A luta da Irlanda pela escolha

A Irlanda tem as leis sobre aborto mais restritivas da Europa – mas elas serão votadas em referendo este ano.

Sinéad Kennedy 20 abr 2018, 14:08

Todos os anos, perto do Dia de São Patrício, o establishment político irlandês envolve-se numa campanha publicitária autocongratulatória, destinada essencialmente a promover a Irlanda como um bom paraíso-fiscal. A Irlanda, diz a narrativa oficial, é um Estado-nação moderno, favorável aos negócios, com baixos impostos e baixos salários, que é agora liderado por um primeiro-ministro jovem, enérgico, assumidamente gay e neoliberal. Neste contexto, a proibição constitucional do aborto, e as visíveis tragédias por esta produzidas, parecem estar fora de sintonia. Embora o governo se tenha comprometido a realizar um referendo no início do verão para liberalizar as leis de aborto no país, a questão continua a ser fraturante, mesmo para um país que, após a vitória do referendo de 2015 sobre a igualdade no casamento, começou a ver-se como progressista. Então, por que continua o aborto a ser uma questão política tão intransigente na Irlanda, e agora, depois de décadas de campanha, estará a mudança finalmente ao nosso alcance?

A taxa de abortos na Irlanda é comparável à da maioria dos países europeus; a única diferença é o facto de a maioria dos abortos irlandeses não acontecerem na ilha da Irlanda. Há mais de 150 anos que o aborto é ilegal no país, e em quase todas as circunstâncias. É ilegal, mesmo nos casos de violação ou incesto, em casos de anomalia do feto e quando a saúde da mulher se encontra em risco. Apesar deste facto legal, centenas de milhares de mulheres na Irlanda, no Norte e no Sul, já fizeram abortos. Todos os dias, pelo menos 9 mulheres decidem sair da Irlanda e viajar para a Grã-Bretanha. Para aquelas que não podem viajar, pelo menos 2 tomam comprimidos abortivos. As mulheres que tomam comprimidos para este efeito fazem-no à margem da lei e podem ser condenadas até 14 anos de prisão. Mas, para muitas das mulheres que não têm como viajar ou que não têm a documentação necessária para o fazer, este é um risco que têm de tomar.

De modo a compreender como é que a Irlanda passou a ter leis sobre aborto tão reguladas, é necessário observar a forma como a regulamentação e o controlo da sexualidade se tornaram tão profundamente integrados nas estruturas do Estado irlandês. O Estado Livre Irlandês emergiu dos detritos de uma Guerra de Independência com a Grã-Bretanha e de uma curta mas violenta guerra civil. Quase imediatamente, o Estado recém-dividido, criado em 1922, adotou o catolicismo como uma das principais ideologias reguladoras. A Igreja Católica conferiu ao novo Estado a legitimidade que este procurava enquanto novo Estado pós-colonial e garantiu a oferta dos sistemas de ensino e de saúde, já estabelecidos, mas ideologicamente orientados. Para um Estado recém-formado, nascido da luta contra-revolucionária, a regulação e o controlo do comportamento sexual criaram uma sensação de estabilidade para uma sociedade em fluxo. Esse ideal regulador da sexualidade também se tornou numa maneira de estender a hegemonia das recém-formadas classes médias católicas que emergiram como portadoras de estabilidade e moralidade. Também permitiu ao Estado, num contexto pós-colonial onde existia uma forte pressão para definir a Irlanda como “não-Inglaterra”, a reprodução de uma identidade nacional coerente que definisse “ser-se irlandês” como sendo católico e branco. A dedicação das mulheres a reproduzir a próxima geração de irlandeses foi “elevada a um símbolo da distinção moral e cultural da Irlanda” em relação à Grã-Bretanha.

A aliança entre a Igreja e o Estado culminou na Constituição irlandesa de 1937, um documento profundamente conservador, produzido numa íntima colaboração entre a Igreja Católica e o establishment político, da autoria de Eamon de Valera e do arcebispo John Charles McQuaid, patriarcas fundadores do país. Na Constituição, o casamento e a família, baseados exclusivamente em relacionamentos heterossexuais, gozam de uma posição privilegiada. A família imaginada nestes artigos tem fortes marcadores de género, com o papel “especial” da mulher na privacidade do lar elevado a um ideal: “[O] Estado reconhece que, a partir da sua vida no lar, a mulher garante ao Estado um apoio sem o qual não seria possível atingir o bem comum”. Na realidade, esta visão da família tradicional estável, tão apreciada pela Irlanda católica, baseia-se num brutal sistema de contenção, no qual as mulheres e os seus filhos são considerados “pouco mais que uma comodidade para troca entre ordens religiosas” com o conhecimento e cumplicidade do Estado.

