exproprie os expropriadores.
Sobre o tema da consciência, para uma abordagem mais abrangente e fecunda, recomendo o artigo Faz Sentido um Partido Político Socialista? de Roberto Robaina 11
O partido operário independente
Em fevereiro de 1848 foi publicado o Manifesto Comunista e, quase que ao mesmo momento, explodiu a revolução europeia que sacodiu os regimes monárquicos e autocráticos. A fila foi puxada pela revolução de fevereiro na França, a qual foi sucedida por levantes na Alemanha, na Polônia, na Áustria, na Hungria, na Itália, além de outros povos que começaram a se insurgir, cada um conforme sua situação social imediata. Durante a primeira onda de sublevação, a bandeira tricolor igualitarista tremulou imponente no ponto mais alto. A revolução de cunho democrático (animada por pautas nacionais, republicanas e populares), por óbvio, não ocorreu por conta do brilhantismo teórico do manifesto redigido por Karl Marx e Friedrich Engels, ainda que ele tenha um nítido ponto de convergência com os acontecimentos e com as circunstâncias embutidas.
O ambiente efervescente da Europa, a crise econômica no continente, a insatisfação de frações da burguesia e a mazela social das massas, portanto, foram fatores objetivos para a existência da revolução de 1848 – também chamada de “primavera dos povos” – e do próprio Manifesto tal como veio ao mundo. Em destaque como fatores antecedentes de maior envergadura, para além da experiência cartista, registra-se a greve geral em Manchester e no País de Gales, a insurreição de Lyon sob a bandeira da república e o levante dos tecelões da Silésia prussiana.
Aliás, o levante silesiano de junho de 1844 é uma página decisiva para a evolução do marxismo. A ação dos tecelões não se restringiu contra as máquinas, mas se deu contra o poder dos burgueses e dos banqueiros, assim como contra a propriedade privada. Este evento em especial, no território da confederação germânica, foi sintomático para Marx e Engels concluírem o comunismo como uma práxis. Um movimento social e político, com um programa que luta pelo poder. E a força motriz dessa engrenagem, o sujeito social revolucionário, é a classe trabalhadora. Isto é, o papel protagonista não é o do intelectual hegeliano de esquerda (corrente que Marx pertenceu inicialmente) e sim da massa trabalhadora. Portanto, não basta interpretar o mundo. É preciso transformá-lo pela ação. Porém, para chegar até esta conclusão pilar, o fator subjetivo, consciente, de Marx e Engels foi determinante. Logo, a revolução de 1848 poderia ocorrer sem a influência direta de Engels e Marx, mas o Manifesto não. Portanto, o Manifesto foi a expressão escrita dessa combinação de fatores.
A revolução de 1848 foi asfixiada. Na França, o principal boulevard revolucionário – a burguesia republicana, uma vez com o controle do poder, voltou suas baionetas contra o proletariado com quem havia cerrado fileiras nas primeiras voltas da derrubada da monarquia de Luis Filipe, que reinava em aliança com a aristocracia financeira (fração mais abastada da burguesia). Portanto, a Segunda República francesa – governo provisório – nasce com interesses antagônicos em jogo e uma intensa luta entre classes e frações de classe distintas. Nitidamente, o governo era predominantemente burguês. O proletariado, com suas colunas, exigiu a mudança da política trabalhista. Porém, a burguesia repeliu as ofensivas dos trabalhadores. O temor de uma nova revolução, dessa vez proletária, fez com que a burguesia tomasse medidas conservadoras. Tal situação ocasionou em junho uma nova insurreição em Paris, como já se previa, do proletariado contra o governo republicano. Nessa medição de forças, a burguesia, melhor organizada e muito bem armada, venceu a sangrenta batalha. Entretanto, a lição ficou cicatrizada na classe operária. Assim sendo, a revolução de 1848 é o terreno empírico que irá definitivamente dividir os campos entre burgueses e proletários. Portanto, como afirma Marx em as Lutas de Classe na França: “só depois de mergulhada no sangue dos insurgentes [revolucionários] de junho a [bandeira] tricolor se transformou na bandeira da revolução europeia – na bandeira vermelha!”12. A insurreição operária de junho ocasionou uma reviravolta no processo, dando combustível necessário para a contrarrevolução ir ao ataque e dominar a situação. Desse modo, Luís Bonaparte acende ao poder.
Apesar da derrota da jornada de 48, o Manifesto se consolidou como a pedra fundamental para os socialistas revolucionários até os dias de hoje.
Mas, a rigor, o que foi o Manifesto? Uma indagação aparentemente banal, mas que pode ser uma “casca de banana” para estudantes e, quem sabe, professores de carreira acadêmica apreciável 13.
