Nakba: 70 anos da grande catástrofe palestina

Exatos 70 anos após o Nakba, é tempo de é relembrar o processo de limpeza étnica que levou à expulsão de 750 mil palestinos de suas casas.

Frederico Henriques e Marina Bozzetto 15 maio 2018, 14:50

Nesta terça feira, 15 de maio, celebram-se os 70 anos de história de limpeza étnica e expulsão do povo palestino de seu próprio território. Todos os anos, essa data é lembrada na Faixa de Gaza e em diversas vilas e cidades da Cisjordânia com marchas e protestos defendendo o direito ao retorno dos refugiados. Infelizmente, na última década, a invisibilidade da causa vem aumentando, seja pela domesticação de lideranças locais, seja pelo surgimento de conflitos de alta intensidade na região, tais como no Iraque e a guerra civil na Síria. A consequência do desaparecimento da pauta na agenda internacional foi a intensificação das colônias ilegais na Cisjordânia, o avanço do apartheid e a violação sistemática dos direitos humanos da população nativa daquela região.

Nesse contexto, é fundamental lembrar o processo de limpeza étnica que levou à expulsão de 750 mil palestinos de suas casas e à destruição de 530 vilarejos no surgimento do Estado de Israel. Por isso, torna-se imprescindível fortalecer a luta que existe até hoje contra as colônias ilegais, a defesa por direitos iguais e o retorno daqueles que foram expulsos de suas terras.

Sionismo como ideologia, limpeza étnica como prática

O senso comum coloca, muitas vezes, o Estado de Israel e o sionismo como resposta ao genocídio nazista que assassinou milhares de ciganos, comunistas, LGBTs e judeus. De fato, o sionismo surgiu na Europa central e oriental no final do século XIX, como parte do ressurgimento das ideologias nacionais, estimulado pela ascensão de pressões de judeus dessas regiões que tiveram dificuldade de assimilar as culturas locais ou sofriam perseguição por outros povos.

No início do século XX, o movimento nacionalista judeu começa a ganhar novos contornos, especialmente com a convergência do território a ser ocupado: a Palestina. Por ser uma região que detinha uma carga histórica e religiosa a ser reivindicada pelos judeus, seria mais simples a reivindicação dessa área, da mesma forma, o questionamento sobre os nativos que viviam nela. Nesse processo, a ideia de transformar a população residente em estrangeira e os colonos em povo histórico cabia bem aos projetos sionistas.

Até a ocupação da Palestina pela Inglaterra, depois da Primeira Guerra Mundial, e o fim do Império Otomano, o sionismo era apenas uma mistura de ideologia nacionalista com prática colonialista, que mal atingia 5% da população residente. É importante destacar que, diferentemente da propaganda israelense que trata o conflito de religiões como algo milenar, durante todo o período Otomano, pessoas de diferentes religiões viveram com relativa tranquilidade naquela região. O sionismo só toma outra proporção após o mandato britânico, quando as compras de terras por judeus passaram a ser mais sistemáticas. Isso muda de patamar no final da década de 1920 com a Declaração de Balfour, quando a Inglaterra se compromete com as lideranças sionistas a partilhar aquele território para eles.

Uma das estratégias discursivas de propaganda usadas por Israel é a famosa frase: “uma terra sem povo para um povo sem terra”. No entanto, até 1928, a Palestina estava em domínio inglês como um Estado, sendo tratada como uma terra de ninguém apenas após o lobby sionista e os acordos construídos de forma unilateral com os ingleses.

Tais acordos são acelerados após a Segunda Guerra Mundial e suas consequências de grandes crises e holocausto, o que torna aparentemente a reivindicação de um Estado Judeu justa. Todavia, não podemos entender a criação de Israel como a liberação dos judeus, mas sim como um Estado que atende os interesses imperialistas de colonização, intensificando a desestabilização do Oriente Médio. Ou seja, os marcos a serem dados são os da exploração e da limpeza étnica feita na região.

O conceito de limpeza étnica dentro das cortes internacionais, assim como na academia, já está bem consolidado como usurpação coletiva de invasores estrangeiros expulsando populações nativas e, dessa forma, promovendo de modo violento ou não a transferência ou a eliminação de povos por questões étnicas, culturais ou religiosas. O debate sobre o tema é recorrente, seja na Ásia, como Myanmar; seja na Europa, nos Balcãs; seja pela perseguição de diversas etnias na África subsaariana. Durante todo o período colonial, assim como nos processos de independência, esses movimentos ocorreram de forma intensa na América. Como exemplo, temos a chegada do imigrante europeu nas Américas e os processos de branqueamento no século XIX, que foram momentos de limpeza étnica intensa em nosso continente deixando traços até hoje em nossos países.

A Palestina sempre foi um território densamente povoado com uma grande diversidade étnica e religiosa, havendo palestinos muçulmanos, cristãos, judeus, por exemplo. Essa característica do lugar tornaria as condições de constituir um Estado exclusivamente Judeu muito difícil. Ter uma balança demográfica possível para o sionismo em um lugar com grande maioria árabe, só é possível a partir de uma limpeza étnica, sendo, portanto, a ideologia intrinsecamente ligada à esse fenômeno de transferência e eliminação de grandes contingentes de árabes do “seu lar histórico”.