Proibição Constitucional

Embora a maioria dos países europeus tenham liberalizado as suas leis sobre o aborto nas décadas de 1970 e 1980, como resultado da luta dos movimentos de mulheres, a Irlanda tornou-se uma exceção, organizando em setembro de 1983 um referendo para introduzir a proibição constitucional do aborto. O referendo envolveu pedir ao eleitorado a inclusão na Constituição de um artigo “pró-vida” – conhecido como a oitava emenda – para firmar a proibição do aborto igualando-o, pelo menos em termos legais, a vida de uma mulher grávida à de um feto. Esta afirma: “O Estado reconhece o direito à vida do feto e, com o devido respeito ao igual direito à vida da mãe, e garante, na medida do possível, através das suas leis a defesa e reivindicação deste direito”. Estas palavras subordinam claramente a vida de uma mulher grávida à vida do feto e tornam o aborto ilegal na Irlanda em todas as circunstâncias, exceto quando é considerado medicamente necessário para salvar a vida (numa noção distinta da saúde) das mulheres grávidas. Na prática, estas palavras significam que, legalmente, um feto é uma entidade independente cujos direitos devem ser protegidos, independentemente do risco para a vida, a saúde e o bem-estar da gestante. Estas palavras significam que as raparigas jovens, que foram violadas e se tornaram suicidas como resultado das suas gravidezes, foram impedidas de obter assistência médica e forçadas a enfrentar um sistema legal combativo em que médicos, psiquiatras, advogados e juízes debatem os direitos sobre o controlo dos seus próprios corpos e decidem o que lhes acontecerá.

A campanha para que a emenda “pró-vida” fosse inserida na Constituição foi, até à campanha de 2015 p ela igualdade no casamento, o movimento de maior sucesso na história do Estado irlandês. A campanha surgiu no final dos anos de 1970 e 1980, quando um número muito pequeno de grupos católicos conservadores, temendo que o crescente apoio a uma maior liberalização na sociedade irlandesa pudesse levar à legalização do aborto no futuro. Procuraram consagrar na Constituição a visão católica sobre o aborto e, assim, garantir uma “reação” contra o que consideravam ser o crescente avanço de uma agenda social liberal. Após a introdução da legislação sobre igualdade salarial na Irlanda, os conservadores irlandeses começaram a argumentar que a CEE (agora a União Europeia) estava a tentar forçar um regime social liberal no país e que logo forçaria a Irlanda a adotar um regime de “aborto a pedido”. A decisão do Supremo Tribunal dos E.U.A. em Roe vs. Wade (1973), uma extensão de uma decisão dos E.U.A. de 1965 sobre o direito à contraceção, teve um profundo efeito sobre as forças conservadoras na Irlanda. Começaram a temer que surgisse em algum momento um caso semelhante, e que o Supremo Tribunal irlandês decidisse que o direito à privacidade em assuntos conjugais não incluía apenas o direito à contraceção (como o Supremo Tribunal irlandês determinou no caso McGee de 1978), mas também o direito ao aborto. Para os elementos conservadores da Irlanda, o que era necessário era uma provisão na constituição que proibisse o aborto, e não deixar a interpretação ao Supremo Tribunal. Foi esse medo que os levou a iniciar uma intensa campanha para mudar a lei que teria consequências para milhares de mulheres na Irlanda.

O primeiro apelo a uma emenda constitucional surgiu num panfleto produzido por um grupo de católicos fundamentalistas da Liga da Família Irlandesa, liderado por John O’Reilly, que visava especificamente a decisão de McGee e dizia que a questão da contracepção era demasiado importante para ser deixada nas mãos do Supremo Tribunal. O’Reilly veio a criar a campanha PLAC (Campanha pela Emenda Pró-Vida) em janeiro de 1981. Embora o foco do PLAC fosse a proibição do aborto, como argumentou o jornalista Fintan O’Toole, “para todos esses grupos, o aborto era apenas uma frente numa guerra religiosa mais ampla”: a verdadeira agenda era reverter a maré da mudança social progressista.