O Manifesto, molecularmente, foi um documento público de um partido político que apresentava seu programa. Devido a essa importância, o título inicial do documento até a sua quinta edição era: Manifesto do Partido Comunista. Isto é, o Manifesto não foi e, tampouco agora é, um trabalho de tipo acadêmico. Pelo contrário, o Manifesto foi um documento de uma organização política a qual Marx e Engels pertenciam. A Liga Comunista, que antes do ingresso dos dois era designada de Liga dos Justos. Organização, para seu tempo, com razoável penetração.
“A Liga existia onde quer que existissem associações operárias alemãs; quase em todas estas associações de Inglaterra, da Bélgica, da França e da Suíça e em muitas associações da Alemanha, os membros dirigentes pertenciam à Liga e a quota-parte da Liga no movimento operário alemão que surgia foi muito significativa. Mas, além disso, a nossaLiga foi a primeira que pôs em evidência o carácter internacional do movimento operário todo e também o provou praticamente, tendo como membros: ingleses, belgas, húngaros, polacos, etc, e organizando, nomeadamente, em Londres, reuniões internacionais de operários”.14
Logo, o Manifesto foi o encontro de “placas tectônicas” que se moviam. Apresentava um programa superior, se comparado ao cartismo, e propunha uma ideia de organização (mesmo que ainda pouca desenvolvida) distinta das anteriores. Uma organização revolucionária, mas substancialmente diferente das associações conspirativas que propunham substituir as massas na luta pelo poder, como foi a corrente revolucionária blanquista 15. De tal maneira, para Marx e Engels, como já foi referido, o proletariado era o sujeito social revolucionário e, portanto, deveria se organizar enquanto classe autodeterminada. A isto, Marx e Engels (entre outros) irão se referir como partido. Ou seja, de modo geral, toda a classe proletária era o partido. Os comunistas, desse modo, eram uma tendência com um programa no interior desse partido. Para Nahuel Moreno, a concepção de Marx e Engels estava correta para aquele período histórico, no qual ainda não havia surgido o fenômeno da aristocracia operária, tampouco o stalinismo e os fortes aparatos burocráticos no seio da classe 16.
Assim sendo, o Manifesto é a expressão do avanço de consciência canalizada em um documento que propõe, entre outros pontos, organizar a classe trabalhadora para a luta pelo poder. Essa luta seria travada pelas massas, em especial o proletariado, intervindo diretamente nos processos reais.
No que diz respeito aos processos reais, Marx e Engels não se restringiram a teoriza-los. Pelo contrário, deram o exemplo. Participaram diretamente da revolução de 1848-49 em solo germânico17. Marx, em grande medida, como correspondente da Nova Gazeta Renana. E Engels, com armas na mão, comandou regimentos militar-revolucionários. Além dessa intensa atividade, os pais do socialismo científico preservaram seu lugar destacado como dirigentes da Liga. Por esse prisma, a organização comunista se desenvolveu:
“Nos dois anos de revolução, 1848 e 1849, a Liga se afirmou de duas maneiras: em primeiro lugar porque, em toda parte, os seus membros intervieram energicamente no movimento e porque compuseram a linha de frente na imprensa, nas barricadas e nos campos de batalha, integrando as fileiras da única classe decididamente revolucionária: o proletariado”.18
Dando um salto abrupto, podemos analisar nesse recorte que a interpretação de partido de Marx e Engels não era a mesma que a de Lênin. Nada mais natural, pois as condições objetivas e subjetivas da classe operária também não era as mesmas. De todo modo, vimos que em Marx e Engels está presente a necessidade da associação entre os proletários ao redor de um programa radical, porém ainda não havia uma consciência mais edificada de um partido perene que convergiria a estratégia, as táticas, o trabalho legal e ilegal. Talvez possamos considerar que tais elementos estavam contidos potencialmente. Apenas para dar um exemplo: os bolcheviques tinham Sverdlov, o notável e brilhante organizador do partido. No curso da revolução alemã, Marx e Engels, enviam Joseph Moll à Prússia com a tarefa de oxigenar a organização na Liga dos Comunistas. Todavia, Moll ingressou no exército do Baden-Palatinado e tombou em combate: “A Liga perdeu com ele um de seus membros mais antigos, mais ativos e mais confiáveis, que havia participado ativamente em todos os congressos e gestões do Comitê Central”19.
Portanto, em linhas gerais, a natureza e a estrutura de partido que conhecemos e reivindicamos foi gestada no período áureo da Segunda Internacional e foi originalmente desenvolvida por Lênin no Que Fazer?, no POSDR, na fração Bolchevique, no partido Bolchevique (a partir de 1912) e, finalmente, na Terceira Internacional (nas resoluções de seus quatro primeiros congressos). Em seguida, Trotsky encabeçou a responsabilidade para dar o fio de continuidade a essa herança. A IV Internacional cumpriu um papel decisivo de defesa do programa bolchevique-leninista em tempos difíceis. Moreno, fundador de nossa corrente histórica, foi parte dessa bagagem e agregou ricos aportes com os partidos de combate que ajudou a construir ao longo de sua vida militante. Com base nessa tradição está a elaboração do MES para o nosso tempo. Nesse novo ciclo, com a derrocada da velha esquerda (socialdemocracia e stalinismo), abriu-se a necessidade de afirmarmos partidos amplos que contenham a expressão da luta democrática radical e anticapitalista que se conecta com as bandeiras socialistas. No Brasil o PSOL é uma demonstração, ainda em construção, dessa nova elaboração 20.