Terror e conquista nos primeiros anos de Israel

Nos últimos 20 anos, um conjunto de historiadores vem se debruçando sobre os arquivos militares de Israel e recontando uma nova história, criticando a versão oficial do enclave sionista no meio do Oriente Médio. Dentre os estudiosos, vale destacar Ilan Pappé que, ao não se conformar com a censura, teve de dar continuidade à sua pesquisa na Inglaterra. É a partir dessas pesquisas que se pretende apresentar um pouco dessa história.

Os arquitetos da criação do Estado judeu viam como necessidade fundamental a expansão dos territórios controlados, assim como a população, como condição necessária para garantir, pela força, o controle dessas terras. Tendo em vista o fim da Segunda Guerra Mundial e a tragédia nazista, assim como o compromisso do Estado inglês pela partilha do território palestino, os sionistas passaram a se organizar em duas frentes, a saber: o lobby nas Nações Unidas e milícias armadas na Palestina para garantir territórios.

A consolidação da partilha na ONU fez com que, ainda em 1947, as milícias dirigidas por Ben Gurion, tido como o herói nacional e fundador do Estado de Israel, começassem a preparar e executar o plano de expulsão dos povos árabes do entorno do Mediterrâneo, começando especialmente pelas vilas. A leniência do mandato inglês como protetor do território, a definição da ONU pela partilha e a existência das milícias já consolidadas no território foram os elementos centrais para o início da limpeza étnica. Nesse processo, as vilas no entorno de Jaffa, Haifa e Acre foram sendo atacadas uma a uma. Ademais, chacinas foram sendo realizadas, o terror foi provocado, junto com a destruição das casas. Isso fez com que as notícias se espalhassem e muitos palestinos ricos se retirassem de suas casas para outros Estados, antes mesmo da consolidação de Israel e do fim do mandato inglês.

Pappé narra, a partir dos relatos em suas obras, que mesmo sabendo do processo de expulsão das famílias árabes, antes do fim do protetorado inglês, os árabes ou a ordem internacional nada fizeram para proteger as famílias que vinham sendo expulsas de seus territórios. Aos poucos, os refugiados foram se concentrando nos países vizinhos a partir de ondas de terror na Palestina e de uma grande inoperância, inclusive dos países árabes no entorno. Nesse sentido, vale destacar a conivência dos persas, atual Irã, durante boa parte do período, visto que estavam alinhados aos Aliados e ao rei da Jordânia – este ainda tinha expectativa de anexar grande parte do vale do Jordão em acordo com os sionistas.

Diferentemente do que conta a história oficial israelense, a resistência árabe foi mínima mesmo após o mandato britânico, em 15 de maio de 1948. Grande parte das tropas enviadas pelos países vizinhos era de voluntários, com pouca presença de militares de alta patente ou com experiência, além de armamento defasado. O pouco dano causado ao nascente Estado judeu mais serviu para intensificar a limpeza étnica, especialmente nas grandes cidades do mediterrâneo, do que como resistência a um processo de colonização dado.

Ademais, o genocídio e a expulsão nos primeiros anos de consolidação do Estado de Israel fizeram com que quase um milhão de palestinos tivessem de deixar suas terras. A crise foi tamanha que a ONU precisou criar uma agência (UNRWA) para cuidar exclusivamente dos refugiados palestinos. Com isso, não apenas Cisjordânia e Gaza receberam boa parte da população que teve de fugir do ataque sionista mas também países vizinhos, como o Líbano, o Egito e a Jordânia.

Assim como a negação dos direitos humanos nesses primeiros anos outorgados pelas Nações Unidas, os palestinos também tiveram a possibilidade de retorno aos seus lares privada e, dentre os direitos, aquele nunca aceito por nenhuma vertente do sionismo, de acordo com a Resolução 194 (III), da Assembleia Geral da ONU, 11 de dezembro de 1948 foi que:

Os refugiados que desejam retornar para suas casas e viver em paz com seus vizinhos devem ser permitidos a fazê-lo, na data possível mais próxima, e os que escolherem não retornar devem ser indenizados por perdas de danos as quais, sob princípios da lei internacional de igualdade, devem ser cumpridos pelos governos ou autoridades responsáveis.

Colonização, demografia e território

A consolidação da partilha e dos territórios definidos pelas Nações Unidas se dá após a guerra contra os árabes em 1967/68. A partir desses eventos, inicia-se um segundo momento, que é o incentivo do governo israelense de ocupações ilegais no território da Cisjordânia e de Gaza. Essas novas colônias têm como objetivo avançar no controle do território palestino sob pretextos de migração e segurança. Enquanto isso, nos territórios homologados internacionalmente como Israel, o elemento central é o apagamento da história e da memória palestina, paralelamente à criação de uma nova através da arqueologia para tentar provar que aquela região é sua por legítimo direito.

