O 1984 de Geore Orwell parece mais vivo do que nunca

1984 é a visão que ofereceu Orwell sobre o futuro imediato que espera a humanidade, visão que deixa entrever um “desespero ilimitado.

Pepe Gutiérrez-Álvarez 9 jun 2018, 20:18

Ainda que esta obra tenha sido vendida pelos ministérios da verdade como uma denúncia total do stalinismo em seu apogeu e assim foi apresentada especialmente, no próprio ano de 198, nas vésperas da derrubada do “socialismo real”, o certo é que, como escreveu Júlio Cortázar, Orwell arremeteu contra tudo o que não lhe agradava de seu mundo mais próximo. O caso é que o tempo tem confirmado esta premissa, daí que a novela é um dos clássicos mais vendidos, sobretudo nos últimos meses1.

Recordemos que nos primeiros tempos da segunda guerra mundial, Orwell via que ainda existia a possibilidade e a necessidade de uma alternativa socialista no final da guerra, ainda somente fosse na Inglaterra. Embora tenha se comprometido no combate, nunca duvidou de que a contenda resultou uma conflagração entre o mal e o pior. Os compromissos que seguiram à guerra confirmaram Orwell na ideia de que para os vencedores nenhuma razão superava a “raison d ’Etat”, e que isso significava o pior. A imposição do modelo soviético – para Orwell, um autêntico antimodelo – nos países do Leste à maneira stalinista e, sobretudo, a nova assinatura da arrogância norte-americana que havia lançado uma bomba atômica sobre um povo “de cor”, lhe convenceram que o porvir da humanidade não podia ser mais terrível.

As derrotas sofridas pelas revoluções levaram-no a desconfiar da possibilidade de uma alternativa frente aos blocos, e só viu um mundo no qual os poderosos se impunham sobre suas “próprias classes inferiores” e sobre os povos empobrecidos das colônias. Os blocos eram distintos em suas bases sociais mas a situação lhes obrigava a utilizar medidas excepcionais. Previu um mundo dominado por um “equilíbrio do terror” no qual não é difícil descobrir algo do que veio depois: “O medo inspirado pela bomba atômica e por outras armas futuras será tão grande que todo o mundo deverá vigiar para que não sejam empregadas. Esta me parece o pior das possibilidades. Significaria a divisão do mundo entre dois ou três grandes Estados, incapazes de se dominarem mutuamente e impossíveis de transformar por revoltas internas. Segundo todas as probabilidades, terão uma estrutura hierárquica com uma casta e uma escravidão pior do que tudo o que o mundo já conheceu agora. Em cada Estado, a psicologia geral requerida será mantida por uma ruptura completa com o mundo exterior, e por uma guerra de ondas permanente contra os Estados rivais. As civilizações deste tipo podem ser mantidas estáticas durante milhares de anos”.

Em diferente medida, estas previsões cheias de pessimismo e angústia iam ganhando corpo desde tempos atrás, e não faltam entre os especialistas orwellianos os que encontram seus primeiros rastros no ambiente opressivo e hierárquico de St. Cyprien, onde compreendeu que não podia ser ele mesmo, tal como era, mas alguém que devia esconder suas inclinações mais naturais. Mas estas previsões começaram a se tornar realidade em seu regresso da Espanha onde a atuação dos liberais, dos sociais-democratas e, sobretudo, dos stalinistas, levou-o a crer que embora o fascismo seja o pior dos inimigos, seus opositores estavam assumindo parte de suas tendências totalitárias. As primeiras linhas que transparecem esta preocupação se encontram já em seu romance Um pouco de ar, por favor! e em alguns de seus escritos pacifistas, anteriores ao que podíamos chamar seu giro patriótico-revolucionário.

No entanto, sua preocupação com o totalitarismo se intensificou ao final da guerra. Numa carta escrita em 1943 dizia que o desenvolvimento do totalitarismo e do culto ao máximo chefe pode se prolongar apesar de uma vitória contra o Eixo. Via o sintoma dessa nova enfermidade para além do nazi-fascismo e inclusive do stalinismo que o haviam levado, de distintas maneiras e com diferentes conteúdos, até suas últimas consequências. Orwell interioriza, com essa sensibilidade em relação aos signos do auge totalitário – termo que entendia num sentido muito mais amplo que o puramente anti-stalinista e, para não dizer, anticomunista-, os problemas de seu isolamento político. Se encontrava sozinho frente a classe dominante e contra os aparatos organizados da classe operário e teve que manter um tremendo equilíbrio.

