Nicarágua: levante popular reabre profundas feridas

O Secretario de Relações Internacionais do PSOL analisa os últimos acontecimentos no incandescente país caribenho.

Israel Dutra 21 maio 2018, 18:05

Nos dias 19 e 20 de abril, uma explosão popular tomou as ruas dos bairros mais pobres de Manágua, se expandindo para o conjunto das principais cidades do país. Uma batalha que incendiou a situação política da Nicarágua, com desfecho sangrento, onde morreram 63 jovens e trabalhadores, com mais de 200 feridos e milhares de detidos. O levante colocou contra as cordas o governo Ortega e mudou o cenário político do país.

A Nicarágua tem uma rica tradição política. Gerações inteiras de militantes foram formados na solidariedade à revolução sandinista, a última grande revolução latino-americana do século XX. Livros como o de Caco Barcellos (A revolução das crianças) ou de Eric Nepomuceno (Nicarágua, um país acossado) disseminaram no Brasil, uma cultura militante em defesa das revoluções de América Central. A campanha contra a ofensiva imperialista nos anos 80, patrocinando grupos paramilitares conhecidos como “Contras” foi uma das mais fortes do continente. Centenas de ativistas brasileiros se jogaram em brigadas de solidariedade para ajudar a fortalecer a esperança de uma revolução no centro do continente americano.

A tradição revolucionária do povo nicaraguense agora se levanta contra os antigos guerrilheiros, que mudaram de lado e hoje são os algozes do povo.

E foi a proposta de retirada de direitos via a “reforma” da previdência que despertou a ira popular. Os governos neoliberais em todo mundo necessitam impor o ajuste e tem na reforma da previdência uma das principais pautas. É um dos principais conflitos entre a classe trabalhadora e a burguesia e seus representantes. Assim foi na França. Assim foi na rebelião operária que aconteceu nos dias 14/18 de dezembro na Argentina ou a greve geral que parou o Brasil em 28 de abril de 2017. No caso da Nicarágua, a reforma da previdência proposta por Ortega tinha como base enfraquecer o Instituo Nicaraguense de Seguridade Social, retirando conquistas populares.

A luta contra a reforma ganhou amplitude de luta contra o totalitarismo do governo. A repressão continua. Na marcha nacional de 09 de maio, novos enfrentamentos contra a polícia e as bandas de choque de Ortega deixaram mais 3 mortos. Uma parte da igreja e dos setores empresariais está tentando desativar a mobilização de rua. É preciso discutir e se solidarizar à juventude que luta contra o governo.

Uma forte tradição de lutas revolucionárias

A revolução de 1979 conquistou corações e mentes por todo o mundo. As heroicas cenas da luta popular contra a ditadura de Anastacio Somoza percorreram o planeta. O povo nicaraguense, com sua vasta cultura, se tornava conhecido internacionalmente por sua revolução. Uma revolução onde sua vanguarda, para além dos guerrilheiros, sindicalistas e líderes de bairros populares, tinham padres, escritoras e poetas.

Antes de 1979, contudo, a história da Nicarágua é marcada pelo embate contra o imperialismo. Augusto Cesar Sandino foi o líder da guerra de libertação nacional, contra a presença militar norte-americana, entre 1927 e 1933. Depois da vitória militar, que resultou na retirada dos Marines do território nicaraguense, Sandino foi traído por Anastacio Somoza Garcia, pai do futuro ditador, sendo assassinado em fevereiro de 1934. Três décadas mais tarde, no impulso da luta anti-imperialista, Carlos Fonseca Amador e Thomas Borge fundariam a FSLN como instrumento político e militar. Após o terremoto de 1972 e o agravamento das condições econômicas, a ditadura de Somoza filho entrou em grave crise. Uma década intensa de lutas populares massivas nos bairros mais pobres, combinada com uma vanguarda ativa do movimento estudantil gerou condições políticas para que os guerrilheiros derrubassem a ditadura, em julho de 1979, articulando a ofensiva insurrecional militar com uma poderosa greve geral.

O imperialismo respondeu com uma aliança militar a serviço da restauração do antigo regime. O temor à tomada do poder em outros países da América Central, como El Salvador e Guatemala, levou um giro da política dos Estados Unidos. Reagan utilizou a CIA para armar e desenvolver as forças contrarrevolucionárias, que ficariam conhecida como “Contras”. O escândalo que a imprensa americana noticiou envolvendo o alto mando da CIA com grupos iranianos, mediado pelo Estado de Israel, comprovou as relações ilícitas entre o tráfico internacional de armas e o financiamento dos grupos paramilitares da oposição de direita ao regime sandinista. A solidariedade internacionalista ajudou a denunciar a linha de intervenção imperialista.

Como parte da revolução de 1979, a Brigada Simon Bolívar, impulsionada pela corrente internacional encabeçada por Nahuel Moreno, tomou lugar destacado nos combates armados, ajudando decisivamente na tomada do porto de Bluefields, no Sul. Foi um gesto ativo a favor do triunfo da revolução.

