Maio de 68 e as desigualdades

Coluna do economista reformista resgata o efeito da luta social massiva na conquista de políticas de distribuição de renda parciais em resultado dos protestos.

Thomas Piketty 8 maio 2018, 16:59

É preciso queimar Maio de 68? Segundo os seus detratores, o espírito de Maio teria contribuído para o triunfo do individualismo e até mesmo do ultraliberalismo. Essas afirmações não resistem ao exame da verdade: o movimento de Maio de 68 foi, ao contrário, o início de um período histórico de fortíssima redução das desigualdades sociais na França, que em seguida perdeu o fôlego por outras razões. A questão é importante, já que ela condiciona o futuro.

Voltemos um pouco. O período de 1945-1967 se caracteriza na França por um forte crescimento, mas igualmente por um movimento de reconstrução das desigualdades, com uma forte alta da parte dos lucros na renda nacional e uma reconstituição das hierarquias salariais. A parte de 10% das maiores rendas, que eram apenas 30% da renda total em 1945, se eleva progressivamente a 37% em 1967.

O país estava inteiramente concentrado na reconstrução, e a prioridade não era a diminuição das desigualdades, ainda mais que cada um sentia que elas tinham diminuído enormemente após as guerras (destruições, inflação) e as transformações políticas da Liberação (Seguridade social, nacionalizações, grades salariais apertadas).

Nesse novo contexto, os salários dos quadros e dos engenheiros aumentaram estruturalmente de forma mais rápida que os salários baixos e médios nos anos 1950-1960, e no primeiro momento ninguém pareceu se comover. Um salário mínimo foi até criado em 1950, mas ele não era quase nunca revalorizado em seguida, ainda que, se comparado à evolução do salário médio, ele ganhasse fortemente.

Polegares para cima ao salário mínimo

A sociedade nunca foi tão patriarcal: nos anos 1960, os homens representavam 80% da massa salarial. As mulheres eram encarregadas de inúmeras missões (em particular cuidar dos filhos, trazer conforto e ternura à era industrial), mas o controle do orçamento não fazia claramente parte delas.

A sociedade é também profundamente produtivista: as 40 horas prometidas em 1936 ainda não eram aplicadas, já que os sindicatos aceitaram trabalhar até o máximo das cotas de horas suplementares afim de favorizar a recuperação do país.

A ruptura acontece em 1968. Para sair da crise, o governo do general de Gaulle assina os acordos de Grenelle, que compreendem notadamente um aumento de 20% do salário mínimo. Esse último será oficialmente indexado – ainda que parcialmente – no salário médio em 1970, e, o que é o mais importante, todos os governos sucessivos de 1968 a 1983 se sentirão obrigados a dar quase todos os anos fortes “positivos”, em um clima social e político em plena ebulição.

É assim que o poder de compra do salário mínimo aumenta a uma taxa de mais de 130% entre 1968 e 1983, enquanto que, no mesmo período, o salário médio progride apenas em média 50%, daí uma compreensão muito forte das desigualdades salariais.

A ruptura com o período anterior é franca e massiva: o poder de compra do salário mínimo tinha progredido apenas 25% entre 1950 e 1968, enquanto que o salário médio havia mais do que dobrado. Puxado pela forte alta dos baixos salários, a massa salarial no seu conjunto progride sensivelmente mais rápido que a produção ao longo dos anos 1968-1983, daí uma forte queda da parte do capital na renda nacional. Tudo isso diminuindo o tempo de trabalho e aumentando as férias pagas.

O movimento se inverte novamente em 1982-1983. O novo governo socialista, advindo das eleições de maio de 1981, teria, sem dúvida, desejado perseguir essa linha. Infelizmente para ele, o movimento social já havia imposto a grande recuperação dos baixos salários aos governos de direita, passando a perna na democracia eleitoral.

Para prolongar o movimento de redução das desigualdades, teria sido preciso inverter outras ferramentas: poderes reais para os funcionários nas empresas, investimento massivo e igualdade na educação, implementação de um sistema universal de seguro-saúde e de aposentadoria, desenvolvimento de uma Europa social e fiscal.

No lugar disso, o governo utilizou a Europa como bode expiatório durante a virada do rigor em 1983, mesmo que o bloco das remunerações não seja culpa dela: o salário mínimo não pode aumentar eternamente três vezes mais rápido que a produção, a economia estando aberta ou fechada.

Virada do rigor

Pior ainda: a partir de 1988, os governos franceses contribuem fortemente para o movimento de dumping fiscal europeu sobre o imposto das sociedades, depois implementam, com o tratado de Maastricht de 1992, uma união monetária e comercial pura e dura, sem orçamento e sistema tributário comum, sem governança política.

Uma moeda sem Estado, sem democracia e sem soberania: um modelo que já se viu, logo após a crise de 2008, em que ponto era frágil, e que contribuiu à recessão de dez anos da qual nós mal saímos.

Hoje, a crise da socialdemocracia europeia é geral. Ela é antes de tudo consequência de um internacionalismo inacabado. Ao longo do século XX, e particularmente entre os anos de 1950 e 19080, a implementação de um novo compromisso entre capital e trabalho foi concebido e realizado no interior dos Estados nações. Com inegável sucesso e, ao mesmo tempo, fortes fragilidades já que as políticas nacionais se viram presas nas garras da concorrência crescente entre os países.

A solução não é dar as costas ao espírito de Mio de 68 e ao movimento social: é preciso, ao contrário, se apoiar sobre ele para desenvolver um novo programa internacionalista de redução das desigualdades.

Artigo originalmente publicado no jornal Le Monde. Tradução de Pedro Micussi para a Revista Movimento.


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