Todavia, diante dos processos reais em seu tempo, Marx e Engels lapidaram a ideia do partido que sintetizasse os objetivos históricos da classe trabalhadora europeia do século XIX. O que abordei no decorrer dessas linhas foi apenas o tiro de largada da organização dos trabalhadores. Já em 1850, muitos aspectos e panoramas iriam se alterar à luz da derrota da revolução de 48. Assim sendo, as delimitações do partido foram se moldando e ganhando traços novos diante das experiências empíricas. No entanto, vale a pena destacar cinco pontos que seguimos comungando dessa primeira etapa da organização dos trabalhadores em Marx e Engels: 1) o partido não pode ser uma seita ou um pequeno grupo voltado para si mesmo; 2) o partido deve estar enraizado no seio da classe trabalhadora; 3) o partido deve intervir de modo decidido nos processos reais em curso e, dele, ir se educando e se forjando como uma organização de combate; 4) o partido deve ter um programa radical para seu tempo e espaço; 5) o partido deve ser internacionalista. Esses pontos são uma lição histórica e devem prosseguir sendo uma referência para os socialistas em nossos dias.
Notas
1 BEER. História do Socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2006. p. 427-42.
2 THOMPSON. A formação da Classe Operária Inglesa . São Paulo: Paz e Terra, 1987. p. 15.
3 Ibid., p.167.
4 Sua designação faz referência a Ned Ludd que em Nottingham, após a promulgação da Lei de 1761 contra a destruição das maquinas, destruiu uma oficina têxtil.
5 HOSBAWM, E. Os Trabalhadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
6 Na década de trinta do século XIX é formada a federação nacional das Trade Unions (Associação Nacional para a Proteção do Trabalho), unificando e dando coesão a todas as categorias da classe trabalhadora no território inglês.
7 Naquele período a elite não necessitava de remuneração para exercer seus mandatos parlamentares. Por outro lado, os operários não poderiam parar de trabalhar para ocupar um posto sem remuneração.
8 A conquista da jornada de 10 horas de trabalho foi fundamental. A classe operária (homens, mulheres, idosos e crianças) em geral trabalhava mais de 14 horas por dia, 7 dias por semana. Quase não havia descanso. Com essa conquista, os trabalhadores puderam se dedicar a outras atividades: ao sindicato, à cultura, em formar seus próprios espaços de identidade e lazer, além da organização política.
9 THOMPSON, E. op. Cit., p.454.
10 ENGELS, F. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 271.
11 Disponível em: https://movimentorevista.com.br/2017/10/faz-sentido-um-partido-politico-socialista-roberto-robaina/
12 Os trabalhadores revolucionários de Paris exigiram que a bandeira vermelha fosse declarada estandarte nacional em fevereiro de 1848. Os deputados burgueses, no entanto, insistiram na bandeira tricolor. Diante do feito da revolução, em frente única, os operários aceitaram a proposta da burguesia republicana.
13 Ao utilizar o termo acadêmico não estou necessariamente colocando um sinal de igual ao termo intelectual. Isto é, nem todo acadêmico é intelectual. Nem todo intelectual é acadêmico.
14 ENGELS, F.; “Karl Marx”. In: Obras Escolhidas em três tomos. Moscou: Edições Progresso Lisboa, , 1982.
15 No seio do processo revolucionário francês surgiu uma corrente política substitucionista que ficou conhecida como blanquista (batizada com o nome de Louis Auguste Blanqui, seu principal dirigente). Essa corrente revolucionária não tinha expectativa no protagonismo dos trabalhadores mobilizados, já que para os blanquistas a classe trabalhadora não iria se rebelar violentamente contra a burguesia. Por isso, se forjaram em uma organização separada do proletariado, com membros determinados a cumprir uma tarefa que, para eles, a classe trabalhadora não iria cumprir. Ver: http://portaldelaizquierda.com/en/2017/05/acao-de-massas-ou-substitucionismo-uma-polemica-necessaria/
16 MORENO, N. Problemas de Organização.
17 A revolução na Prússia se iniciou em março de 1848. Os comunistas lançam um documento com a seguinte palavra de ordem: “Toda a Alemanha será declarada uma República una e indivisível”. Contudo, após um ano de lutas, a revolução alemã é derrotada e a monarquia é conservada.
18 ENGELS, F. Lutas de Classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 57.
19 Ibid., p. 58.
20 Como continuidade desse ponto, recomendo a leitura das Notas Compactas sobre a Situação Mundial de Pedro Fuentes. Artigo publicado em português no terceiro número da Revista Movimento.