Ortega: de um lado a outro da trincheira

Ortega simboliza o processo de conversão de um setor da esquerda em agente do capital e da repressão do Estado. Com a derrota do processo sandinista e a confusão gerada pela queda do muro de Berlim, as bases ideológicas e políticas para uma burocratização estavam dadas. E foi um processo rápido de aburguesamento. Deixando de lado antigos companheiros para mergulhar na institucionalidade e no “jogo do poder”. Com uma aliança com políticos de direita, vence as eleições de 2006. Acabo com a cláusula que limita as reeleições e se perpetua na presidência, convocando para assumir a vice, sua própria esposa, Rosário Murillo.

A Regressão política e econômica da FSLN se expressam nas relações de centralização de capital do Clã Ortega. Após o período que a FSLN esteve na oposição, nos anos noventa, Ortega tratou de ampliar sua base de relações à direita, se afiançando como confiável para o grande capital local e internacional. Não apenas fez isso em seu caráter político, com alianças com setores egressos da direita e da ditadura como aproveitou para aumentar seu patrimônio pessoal. A atual residência do presidente é uma mansão. Tragicamente, uma mansão que pertencia a uma família tradicional, expropriada durante a revolução de 1979, pelo próprio Daniel Ortega. A família Ortega se tornou uma família oligárquica. Dirigem a empresa que negociou a instalação do canal que a China está construindo. Seus irmãos controlam três canais de TV e diversas rádios e jornais. Controlam também a relação com todos fundos privados de pensão, além de Rafael Ortega dirigir com sua esposa, a distribuidora de Petróleo da Nicarágua.

A ruptura de massas com Ortega chegou no limite com as manifestações de abril recente. Contudo, o início desse processo é anterior. A luta contra a construção de um megacanal, em parceria com o capital chinês, envolveu setores camponeses e indígenas. A defesa da reserva indígena Maiz comoveu o país e deslocou importantes setores críticos para a oposição de esquerda. O movimento de mulheres se confrontou com as posições reacionárias de Rosário Murillo e da ala direita da igreja sobre o aborto. Murillo e o governo encamparam uma cruzada contra a luta feminista pela abolição das leis antiaborto. Como reação ao giro de Ortega e o esvaziamento da FSLN surgiram diferentes correntes de opinião e ativistas, vários da velha guarda revolucionária, identificados com uma visão do “sandinismo crítico”, contrários às manobras do clã Ortega.

A formação de grupos de choque ligados diretamente ao poder central é outro traço bonapartista do governo Ortega. As denominadas juventudes “sandinistas 19J” são mílicias organizadas nos bairros pobres para ser a tropa de choque na defesa do governo. Quando dos protestos antigoverno elas agem como provocadores, perseguindo opositores, recorrendo a violência física para intimirar e desmontar o movimento de massas. A entidade estudantil, burocratizada e a serviço do governo, UNEN, reproduz esse método, aliciando novos quadros para as bandas juvenis. A conversão política e moral de Ortega num agente da burguesia, totalitário e violento reduziu os espaços democráticos na sociedade nicaraguense.

A atual rebelião e a necessidade de uma alternativa centro-americana

A irrupção da juventude foi um salto de qualidade. Foi o ponto mais alto da luta na América Central. Abriu um novo período. Depois de uma acumulação molecular de lutas, a entrada em cena da nova juventude, em universidades estratégicas como UPOLI (situada em meio aos bairros populares mais combativos), a UNAN, UCA. A resistência que carregou para si parte do povo. O tradicional bairro indígena de Moninbó, na zona oriental de Managua, outrora bastião da revolução, se converteu em palco dos enfrentamentos mais duros, com respostas massivas de todo o povo. No pequeno povoado de Niquinonho, no interior, onde nasceu Sandino, uma luta emblemática aconteceu durante o processo. A bandeira da FSLN foi retirada da estátua que homenageia o líder anti-imperialista, sendo substituída pela bandeira do país. Um sintoma de que as massas reivindicam seus ícones e sua história, não aceitando que sejam usurpados símbolos populares pela casta da burocracia orteguista.

O desgaste do clã Ortega foi se estabelecendo ao longo dos anos. Seus pactos e poder cada vez mais centralizado geraram uma importante onda de protestos, articulando diferentes setores. A luta contra o megacanal interoceânico – no acordo entre a China e o governo da Nicarágua – em 2013, provocou uma importante ação unitária entre camponeses, ambientalistas e povos indígenas. A agenda contra a corrupção dos altos funcionários de estado se espalhou em protestos nos anos seguintes. A proposta que Ortega fez de reforma da previdência, retirando direitos, reduzindo o valor nominal dos pensionistas e aumentando a contribuição previdenciária dos trabalhadores, foi a gota que transbordou o copo. A reforma de Ortega aumentava também a contribuição empresarial, rompendo a frente comum que governo e a burguesia tinham para aprovar suas medidas.