Tampouco quis estar com os que sustentavam uma luta aberta numa frente dupla, com as minorias revolucionárias. Seu socialismo estava agora coberto pela inquietude e a ansiedade mais intensas. Em janeiro de 1946, aproveitando a oportunidade para comentar uma série de livros socialistas num amplo artigo publicado no Manchester Evening News, se perguntava o que havia ocorrido com a velha ideia da “fraternidade humana”, que significava entre outras coisas a abolição “da guerra, do crime, das enfermidades, da pobreza e do esgotamento laboral”, e que havia sido abandonada em favor de uma sociedade de castas de “um gênero novo no qual devemos abdicar de nossos direitos individuais pela segurança econômica”, ou seja por um socialismo tal como ele via na Rússia soviética e frente ao qual não parecia contar com nenhuma alternativa depois de seu fiasco com os trabalhistas. Os socialistas, dizia, “não estão obrigados a pensar que se pode chegar a uma sociedade perfeita”.

Na luta entabulada entre o maquiavelismo burguês, a burocracia stalinista e a utopia revolucionária, ele não tinha nenhuma dúvida, era a utopia que impulsiona o progresso: “Se estudamos a genealogia das ideias que defendem escritores como Koestler e Silone, podemos ver que se remontam a utópicos como William Morris. O ‘paraíso terrestre’ nunca pôde ser realizado mas a ideia não parece ter perecido nunca, apesar da facilidade com que os homens políticos de todas as cores a puderam destronar. Disso se superestima que podemos fazer qualquer coisa com a natureza humana e que esta é capaz de se desenvolver até o infinito. Esta fé foi a principal força motriz do movimento socialista”. Orwell sentia ao mesmo tempo uma grande desconfiança pelas “minorias proféticas”, como se evidenciava de seus contínuos comentários depreciativos com os grupos trotskistas e anarquistas, e não assumia plenamente as possibilidades de uma renovação do socialismo pelo simples fato de que contemplava a realidade imediata e o porvir como situações bloqueadas pelos aparatos, cuja única função é a de se manter no poder pela mera atração que este exerce. Daí que, ao contrário de um Jack London, um dos grandes antecessores de 1984 com sua obra The Iron Heel, Orwell não via a luz no final do túnel. O pessimismo lhe pesou muito e o fervente utópico escreveu a mais tremenda anti-utopia da história.

Dentre todas as referências, o único que foi considerado como seu antecedente direto é Zamiatin. Resulta evidente que entre ambos existem não poucas similitudes e está comprovado o entusiasmo de Orwell com Nós. Partindo deste fato, Deustcher chegou a dizer que “a afirmação de que Orwell tomou de Zamiatin os principais elementos de 1984 não é a adivinhação de um crítico com habilidade para rastrear influências literárias” e afirmou que o ensaio de Orwell sobre Nós, escrito em 1946, era um “testemunho conclusivo” do que dizia. Apesar de toda esta vigilância, os instintos humanos se encontram presentes. Os rebeldes cultivam atividades tão “subversivas” como fumar ou beber álcool, e os detidos são submetidos a uma estranha combinação de cura e tortura na qual terminam sempre se dobrando. Na opinião de Orwell a obra de Zamiatin compreende muito melhor que a de Huxley, “o lado irracional do totalitarismo (o sacrifício humano, a crueldade como um fim em si mesmo, o culto a um chefe ao qual se concedem atributos divinos)…” Em Zamiatin há uma razão poderosa que não é a exploração econômica, mas “a fome de poder, sadismo e dureza” da casta dirigente. O esquema se aproximava ao de Orwell, que explicou assim os propósitos da ditadura: “O partido quer o poder simplesmente pelo poder… o poder não é um meio, é um fim. Não se estabelece uma ditadura para salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura. O objeto de perseguição… O objeto do poder é o poder…”. Se nos atemos ao biógrafo de Orwell, Bernard Crick, o conhecimento por parte deste da obra de Zamiatin não modificou substancialmente uma elaboração que vinha de mais atrás e se remete a Andrés Nin, seu companheiro do POUM, que foi junto com Trotsky o modelo para o adversário número um do Grande Irmão.

