Reino Unido: espiões russos, venenos e Corbyn, tudo junto

Após a expulsão de diplomatas russos do Reino Unido, Jeremy Corbyn questionou as facilidades que a oligarquia russa encontra para atuar em solo britânico.

Paul Demarty 9 abr 2018, 12:34

A tentativa de assassinato de um ex-agente duplo russo, Sergei Skripal – e de sua filha, Yulia, também hospitalizada – teria criado uma grande agitação em qualquer caso. É bastante extraordinário que se utilizem agentes nervosos em Salisbury, uma provinciana cidade do sul da Inglaterra famosa pelo campanário de sua catedral.

Por isso, é muito pouco provável que alguém aparte de agentes do Estado russo levasse a cabo o ataque contra os Skripal. Existem, por suposto, as lamentações usuais dos teóricos da conspiração em suas intermináveis batalhas contra as “notícias falsas”, segundo os quais foi uma provocação dos próprios serviços de espionagem britânicos; ou, como pretendem outros, do governo violentamente anti-russo da Ucrânia. A primeira teoria pode ser descartada de entrada, e a segunda – ainda que ao menos se relaciona com um governo que poderia ter acesso a esta classe de agentes tóxicos – parece implicar um risco demasiado grande para Kiev, tendo em conta as possíveis consequências de ser descoberto.

A menos que apareça alguma revelação espetacular, a navalha de Occam parece a lógica mais acertada: assim com a maioria dos homicídios de mulheres são obra de seus parceiros, aos desertores normalmente executam seus antigos espiões chefes. O Estado russo nega toda participação, mas não oferece nenhuma explicação alternativa do fato de que um desertor que entregou os nomes de 600 agentes de inteligência russos à contraespionagem britânica está às portas da morte graças a um agente tóxico nervoso russo. A verdade é que muito provavelmente se queira enviar, sobretudo uma mensagem para o consumo interno russo. Para os autócratas pode ser fácil ganhar eleições, mas é mais difícil fazê-lo com uma participação que confira legitimidade e este espetacular ato de reafirmação nacional – apesar de seu não reconhecimento – não pode senão reforçar o ferido orgulho nacional russo. As acusações de irregularidades nas eleições abundam, mas desde longe tudo indica que a eleições da semana passada forma um êxito para Putin e seus compinchas.

No entanto, uma coisa é dizer em geral “foram os russos”, e outra muito distinta demonstrar quem cometeu o crime: quais russos? Há cerca de 150 milhões deles, afinal. Quem ordenou? Parece impossível que não tenha contado com a aprovação de Putin, dadas as eleições presidenciais; mas não bastam as conjecturas para acusar alguém antes os tribunais. Como chegou o veneno russo a Hampshire? A teoria atual parece ser que foi plantado na bagagem de Yulia, o que parece bastante improvável, mas não há dúvida de que surgirão outras conjecturas. Muitas perguntas seguem abertas. Como não? Os detalhes de crimes deste tipo são necessariamente obscuros.

Contra Corbyn

Jeremy Corbyn esteve entre aquele cuja resposta imediata não foi simplesmente tocar os tambores de mais sanções contra a Rússia, senão levantou uma série de perguntas de difícil objeção à primeira ministra Theresa May. Pediu conhecer as provas existentes até o momento, criticou uma série de doações dos oligarcas russos aos conservadores britânicos, e fez algumas outras observações normais e dolorosamente moderadas. A resposta de May foi estranha por sua ferocidade, como se Corbyn tivesse estado implicado no ataque tóxico. O periódico The Sun o declarou um homem de Putin, Newsnight supostamente o situou em uma fotografia manipulada na Praça Vermelha com um boné estilo Lenin, e começou a circular uma vez mais o rumor de uma divisão “moderada” no trabalhismo britânico.

Que diabos está passando? Entre a brigada de cabeças envoltas em papel de alumínio e a histeria anti-Putin, há uma vasta coleção de pessoas que tendem a situar-se em um chauvinismo paranoico. Não é necessário ser um dirigente histórico da esquerda trabalhista na oposição para recordar a quantidade de dinheiro russo sujo que circula pela City, ou que acaba nos cofres do Partido Conservador, ou para fazer a pergunta de como é possível que se possa produzir um ataque com gás nervoso em Hampshire. Francamente, podemos imaginar a um Tony Blair esfolando o governo de John Major por isso, se tudo isso tivesse ocorrido em 1996. É mera rotina dos franco-atiradores da oposição: qual é o verdadeiro problema?