O movimento segue resistindo. Após a repressão das jornadas de 19/20 de abril, multitudinárias manifestações tiveram lugar em todo país, nos dias 23 e 28 de abril. A entrada em cena das universidades, com o método de ocupação, colocou na ordem do dia a luta por uma nova direção independente para o movimento estudantil, controlada pela burocracia estudantil governista, no seu aparelho a União Nacional de Estudantes da Nicarágua (UNEN). Os camponeses persistem em bloquear estradas. A luta ganhou contornos mais gerais e políticos, com o rechaço a repressão e o governo como um todo.

Os empresários buscam, apoiados na igreja, uma mesa de diálogo nacional. Por um lado, para pacificar e diminuir o conflito das ruas; por outro, construir em conluio com os Estados Unidos, uma alternativa política para substituir o desgastado governo de Ortega/ Murillo.

A hipocrisia do imperialismo americano, com seu discurso a favor dos direitos humanos, é na verdade uma tentativa desesperada de retomar o controle da América Central. A crise dos imigrantes e as relações predatórias que a China busca estabelecer na região complicam as posições da geopolítica dos Estados Unidos. O setor da oposição que alenta pactos e alianças com o imperialismo apenas ajuda a Ortega a se perpetuar no poder, com um discurso que confunde através de uma retórica supostamente de esquerda.

A continuidade da rebelião democrática da Nicarágua é fundamental para ampliar a força da resistência aos ajustes e governos ilegítimos na região. A batalha contra o governo de JOH, que enfrentou também uma luta com alguns traços insurrecionais, mas conseguiu legalizar sua fraude, levou Honduras ao ponto de quase ruptura. Apesar da crescente direita organizada – setores políticos de fundamentalistas evangélicos – o processo de lutas e greves avança nos outros países da América Central. O fracasso da velha esquerda coloca com ainda mais força o problema de uma saída para toda a juventude que se levanta de forma heroica contra a repressão dos governos e da burguesia.

Os últimos soldados do campismo: uma polêmica com o Foro de São Paulo

A luta da Nicarágua foi mais um capítulo na batalha que a esquerda precisa fazer contra as posições campistas. Uma parte da própria esquerda brasileira relativizou ou silenciou diante da investida das tropas e das bandas paramilitares do governo de Ortega.

Como a FSLN é um dos pilares do Foro de São Paulo – espaço que articula em sua direção parte das correntes da centro-esquerda do continente – foi notável o silêncio ou ausência de qualquer denúncia sobre a matança e as medidas de exceção.

No Brasil, coube ao jornal Brasil de Fato – animado por organizações como a Consulta Popular e o Levante Popular da Juventude – o papel de advogado de defesa do regime nicaraguense. No artigo de Eliane Tavares, se pode ler que o levante da juventude e do povo é “parte de um bem conhecido plano para varrer os governos progressistas da região”. Ou seja, além de absolver a brutal repressão que custou dezenas de mortes de ativistas, reduz o conflito a uma “provocação” dos Estados Unidos e de seus agentes.

As correntes que defendem o campismo, utilizam da mesma tática de Ortega: se valem de aspectos simbólicos do passado, como as bandeiras, as siglas e a trajetória das organizações que hoje estão no poder para justificar sua conversão e degeneração. Fecham os olhos, por razões comerciais para o imperialismo chinês, responsável por boa parte das privatizações e projetos de destruição ambiental em nosso continente. Ou apoiam militarmente governos como o da Rússia, que acabou de colaborar com Erdogan para entrega o norte da Síria para a Turquia, acabando com importantes focos de resistência dos curdos.

Apesar de seus aparelhos e manobras, o campismo e o foro de São Paulo perdem força. Com o fim do ciclo anterior, a resposta que as massas dão contra os ajustes de governos como o de Macri e de Temer não encontra na velha esquerda uma referência à altura. Uma nova alternativa só poderá ter consistência se surgir como superação dos equívocos e das estratégias de unidade com a burguesia que levaram ao desastre o “ciclo progressista”. E a tragédia de Ortega é a prova viva.

No Brasil, é preciso cercar de solidariedade a luta dos jovens e do povo da América Central. E denunciar sem tréguas as arbitrariedades do clã Ortega.

A rebelião da juventude nicaraguense é bastante diferente daquela de 1979. Não há um nível de consciência, não há uma alternativa visível aos olhos das massas, e ainda mais grave, lutam sem armas. Contudo, a coragem e a disposição não são menores do que a dos que derrubaram Somoza. Uma nova geração que faz sua experiência política, entrando de forma tumultuada na cena política, apenas começando a lutar pela abertura de um novo ciclo e uma nova esquerda.

Artigo originalmente publicado no site do PSOL.


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