“Quando um resiste em nome da comunidade, ele humaniza todos os demais”

Psiquiatra palestina discute os impactos psicológicos da ocupação israelense nos palestinos e argumenta que resistir torna-se uma forma de remédio.

Samah Jabr 12 jun 2018, 14:14

Selim Nadi realizou para a Contretemps uma entrevista com a Dra. Samah Jabr, psiquiatra psicoterapeuta e escritora palestina para falar de sua trajetória, seu trabalho na Palestina, as relações entre a colonização e a psiquiatria e também sobre a figura de Frantz Fanon

Selim Nadi – Você poderia falar do seu percurso? Em uma das crônicas de Atrás dos Fronts, você escreve que na Palestina ocupada “a psiquiatria é a profissão médica mais estigmatizada e a menos gratificante”: por que você escolheu essa especialização?

Samah Jabr – Eu realizei meus estudos de medicina na Palestina, eu na primeira promoção da escola de medicina realizada em 1994. Durante os meus estágios aqui, na Palestina, eu rapidamente percebi a relação entre o corpo e o espírito – eu, por exemplo, estava em um consultório durante a segunda Intifada (2001) e vi muitos homens virem reclamar de dores no corpo depois que os israelenses recusaram-lhes acesso ao trabalho que tinham perdido em razão dos acontecimentos. Eu constatei que a psiquiatria é uma área da medicina que tinha muitas lacunas e, consequentemente, muitas necessidades. Meu pai vinha da psicologia educacional e eu me interessava muito a respeito do que ele escrevia e dos livros que ele tinha em sua biblioteca.

O que me fascina na psiquiatria e na psicologia é que encontramos uma linguagem universal. A compreensão do comportamento humano fornece essa linguagem que pode me ajudar na comunicação com os outros e melhor compreendê-los.

Sobre a questão dessa disciplina ser “estigmatizada” na Palestina. Quando eu disse à minha mãe que eu gostaria de me especializar em psiquiatria, ela me disse: “Nós gostaríamos que você fosse uma médica normal” [risos de Samah]. Muitas pessoas pensam como ela: que os pacientes psiquiátricos são psicóticos, que eles perderam sua faculdade de julgamento, que eles têm uma aparência negligenciada… A porcentagem de pessoas que sofrem de problemas psiquiátricos é pequena. As pessoas comuns estigmatizam a psiquiatria porque elas próprias têm medo de perder o cérebro – que é o órgão mais precioso. Contudo, paradoxalmente, sua especialidade em medicina é a menos considerada.

A psiquiatria é menos gratificante que as outras áreas da medicina porque as pessoas que sofrem de doenças psiquiátricas são muitas vezes empobrecidas por elas. Não é, portanto, muito interessante de um ponto de vista financeiro. A maior parte dos médicos prefere se tornar cirurgiões ou ficarem na área da ginecologia obstetrícia – que também é moralmente gratificante – onde se pode ver um bebê bonito, ao contrário da psiquiatria, onde se vê doentes, muitas vezes crônicos, que têm graves consequências no nível da personalidade e do cotidiano intelectual.

Você liga a resistência palestina a uma espécie de remédio para os palestinos – a ocupação israelense seria “incompatível com a saúde psicológica” dos palestinos, o que se depreende também do filme “Atrás dos fronts, resistências e resiliências na Palestina” que acompanha o lançamento da obra -, o que você quer dizer com isso?

Sem patologizar as pessoas que optam por não se engajar na resistência, esta última aparece como a única reação sã face à opressão. Existem muitas reações a uma situação opressora: resignação, capitulação, assimilação, isolamento, alienação e a resistência. Existe uma definição de trauma que me marcou: o desastre da impotência. As pessoas que podem resistir não chegaram a esse nível de impotência e guardam sua capacidade de agir e é isso que os humaniza e que os protege das graves consequências do trauma. Em uma linguagem um pouco mais psicológica, podemos dizer que diante de uma ameaça as pessoas lutam, fogem ou se congelam (freeze). Aa pessoas que se congelam são as que são em seguida mais afetadas. Quando eu falo de resistência, eu falo de um espectro muito amplo, muito variado, de modelos de resistência. Isso não humaniza somente a pessoa que se engaja na resistência, mas também as pessoas que capitulam, se assimilam, ou não podem resistir… Quando um resiste em nome da comunidade, isso tem o potencial de humanizar todos os demais. Quando as pessoas guardam sua capacidade de agir e recusam a objetificação, isso demonstra sua humanidade. No livro você pode ler o artigo “A resistência, um direito legítimo e um dever moral” que desenvolve essas questões.

