Referendo ao aborto na Irlanda — o que é preciso saber
A irlanda realiza hoje referendo sobre a legislação sobre aborto no país. Entenda o que está em jogo no país europeu.
O que é que vai a votos na Irlanda?
O referendo é sobre a revogação do artigo 40.3.3 da Constituição Irlandesa (mais conhecido por 8ª emenda), permitindo ao governo irlandês mudar a lei do aborto, que agora é ilegal a menos que a vida da mulher corra perigo substancial. Votar Sim significa revogar a emenda, votar Não significa mantê-la em vigor.
O que é a 8ª emenda?
A oitava emenda foi aprovada em referendo em 1983. Ela diz que “o estado reconhece o direito à vida do nascituro e, tendo em conta o igual direito à vida da mãe, garante nas suas leis respeitar e, na medida do possível, através das suas leis defender e fazer valer esse direito”.
Isto é geralmente lido como equiparar a vida da mulher grávida à do feto, tornando o aborto inacessível em quase todas as circunstâncias. Também é visto como estando a atingir a saúde materna, porque a mulher perde o seu direito a recusar consentimento ao tratamento médico na gravidez.
Porque é que a Irlanda tem esta cláusula na Constituição?
Quando a contraceção foi legalizada na Irlanda em 1974, toda a gente acreditava que se seguiriam inevitavelmente leis liberais sobre o aborto. A campanha por uma emenda apareceu em 1981 pela mão de vários grupos “pró-vida” para pressionarem a favor da proteção constitucional do “nascituro”. A sua campanha foi ajudada pelo facto de que no meio da instabilidade política do início dos anos 1980, os sucessivos Taoisigh (primeiros-ministros) estavam preocupados com o afastamento do voto conservador dominante.
O Procurador Geral da Irlanda avisou nessa altura que o texto da emenda era muito ambíguo e poderia ter potenciais consequências negativas para os cuidados de saúde da mulher. Mas a dinâmica estava criada e o referendo resultou numa maioria de dois terços a favor da emenda.
A Irlanda é um caso raro neste tipo de emendas?
Sim. A regulação do aborto através de uma Constituição é rara (porque as Constituições são difíceis de alterar). Isso deixou a Irlanda com uma das leis do aborto mais restritivas do mundo, o que tem sido criticado por vários organismos internacionais de direitos humanos.
E qual a razão de irem agora a votos?
Houve uma série de casos inquietantes e muito debatidos no passado recente que vieram realçar a desadequação da lei atual. Apenas dois exemplos (há muitos mais) são a morte de Savita Halappanavar por septicemia após lhe ter sido recusado um aborto de uma gravidez inviável e o caso de Amanda Mellet, que foi obrigada a viajar para Inglaterra para interromper uma gravidez com anomalias fetais graves. O caso de Mellet chegou ao Comité de Direitos Humanos da ONU, que concluiu que a proibição quase total do aborto na Irlanda é discriminatória e equivale a “tramento cruel, desumano e degradante”.
Em 2017, o governo irlandês reuniu uma Assembleia Cidadã( para analisar testemunhos sobre a reforma da lei do aborto. Os 99 cidadãos escolhidos aleatoriamente, após audição de abundantes testemunhos, votaram (64% contra 36%) a favor de nenhuma restrição à interrupção na primeira fase da gravidez.
Qual é a posição oficial do governo irlandês neste referendo?
O governo está dividido neste voto, com muitos membros a não declararem posição. Contudo, parece que a maioria apoia o “Sim”. Os líderes partidários apoiam – Leo Varadkar (o Taoiseach e líder do Fine Gael) é abertamente pró-revogação, embora o seu partido dê liberdade de voto. Micheál Martin, líder do partido da oposição Fianna Fáil, também apoiou a revogação, embora muitos no seu partido tenham opinião diferente. O Sinn Féin apoia a revogação mas não o aborto sem restrições. Deputados do Partido Trabalhista, Verdes, Social Democratas e do Solidarity-People Before Profit apoiam tanto a revogação como o acesso ao aborto até às 12 semanas de gravidez. Os independentes estão divididos.
O que acontece se a 8ª emenda for revogada?
A revogação da 8ª emenda permitiria ao governo legislar sobre o aborto. A legislação proposta colocará a Irlanda no mesmo patamar da maioria dos países europeus, permitindo o aborto a pedido da mulher até às 12 semanas de gravidez (sujeito a regulação médica). Após as 12 semanas o aborto só seria acessível em caso de malformação do feto, caso a vida da mulher grávida esteja em risco ou a sua saúde esteja em risco de danos graves. Os casos após as 12 semanas terão de ser aprovados por dois médicos.
O que acontece se a Irlanda votar para manter a 8ª emenda?
Nada irá mudar. A constituição, em conjunto com a Lei de Proteção da Vida Durante a Gravidez de 2013, só permite o aborto nos casos em que há um risco significativo para a vida — o que é diferente da saúde —da mulher grávida. Ela só pode ter acesso ao aborto quando os médicos determinarem que a sua vida está em perigo devido a complicações médicas, ou está em risco de pôr fim à sua vida.
Milhares de mulheres continuariam a viajar para Inglaterra e até mais longe para terem acesso ao aborto, ou a comprar online os comprimidos abortivos ilegalmente, arriscando a criminalização. O impacto do Brexit na possibilidade dessas mulheres poderem viajar livremente continua por se saber.
Quem se opõe à revogação da 8ª emenda e porquê?
Grupos que se autodenominam como “pró-vida” dizem que estão a proteger o feto com a sua oposição a qualquer mudança na lei irlandesa do aborto. Muitos destes grupos são apoiados a partir do estrangeiro, em especial dos Estados Unidos, e alinham frequentemente com as posições religiosas, em particular as da Igreja Católica.
Qual é o principal argumento para revogar a 8ª emenda?
O principal argumento é que a criminalização do aborto não previne o aborto. De facto, países com leis liberais do aborto têm muitas vezes taxas mais baixas de aborto. As mulheres que vivem na Irlanda recorrem ao aborto, seja no estrangeiro e à sua custa, ou ilegalmente na Irlanda com o comprimido abortivo. Tudo o que o voto “Sim” fará é permitir ao governo legislar para o acesso legal das mulheres aos cuidados de saúde na Irlanda.
É provável que o referendo resulte na revogação?
As sondagens têm indicado uma ligeira vantagem para o eleitorado do “Sim”. Houve preocupação com a manipulação dos eleitores, em especial a interferência estrangeira, e tanto o Google como o Facebook mudaram as regras da publicidade política na Irlanda antes deste referendo.
Reprodução da versão em português publicada no esquerda.net.