1984 é a visão que ofereceu Orwell sobre o futuro imediato que espera a humanidade, visão que deixa entrever um “desespero ilimitado” (Deutscher). O cenário é uma Grã Bretanha dominada por um sistema de “coletivismo burocrático” e na qual se podem encontrar grandes marcas da URSS de Stálin, mas também da Inglaterra de seu tempo e dos Estados Unidos. Trata-se de uma dantesca representação de tudo o que agradava a Orwell na sociedade moderna na qual um homem é convertido numa parte de Oceania como ele descreve, nos encontramos com paisagens conhecidos: a obscura e triste monotonia dos subúrbios operários, a “imunda, suja e fedorenta” fealdade de um meio ambiente em putrefação ecológica, o racionamento da comida e os controles governativos que foram carta comum durante a guerra, o lixo da imprensa “que apenas contém outra coisa que esportes, crimes, astrologia, sensacionalistas novelas baratas, filmes manchados de sexo”, etc. O Ministério da Verdade se dedica a divulgar as notícias da guerra nos quais nunca se pode saber se se trata da verdade ou da mentira e, ademais, se insiste constantemente em que nunca ocorre nada e em que a normalidade está assegurada. As ruas estão cheias de fotos do Grande Irmão com uma nota na qual se diz que este vigia, assinalando sua onipresença. A vigilância está assegurada por uma Polícia do Pensamento que controla tudo. Não existe a história fora da versão oficial que indubitavelmente está preparada. Se fala de uma “novilíngua” e se utilizam palavras como “novofalar”, “velhodizer”, “mutabilidade do passado”, “criminopensar”, “duplipensar”, etc., com as quais o Poder torna adequada a verdade a suas exigências irracionais. Periodicamente tem lugar uma Semana do Ódio na qual os cidadãos estão obrigados a repudiar os inimigos exteriores como aos interiores representados por Goldstein e a Irmandade, aos que se lhes atribui maldades sem fim; esta Semana serve ao mesmo tempo para reafirmar a fé no sistema e em sua personificação, o Grande Irmão.

Nestas condições a vida resulta cada vez mais sórdida, mais suja, as casas são cada vez menos habitáveis e estão cheias de gente sem intimidade nem vida própria possível. Os cidadãos se vigiam mutuamente e são os jovens, as mulheres e as crianças os mais fanáticos de todos. O protagonistas, como o restante da gente que conhece, carece de capacidade para olhar ao passado e de controlar minimamente o presente; simplesmente tem que acreditar no que lhe dizem sob pena de se tornar um dissidente. O partido tem três consignas: “A guerra é a paz”, “A liberdade é escravidão” e “A ignorância é força”. O governo se concentra em quatro ministérios: o Ministério da Verdade, que se encarrega da propaganda e da criação de uma nova linguagem, a Novilíngua, que impedirá qualquer forma de divergência ideológica, o mínimo que seja; o Ministério do Amor, do qual depende a Polícia do Pensamento, que mantém a lei e a ordem e vigia noite e dia o povo; o Ministério da Fartura que é aquele que regula o racionamento e procura que as necessidades mais elementares não faltem e, finalmente, o Ministério da Paz. Nos ministérios trabalham alguns “funcionários besouros”, os intelectuais, que são os mais vigiados.

Entre estes funcionários se encontra Winston Smith, que trabalha no Ministério da Verdade. Em sua progressiva e difícil tomada de consciência, Winston frequenta os prostíbulos e subúrbios onde vivem abarrotados os “proles”. O partido pretendia ter “liberado” a estes numa revolução cuja história real o protagonista tenta em vão reconstruir. Entretanto, o partido não se atreve a fazer ato de presença nestes lugares onde o álcool, a loteria, a subcultura e o medo mantêm subjugada a população. Por sua vez, Winston intui que os “proles” são humanos e representam a parte menos alienada do sistema. Por isso escreve em seu diário oculto notas como estas: “Se há alguma esperança está nos proles. Até que não tenham consciência de sua força não se rebelarão, e até depois de ter-se rebelado, não serão conscientes. Este é o problema”.