O que está acorrendo, nesta frente, é uma variante de um tema obsoleto, mediante o qual o establishment britânico utiliza um escândalo cozinhado para tentar domesticar Corbyn, com mais ou menos êxito. Assim ocorreu com o dinheiro sobre as comemorações da Primeira Guerra Mundial; sobre se entoava ou não o hino nacional britânico nas celebrações do estado; a permanente acusação tortuosa de antissemitismo; e assim ad infinitum. O instinto de Corbyn é geralmente retroceder, e fortificar-se no monotema da austeridade – como ocorreu em sua débil argumentação sobre os cortes Tory no orçamento do serviço diplomático (e sem dúvida os orçamentos do MI6 e do Estado-Maior do exército foram cruelmente cortados também…). Isto demonstra aos poderosos que suas operações propagandísticas de acusação funcionam – e voltam à carga. Isso explica a situação atual, e a manipulação da campanha sobre o ataque contra os Skripal.

Pelo que se refere à esquerda, a manipulação mais surpreendente é, por suposto, a do programa da BBC Newsnight; mas, se as acusações são corretas, a BBC só cometeu o erro de fazer da maneira mais vulgar possível exatamente o mesmo que qualquer outro meio de comunicação “respeitável” contra toda evidência. Temos indicado já que este episódio encaixa em um padrão mais amplo dos ataques da classe dominante contra o dirigente trabalhista. Mas, francamente, há outras razões para o cinismo neste caso – não menos importantes são as questões planteadas pelo próprio Corbyn em suas “inaceitáveis” intervenções parlamentares.

Falou de “grandes fortunas” transferidas da Rússia a Londres – algumas vezes em relação com “elementos criminosos”. Não é para menos. Inclusive as “fortunas legítimas” – como a de Roman Abramovich, por exemplo – tem passados muito turvos; ademais das de conhecidos mafiosos. E todos eles vão a Londres como primeira opção; compram casas de generosas proporções em Chelsea e Hampstead e jornais, clubes de futebol e obras de arte; e a administração britânica os ajuda em cada passo do caminho. O non plus ultra desta “compreensão” britânica foi o caso ante os tribunais entre Abramovich e seu ex-colega Boris Berezovsky, que utilizaram os juízes britânicos para divulgar estranhos detalhes de acontecimentos que tinham ocorrido 15 anos antes na Rússia (Abramovich ganhou; Berezovsky mais tarde foi encontrado enforcado, presumivelmente suicídio).

Tudo isto é perfeitamente esperável no aparato para lavagem de dinheiro sujo em que vivemos. Os oligarcas russos não são as únicas pessoas que passam envelopes de dinheiro a todos aqueles que concordem em não fazer perguntas a respeito. É algo bastante habitual na decadência das grandes potências mundiais, na medida em que seus impérios dão lugar a outros mais jovens e vigorosos. Britannia já não governa as ondas; assim deve vender suas virtudes nos cais. (Inclusive um macro caso judicial como o de Abramovich v. Berezovsky pode ajudar, graças às minutas de uma grande quantidade de advogados e aos impostos que implicam).

As circunstâncias particulares na atualidade reforçam esta tendência. As negociações sobre o Brexit com a UE seguem avançando com escassos resultados: a União Europeia parece disposta a negar à City qualquer trato de favor, chegado o fatídico dia, o que aumentaria o dano que sofreria a Grã Bretanha como destino preferencial para o saque da cleptocracia global inteligente. Recentemente foi informado que David Green, o chefe da Oficina Anti Fraudes Graves (OFS), corria perigo de perder seu trabalho, já que, sob sua direção, a OFS havia começado a processar com êxito presumidos criminosos. Não há que exagerar as coisas: os processos acabam em sua maior parte em acordos pré-judiciais, que não implicam algo tão vulgar como o cárcere. Mas inclusive isso é aparentemente demasiado para Theresa May, que tratou de acabar com estas investigações durante meia década. Imagine o dano que poderia fazer o governo trabalhista que realmente trata-se de separar o dinheiro sujo do limpo.

Cabe suspeitar, ironicamente, que os ataques a Corbyn por ser brando com Putin se produzem ao menos em parte não pela preocupação de que converta a Grã Bretanha em um estado vassalo da Rússia, senão todo o contrário – porque poderia cometer o erro de acabar com o atrativo do Reino Unidos para os oligarcas, e outros personagens encantadores, como os príncipes sauditas (e outros como esse). É notável que, apesar dos gritos, as sanções reais contra a Rússia se reduzam à expulsão de alguns diplomatas – uma rotina ante a qual é difícil conter um bocejo. Essa é a história aqui: a economia britânica se baseia em relações corruptas com regimes como o de Putin e seus beneficiários, e uma parte desse dinheiro goteja até os cofres do Partido Conservador, onde seguro que se aceita com a maior probidade e sem a menor influência política em troca.

Não é estranho que os poderosos gostem tanto de converter o estranho ataque em Salisbury em mais um episódio de seus ataques contra Corbyn.

Tradução de Marcelo Martino da versão em espanhol disponível no portal Sin Permiso.


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