Desde o início, a ideologia por trás da campanha era muito mais ampla do que apenas a contracepção e o aborto. Uma das primeiras frentes na qual a campanha se organizou foi a oposição à formação de uma escola primária multi-denominacional em Dublin, argumentando que esta era um desafio ao sistema educativo no país dominado pelo catolicismo. Também iniciaram campanhas contra programas de TV “imorais”, clínicas de planeamento familiar e opuseram-se veementemente ao estabelecimento do primeiro centro de apoio a vítimas de violação em Dublin. No entanto, rapidamente ficou claro que o aborto era a questão que mais provavelmente iria maximizar o apoio aos valores tradicionais. Após dois anos e meio de campanha feroz, a oitava emenda foi aceite num referendo nacional por uma maioria de dois para um. Encorajados pela sua vitória, os ativistas anti-aborto intensificaram os seus esforços e investigaram processos contra organizações que fornecem aconselhamento sobre aborto ou informações como as Associações de Estudantes e as clínicas da Well Woman. Dois anos mais tarde, voltariam a mobilizar-se com sucesso contra as tentativas de introduzir o divórcio na Irlanda.

Opressão e aborto

As lutas pelo aborto sempre refletiram uma dinâmica mais ampla na sociedade irlandesa. As forças conservadoras descobriram no final da década de 1980 que não conseguiam conter a onda de secularização. O colapso da hegemonia católica, que demorou a concretizar-se, acelerou-se com as revelações sobre abusos sexual, as Magdalene laundries, as instituições religiosas e os lares de mães e bebés. A culpa por este aspecto doloroso e abusivo da história irlandesa não pode ser localizada apenas às portas da Igreja Católica; pelo contrário, está intimamente ligado à estrutura do Estado irlandês.

O apoio à posição antiaborto diminuiu significativamente nos últimos anos. Houve dois importantes pontos de viragem nesse declínio, ambos envolvendo casos trágicos em que as pessoas foram forçadas a confrontar a complexidade das leis do aborto irlandês não como questões éticas teóricas ou abstratas, mas como restrições aos direitos e liberdades das mulheres. O primeiro foi o caso X de 1992, que envolveu uma vítima de violação com 14 anos conhecida apenas como Ms. X. Em fevereiro de 1992, os pais de X tentaram levá-la a fazer um aborto porque a sua filha, que havia sido vioolada, disse que preferiria acabar com a própria vida do que continuar a gravidez até ao fim. A resposta do Estado Irlandês foi a de emitir um embargo do Supremo Tribunal que a impedia de abandonar o país.

Quando a história surgiu nos meios de comunicação irlandeses, alguns dias depois, houve um tumulto público. Milhares de pessoas ocuparam as ruas para expressar o seu choque e raiva com o tratamento de X. Os pais da menina apresentaram um apelo ao Supremo Tribunal e o Tribunal, sob pressão dos protestos em massa em todo o país, determinou que uma mulher tem direito ao aborto na Irlanda se a sua vida estiver em risco, incluindo em risco por suicídio. A consequência dessa decisão do Supremo Tribunal significou que o aborto seria agora legal na Irlanda, embora em circunstâncias altamente restritivas. No seguinte mês de novembro, esperando que a raiva sobre o caso de X tivesse desaparecido, o governo, sob pressão da direita católica, realizou um referendo na esperança de reverter o julgamento do caso de X. Falharam. O povo irlandês votou a favor da manutenção do acórdão do processo de X; apoiaram uma emenda constitucional garantindo o direito de viajar para fora do país para fazer um aborto; apoiavam o direito das mulheres a terem acesso a informações sobre o aborto (até 1995 era ilegal até mesmo dar a alguém o número de telefone de uma clínica de aborto na Grã-Bretanha ou na Europa). O caso de X mudou a opinião pública sobre o aborto na Irlanda, mas, embora o governo tenha prometido legislar, o medo político da direita católica permaneceu. Sete governos sucessivos falharam em reconhecer o julgamento do Supremo Tribunal Corte com legislação favorável.