Acreditam descobrir que um companheiro de departamento chamado O’Brien é outro revolucionário e confiam nele. Querem que lhes facilite “o Livro” de Goldstein e um contato com a oposição clandestina. Conseguem o livro que se chama Teoria e prática do coletivismo oligárquico, onde se explica como se havia desenvolvido a revolução, como foi traída e subjugada por uma casta minoritária, e as razões de como se mantêm no poder. Winston chega a compreender o como, mas nunca o porquê de toda a trama do “coletivismo oligárquico”. Finalmente, resulta que O’Brien é um membro do Partido Interior, e ambos são detidos e torturados psicológica e fisicamente; Winston confessa tudo o que é preciso confessar, mas é ainda insuficiente. O’Brien descobre isso que o porquê é simples e claramente o Poder pelo Poder: “Somos os sacerdotes do poder – disse O’Brien-. O poder é Deus”.

Nesta ocasião, Orwell não teve nenhuma sorte de problemas para a edição, mas o contrário. O livro foi publicado em junho 1949, em Londres e Nova York, oito meses antes de sua morte durante os quais tratou em vão de estabelecer seu justo significado. Não tardou em conseguir uma popularidade excepcional, como talvez não tenha havido nenhum romance político. Neste êxito concorreram fatores extra-literários tão importantes como a “guerra fria”. Tal como ocorreu com A Revolução dos Bichos, 1984 foi interpretado unilateralmente como uma fábula antirrussa e anticomunista, provocando um medo irracional absurdo e animando com eles as posições direitistas mais sectárias e brutais.

Por mais que a opinião dos intelectuais mais sensatos dissesse o contrário, por mais que o próprio Orwell tratasse de deixar clara sua posição, por mais que resultasse patente no romance que o mundo que se descreve tem uma combinação de fatores tanto do “mundo livre” como do “campo socialista”, por mais que ele se refira aos nazis e aos stalinistas, e também a Churchill e a Roosevelt, por mais que utilize imagens que ilustrem a opressão dos países coloniais ou semicoloniais, um autêntico Ministério da Verdade e uma autêntica imprensa-lixo se encarregaram de torcer seu conteúdo até as posições mais repugnantes de um dos blocos.

Tampouco pretendia oferecer uma teorização, queria transmitir um estado de ânimo. Orwell não pôde especificar suas inquietudes porque para isso teria escrito uma obra de tese e não um romance. Mas as tergiversações chegaram ao extremo que se viu obrigado a intervir, e numa ampla nota de imprensa, adiantou alguns detalhes de como entendia sua obra: “Certos críticos de 1984 sugeriram que a opinião do autor é que qualquer coisa como a que descreve, ou algo parecido, chegará nos próximos quarenta anos ao mundo ocidental. Isso não é exato. Creio, sem esquecer que o livro é antes de tudo uma paródia, que alguma coisa como 1984 poderia chegar. Esta é a direção que toma o mundo atualmente, e a tendência está profundamente ancorada nas bases econômicas, sociais e políticas da situação atual… Particularmente, o perigo repousa nas estruturas impostas às comunidades socialistas e capitalistas liberais pela necessidade de preparar uma guerra geral contra a URSS com os novos armamentos, entre os quais a bomba atômica é evidente a mais potente e a mais conhecida.

George Orwell estima que se as sociedades descritas em 1984 chegassem a existir, haveria vários super-Estados. Esto está perfeitamente explicado nos capítulos do romance. Também é abordado, desde um ângulo distinto, por James Burham em The Managerial Revolution. Estes super-Estados se oporiam mutuamente ou (uma ideia do romance) pretenderiam aparecer opostos ainda que não o estivessem na realidade. Dois desses super-Estados seriam evidentemente o mundo anglo-americano e a Eurásia. Se esses dois grandes blocos chegam a se definir como inimigos mortais, está claros que os anglo-americanos não tomariam o nome de seus oponentes e não se apresentariam na cena da história tanto que comunistas. Em consequência, teriam que encontrar um novo nome para eles mesmo. O nome sugerido por 1984, está bem claro, Angsoc, mas na prática há mais para escolher. Nos Estados Unidos, a expressão “americanista” ou “cem por cento americano” convém, e o adjetivo qualificativo é o suficiente totalitário para se manter. Um ponto de vista que raramente tem sido registrado pelos intelectuais orgânicos, mas que tem cobrado veracidade com a passagem do tempo. Está claro que o caso Trump convida a refletir sobre 1984.


Nota

1 Um porta-voz da editora Signet Classics, que publica atualmente 1984, destacou à rádio pública NPR que desde a posse do 45º presidente dos EUA, “as vendas aumentaram em 10 000%”.


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