Entre as cenas mais graves de trauma, em outras situações de opressão ou de massacre, incluindo os casos do Holocausto, há muita amargura entre as pessoas que não agiram no tempo, as filas de espera das execuções – essa passividade participa do esmagamento da humanidade de toda uma comunidade. E agir nesse tipo de situações contribuiu para a humanização do grupo, e não somente daqueles que se engajam diretamente na resistência.

Há, na literatura israelense, muitos termos que desumanizam os palestinos. Por exemplo, Menachem Begin, ex-Primeiro Ministro israelense, que disse que os “palestinos são bestas que caminham sobre duas pernas” e Ehud Barak, que eles são “crocodilos”.

Mas a resistência palestina contra esse discurso desumanizante e convidativo a atos genocidas é igualmente um remédio para os israelenses. Porque “o poder absoluto corrompe absolutamente”. Se os israelenses cometem seus malfeitos sem que haja uma resposta do lado palestino, eles correm o risco de perder sua humanidade. Como a comunidade internacional não consegue estabelecer limites aos israelenses, para lembra-los de sua humanidade, é a resistência palestina que tenta colocar limites, que tenta confrontar os israelenses com sua imagem de brutalidade e suas pulsões genocidas.

O seu trabalho faz inevitavelmente eco ao que Frantz Fanon realizou na Argélia colonial. O trabalho deste autor teve um impacto direto na sua maneira de apreender a situação psiquiátrica dos palestinos?

Há também outros psiquiatras que trabalharam em contextos opressivos, como Paulo Freire no Brasil, por exemplo. A psiquiatria e a psicologia são sistemas influenciados igualmente pelo poder e pela dominação e os psiquiatras desse tipo questionaram a adaptabilidade desse domínio nesses contextos de opressão, de marginalização, de pobreza. E eu pertenço a esta minoria de psiquiatras que fazem isso. Eu fiz os meus estudos de psiquiatria no Ocidente – na França, Inglaterra, mas também com os israelenses. O problema central é que o sistema de dominação estabelece uma dicotomia entre a política e a psiquiatria. Ele patologiza as reações das pessoas sob pressão, dizendo, por exemplo, que a resistência é suicida, que seus sofrimentos são patológicos, que é preciso medicá-los, etc.

Quando eu li Fanon eu ainda não era médica – foi no começo dos meus estudos. Os seus escritos me interessaram enquanto palestina que vivia em uma situação colonial. Mas os seus textos também faziam eco aos erros que um movimento nacional pode cometer. Tudo isso ressoa muito em mim – porque nós conhecemos uma verdadeira crise no nosso movimento nacional.

Eu não posso ser psiquiatra em um país sob ocupação sem analisar a relação entre opressor e os oprimidos. Por exemplo, as questões ao redor do Congresso Internacional da Psicologia Relacional previsto para acontecer em Tel-Aviv em 2019. Ou ainda, por exemplo, a questão do motorista de taxi no filme que me diz que “felizmente existe Israel, se não o Estado Islâmico nos invadiria”, ainda que muitos palestinos gostariam de negar ou calar esse tipo de questão. Eu prefiro analisa-los para ajudar as pessoas a atravessar esse tipo de sintomas traumáticos dos oprimidos.

Eu espero que minhas análises possam ser um meio de transformação política e social. Uma outra aparência com o trabalho de Fanon repousa na posição segundo a qual não se pode haver libertação nacional sem libertação dos espíritos. A ocupação não se dirige unicamente contra a terra, mas também contra os seres humanos e contra seus espíritos. A libertação da terra sem a libertação dos espíritos pode ser uma falsa libertação.

Uma questão recorrente em suas crônicas é a da interiorização da opressão pelos próprios palestinos. Qual papel têm as decisões e os comportamentos dos dirigentes palestinos nessa interiorização?

Os palestinos tem um grande problema de liderança e de estratégia nacional. Infelizmente, os dirigentes atuais da Palestina não conseguiram guardar os elementos de resiliência coletivos Quando eu trato um indivíduo, eu analiso seus pontos de força e seus pontos de resiliência. Fazer isso a nível individual é um problema de psiquiatria, mais quando queremos fazer isso ao nível da comunidade torna-se um trabalho dos dirigentes e dos políticos.