Em 2012, a oitava emenda produziu uma outra tragédia, contribuindo diretamente para a morte de uma jovem mulher. Savita Halappanavar, uma mulher indiana a viver na Irlanda, apresentou-se no University College Galway Hospital com um aborto espontâneo. Após um exame médico, o aborto foi confirmado, mas os médicos sentiram que, devido à presença de um batimento cardíaco fetal, eles não poderiam agir, citando a oitava emenda. Esse atraso foi fatal e ela morreu de septicemia. A morte de Savita Halappanavar provocou novamente uma onda de horror nacional e internacional sobre o regime punitivo irlandês em relação ao aborto. O governo foi forçado a agir e finalmente introduzir a legislação “Caso X” – a Lei de Proteção da Vida Durante a Gravidez (PLDPA) 2013, permitindo abortos onde a vida de uma mulher está em risco, incluindo o risco de suicídio. Mas a presença da oitava emenda na Constituição significava que até mesmo essa nova lei era altamente restritiva, exigindo que um painel de médicos especialistas avaliasse as alegações de tendências suicidas. Também era difícil de interpretar, com a forte posição antiaborto, consagrada na Constituição, a definir o panorama médico. No verão de 2014, uma jovem migrante, a Sra. Y, que estava grávida como resultado de uma violação, tornou-se suicida depois de lhe ter sido negado um aborto. Implorando pela interrupção da gravidez, a mulher entrou em greve de fome, mas em vez de aceitar seu pedido, foi obtida uma ordem do Supremo Tribunal para a alimentar à força, tendo ela sido coagida a continuar a gravidez até que o feto fosse viável. Foi a morte de Savita Halappanavar e o caso Ms Y que galvanizaria toda uma nova geração de ativistas de “Revogação” determinados a acabar com o horror e a hipocrisia das leis de aborto na Irlanda.

Estas hipocrisias são provavelmente melhor expressas no referendo de 1992, que acrescentou uma proteção constitucional que garante às mulheres o direito de viajar para fora do Estado para aceder à interrupção da gravidez. Isto facilitou uma situação que se tornou na norma de que os abortos irlandeses ocorressem na Grã-Bretanha – permitindo que o movimento pró-vida reivindicasse por muitos anos que a Irlanda era “livre de abortos”, a que milhares de mulheres irlandesas acediam no estrangeiro. Mas tem sido dada pouca atenção às suposições incluídas neste chamado direito de viajar. Pressupõe que todas as mulheres têm meios financeiros para viajar e que todas as mulheres têm os documentos necessários para viajar para fora do país. Muitos dos casos que acabaram nos tribunais irlandeses envolveram jovens mulheres pobres e vulneráveis, ​ou mulheres migrantes que fugiam da tortura, da pobreza e da perseguição e que já tinham sido deixadas a definhar no notório sistema de acolhimento direto da Irlanda. Por outras palavras, a lei irlandesa facilita o acesso desigual ao aborto, dependendo das circunstâncias socioeconómicas da mulher grávida. As mulheres em melhor situação económica têm um mandato constitucional para viajar para o estrangeiro e, no seu regresso, podem recorrer a serviços de aconselhamento apoiados pelo governo; mulheres incapazes de viajar para o estrangeiro e que interrompem as suas gravidezes na Irlanda, usando, por exemplo, um comprimido abortivo, enfrentam uma sentença de 14 anos de prisão e pouco ou nenhum apoio médico.

A luta pelo direito ao aborto na Irlanda, e em todo o mundo, levanta questões fundamentais sobre o tipo de sociedade em que queremos viver. Ao desenvolver estratégias para lutar pelo direito ao aborto, precisamos considerar o que envolveria o acesso significativo ao aborto e a variedade de questões interligadas – da classe e migração à medicina e saúde mental – que dão forma ao acesso das mulheres ao aborto. Enquanto a Irlanda se prepara para votar as suas leis contra o aborto neste verão, não se trata apenas de um voto no acesso a um procedimento médico, mas no tipo de assistência e apoio que a sociedade oferece aos pais, filhos e famílias para que as mulheres possam fazer escolhas importantes sobre as suas vidas.

Reprodução da tradução de Érica Almeida Postiço do esquerda.net de artigo originalmente publicado na Jacobin.


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