Para além da construção de cidades em cima de vilas palestinas, Israel utiliza de outras técnicas para colonizar o território. O Fundo Nacional Judeu (FNJ), por exemplo, inicia o estabelecimento de reservas florestas em antigos vilarejos, plantando árvores que dificultariam a memória histórica ou impossibilitariam o retorno de um palestino para lá, além de financiar centros de estudos que fortalecem os laços da antiguidade da região com os povos judeus.

Um problema encontrado pelos sionistas para a limpeza étnica da região é a questão demográfica, ou seja, eles precisavam garantir que os judeus fossem a maioria consolidada no Estado de Israel. Para se ter uma dimensão, ainda hoje, os palestinos compõem cerca de 20% dos cidadãos de Israel – sendo estes chamados de Palestinos de 48 ou árabes-israelenses. Mas se for considerado o território do mandato britânico, os palestinos continuam a ser maioria. Durante os últimos 50 anos, políticas ofensivas de migração de judeus têm sido a principal tática para manter essa composição na região, dificultando permanentemente a residência dos árabes, além do estabelecimento, por lei, de sub-cidadanias.

As seguidas humilhações, com a intensificação das ocupações em territórios tidos como palestinos, assim como a vitória de movimentos anticoloniais e revoluções fizeram com que, no final da década de 1980, eclodisse a primeira intifada para dizer um basta a Israel. O resultado dessa intifada se deu a partir de 1994, com a construção dos acordos de paz de Oslo. Nesse caso, os dois eixos do acordo firmado pelo primeiro ministro israelense e a Organização para a Libertação da Palestina consistiam no reconhecimento da autoridade palestina com vista à criação do Estado e à garantia de segurança e de controle dos territórios por parte de Israel. Apesar de na aparência apontar um período de transição, na prática o que se criou foi uma autoridade palestina sem poder e submissa à Israel, passando este a ter controle principalmente econômica e de distribuição de recursos sobre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.

Por conseguinte, o sentimento de traição e as frustrações provocadas pelos acordos de Oslo foram canalizados, no início dos anos 2000, para a segunda intifada. Porém, apesar da brava resistência do povo e, especialmente, dos jovens palestinos, o resultado foi o avanço da colonização, a expulsão de mais palestinos de suas terras e a construção de muros cercando a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. O Estado de apartheid mostrava sua cara mais perversa com a anuência de lideranças palestinas.

É tempo de questionar os muros

A principal estratégia para garantir a limpeza étnica e o controle populacional com vistas a solucionar o “problema demográfico” tratado pelos líderes sionistas é tornar a vida dos palestinos insustentável, com as infinidades de check-points diários dos palestinos que cruzam os muros que separam a Cisjordânia de Israel, ou o enorme “gueto de Varsóvia” no qual se transformou a Faixa de Gaza com o fechamento das fronteiras são alguns exemplos de prática.

Apesar de setores progressistas do sionismo aceitarem o fim das 65 leis racistas que diferenciam cidadãos judeus de não judeus, ou a retirada de colônias ilegais, o único consenso entre os sionistas é a impossibilidade do retorno dos palestinos. Nessa perspectiva, o retorno de mais de 7 milhões de palestinos e descendentes retirados de suas casas “inviabilizaria o Estado judeu”, mostrando a verdadeira faceta dessa ideologia.

A invisibilidade da questão palestina na mídia, que, quando aparece vem com um filtro israelense, tem facilitado de forma avassaladora a implementação da limpeza étnica e o Estado de apartheid vivido na região. Dentre os fatores, destacam-se dois: as guerras no Oriente Médio, com foco principal na guerra civil na Síria; e o enfraquecimento da autoridade Palestina, que está completamente submetida ao governo israelense, especialmente no território da Cisjordânia.

Em contrapartida, o fortalecimento da identidade Palestina em todo o território desde 1948, assim como o surgimento de uma juventude que não está mais atrelada à velha política, que hoje é simbolizada pela jovem Ahed Tamimi, são suspiros de esperança em momentos de ataque. Nesse sentido, faz-se necessário, mais do que nunca, que a comunidade internacional retome e fortaleça a pauta nesses 70 anos do Nakba, a fim de garantir o direito de retorno dos refugiados, a remoção das colônias ilegais no território da Cisjordânia e o fim do apartheid, com cidadania plena e direitos humanos para todas as pessoas daquela região.

Em momentos de retomadas de governos da direita mais tradicional e de confusões ideológicas, é fundamental, na América Latina, retomar a pauta anticolonial como resgate de nossa própria história e se faz presente enfrentar o interesse dos poderosos que colocam a população negra e indígena como sub-cidadãs. Só assim aproximaremos a questão palestina da nossa realidade e saberemos como transformar as nossas lutas em uma só luta e garantir que, minimamente, o direito internacional, em especial os direitos humanos, não sejam apenas letras mortas.


Referências:

PAPPÉ, Ilan. A limpeza étnica da Palestina. São Paulo: Sundermann, 2016.

SAID, Edward. A questão da Palestina. São Paulo: Editora Unesp, 2012.


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Pedro Micussi