A primavera de Praga

Na antiga Tchecoslováquia, a população se levantou contra a burocracia pela construção de um socialismo livre.

Catherine Samary 8 jun 2018, 14:22

A Primavera de Praga, com sua influência internacional, simboliza a dinâmica que o ano de 1968 teve no Leste. A luta por uma “Tchecoslováquia livre e socialista” – conforme dizia um dos comitês criados a Oeste contra a intervenção dos tanques soviéticos – engolfou-se numa das várias fissuras que abalaram o enquadramento limitador da divisão bipolar do mundo imposto pela Guerra Fria: os alinhamentos “campistas” que os PCs stalinistas queriam impor (apoiar o campo soviético sem crítica, sob pena de ser taxado de agente opositor do campo imperialista) caíram por terra.

Em tempos anteriores, os países ditos socialistas enfrentaram crises diversas desde a Segunda Guerra. O conjunto dessas crises revelava a grande diferença entre o ideário socialista proclamado por esses regimes e a realidade. A explosão democrática da Primavera de Praga, como o menos “visível” junho de 1968 de Belgrado, não respeitava os limites do partido único, mesmo reformista, que operava em nome dos trabalhadores e da população e as suas custas. Tal “momento” de bifurcação histórica condensou uma acumulação de tensões que, da Segunda Guerra até depois do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, reconsiderou a dominação stalinista sem ser capaz de estabelecer uma alternativa socialista coerente.

O Partido Comunista da Tchecoslováquia, com centenas de milhares de membros, era um dos mais importantes da região. Mal passou por mudanças tímidas nas suas equipes stalinistas no poder – a nomeação de Alexandre Dubcek como Primeiro Secretário do partido eslovaco em 1963 mostra bem isso. A Tchecoslováquia, inicialmente mais desenvolvida que os outros países da zona de controle soviético, passou por uma forte diminuição de seu crescimento durante os anos de 1960, sinal dos limites de um crescimento extensivo embasado numa planificação hipercentralizada, como era o modo soviético. Além disso, essa estrutura que beneficiava os poderes de Praga era encarada pela Eslováquia como ameaça à diversidade nacional – um sentimento denunciado como “nacionalismo burguês” pelo dirigente conservador Antonin Novotny. Na literatura (com Milan Kundera e Vaclav Havel), no cinema ou no jornalismo (com o novo diretor da televisão, Jiri Pelikan), vários intelectuais militaram contra a censura.

No âmbito econômico, as reformas preconizadas sobretudo pelo economista Ota Sik eram comparáveis ao “Novo Mecanismo Econômico” (NEM), então impulsionado pelo regime de Kadar na Hungria: buscavam atribuir aos diretores de empresas maior responsabilização e estímulos monetários. A introdução de certos mecanismos de mercado que visavam melhorar a qualidade e a diversidade da produção, assim como a produtividade do trabalho, implicaram notadamente aumento de preço dos bens de consumo, maior desigualdade em função dos resultados e uma enorme insegurança quanto ao emprego. A liberalização política e cultural então defendida pela ala reformista visava “aprovar” as medidas econômicas, cuja impopularidade era explorada pela ala conservadora. As reformas defendidas não reconsideravam o partido único, mas separavam os órgãos do partido e do Estado, de modo a flexibilizar a planificação e introduzir liberdades culturais e religiosas. Essas reformas estimulam a explosão de movimentos (políticos, sociais e culturais) que chamamos Primavera de Praga, cuja dinâmica aventada preocupa os partidos e é considerada pelo Kremlin, num primeiro momento, incontrolável…

O impacto do movimento não tinha precedentes, é um marco de sua época. Os encontros internacionais de jovens comunistas nos festivais organizados em Moscou ao londo dos anos de 1960 e as primeiras viagens ao Ocidente permitiram aberturas intelectuais e culturais e entabulações de contato… Andreï Gratchev, então com 27 anos, representou a URSS em 1968 na direção da Federação Mundial da Juventude Democrática, sediada em Budapest. Ele relembrou o evento, por ocasião dos trinta anos do mesmo, numa entrevista concedida ao Nouvel Observateur (número correspondente à semana do dia 20 de agosto de 1998): “Fui a Praga em maio. Era Woodstock em território socialista: os beatniks na praça da prefeitura, o sol, as delegações vindas de todos os cantos do mundo, uma efervescência permanente de ideias. Estávamos num país irmão, mas esse país era uma ilha de liberdade. Jamais tínhamos vivido aquilo e aquilo, no entanto, se passava em território socialista: estávamos inebriados pela Primavera”. Essas primeiras linhas entabulam bem os debates…

Relações difusas com as lutas da América Latina; com o Maio de 68 fancês; com o Junho de 68 de Belgrado; com a “Carta Aberta ao Partido Operário Polonês” de Kuron e Modzelevsky (1969, Paris) que lhes valeu os primeiros anos de prisão, sem lhes impedir de participar, novamente em 1968, das lutas estudantis de Varsóvia, reprimidas sobre bases antissemitas. Neste mesmo ano de 1968, na Hungria, Miklos Haraszti foi expulso da Faculdade de Sociologia por “gauchismo”. Ainda nesse ano, o ex-general do Exército Vermelho Piotr Grigorienko incitou os tártaros a se mobilizarem de modo independente do poder para reconquistar a República Autônoma Socialista da Criméia; e os funerais do velho bolchevique Alexis Kosterine se transformaram em uma reunião da oposição de esquerda cujos textos são publicados no Samizdat. Tudo isso se expressa em slogans da época, como: “Tirem as mãos da Tchecoslováquia! Liberdade aos presos políticos! Leninismo, sim! Stalinismo, não!”…

Naquele contexto, “para aquela época” o entusiamo da Primavera de Praga representava o risco de ser contagioso. É justamente por isso que foi considerada intolerável por Moscou. A intervenção das tropas do Pacto de Varsóvia, sob o poder de Brejnev, tinha a mesma motivação de 1956. Contudo, o contexto e os efeitos eram diferentes, tanto no plano interno como no internacional. A tentativa de normalização política se traduz, num primeiro momento, na expulsão de centenas de milhares de militantes comunistas do partido – da qual uma parte escolhe se refugiar no Partido “Eurocomunista” italiano; outra, na França, onde pela primeira vez o PCF denuncia a intervenção soviética. Nenhum dos grandes partidos comunistas ocidentais apoia dessa vez o modo como o Kremlin pretendia “defender o socialismo”…

E na própria Tchecoslováquia, a ocupação soviética provocou um Outono marcado pela eclosão de comitês de greve nas empresas e universidades, bem como o início da convergência entre eles. O Movimento da Juventude Revolucionária Tchecoslovaca é lançado e seu Manifesto exprime a exigência de uma “sociedade socialista livre da burocracia e amparada em conselhos operários”. A repressão não tarda, interditando todas as organizações autônomas e botando a ferros pela primeira vez Petr Uhl, apoiador desse movimento chamado de “complô trotskista”.

Em 1977, intelectuais das mais diversas sensibilidades políticas, a maior parte deles afastada de suas atividades por razões políticas, lançam em Praga como ação de resistência à “normalização” soviética a Carta 77; tratava-se de agitar um grande dia de defesa das liberdades e do VONS – comitê de defesa das pessoas injustamente perseguidas –, impulsionado principalmente por Petr Uhl… o que lhe valeu novos anos de encarceramento…


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