Os dirigentes palestinos não se preocupam com a justiça social, com o apoio aos grupos marginalizados. Eles alimentam a estratificação social através da criação de uma elite política que é separada, a nível psicológico, da maior parte dos palestinos. A desigualdade econômica aumenta.

Eles negligenciaram os recursos nacionais que nos dão autonomia: a agricultura, a indústria… e transformaram os palestinos em um exército de experts da penúria, que respondem às proposições de ONGs internacionais para arrecadar doações. A elite política palestina é tratada em Israel, viaja durante suas férias a Israel, eles têm fortes laços econômicos com os israelenses. Essa elite é, portanto, responsável pela criação e a manutenção dessa dependência. Eles dão um mau exemplo.

Eu gostaria de adicionar algumas coisas sobre o conceito de trauma. Há muitos tipos de traumas. No “complexo trauma” há uma confusão da relação com o agressor. Por exemplo, se uma menina é violada por um estranho, as consequências do trauma são mais simples de lidar do que se ela é agredida por um membro de sua família. Porque há essa dependência da parte de uma pessoa que é ao mesmo tempo protetora e que viola. Eu acho que o comportamento dos dirigentes palestinos criou essa dependência. Nós somos dependentes de nossos dirigentes e estes são dependentes dos israelenses. Isso cria muita confusão nas relações.

De que maneira a segregação entre israelenses e palestinos se repercute no campo médico? Você escreve inclusive que a medicina é “poluída” pela ocupação. O que você quer dizer com isso?

O campo médico é uma das portas em direção a uma falsa humanidade, falsa caridade. Os israelenses adoram se colocar em evidência quando eles formam médicos palestinos, ou quando eles mesmos tratam palestinos. Os estadunidenses também adoram fazer grandes manchetes sobre palestinos que são operados por israelenses. A medicina também serve como ferramenta de propaganda e de chantagem: por exemplo quando palestinos se tornam colaboradores para que um membro de sua família possa receber tratamento.

Entretanto, Israel já atacou muitas vezes hospitais e atirou em ambulâncias para deter os palestinos. O Estado israelense também mata equipes médicas palestinas de Gaza à Cisjordânia e torna a circulação difícil para estes últimos. O acesso aos tratamentos médicos para os prisioneiros palestinos é escandaloso. Israel, por exemplo, legitimou a alimentação forçada de prisioneiros que fazem greves de fome, indo contra a ética médica internacional. Há uma abundância de exemplos

Existe uma solidariedade dos profissionais da medicina com a Palestina no mundo?

Essa solidariedade existe mais nos países anglófonos que francófonos – e pouco nos países árabes, onde os médicos têm suas próprias urgências e suas crises para lidar. Há muitas ONGs que tentam ajudar os palestinos. Mas os palestinos precisam diferenciar a verdadeira ajuda da “má” ajuda. Com efeito, através da ajuda médica, há tentativas de influência sobre a agenda palestina. Mas existem também as parcerias firmadas sobre bases igualitárias e politicamente sãs.

Na minha profissão, a psiquiatria, há duas redes principais: USA Palestine Mental Health Network (https://ukpalmhn.com/usa-palestine-mental-health-network/) e UK Palestine Mental Health Network (https://ukpalmhn.com/). São duas redes de profissionais psiquiátricos que querem conhecer a relação entre a colonização e a Palestina e os problemas psiquiátricos dos palestinos. Como eu disse anteriormente, a IARPP decidiu organizar uma conferência internacional em Te-Aviv em 2019. Nós tentamos impedir isso explicando que Tel-Aviv não oferece nenhuma segurança nem aos palestinos nem às pessoas que apoiam a Palestina – e que são muitas vezes reprimidas no aeroporto. Então, nós demandamos a mudança de local da conferência. Mais de mil e quinhentos profissionais já assinaram essa petição.

Nós também tentamos elaborar uma literatura sobre o assunto. Se tomamos o exemplo do apartheid sul-africano, constatamos que se encontra pouca literatura psiquiátrica criticando ao apartheid durante o apartheid. Foi preciso esperar o seu fim para que obras sobre o assunto começassem a serem escritas. O que eu tento fazer neste momento é realizar uma colaboração internacional de coirmãos e coirmãs – de modo a não esperar o fim da ocupação da Palestina. Eu espero que nós deixaremos como herança um movimento psiquiátrico que não apoia o poder israelense em nossa área, mas que explica, com a linguagem de nossa profissão, a situação. Incluindo os meus colegas franceses.

Entrevista originalmente publicada em Contretemps. Tradução de Pedro Micussi para Revista Movimento.


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