Ingmar Bergman, 100 anos
No dia de seu centenário, publicamos artigo sobre a vida e obra de um dos mais importantes cineastas do século XX.
Não é um mistério para ninguém: com a morte de Ingmar Bergman, se vai um monumento do cinema. Monumental, sua obra deve sua legitimidade ao seu diálogo interrupto com a cultura europeia e à alta ideia que fazia o cineasta de sua arte. O seu nome, por excelência, encarnaria a passagem do cinema como divertimento de massa a uma das artes mais refinadas do século XX. Por trás desse posto de Comandante do cinema de arte – ao que, Deus sabe, ele não deveria ser reduzido – sua obra prova que Bergman foi um homem de carne e de sangue, assim como de espírito, causando com sua criação um conteúdo de fantasia, cintilante e atormentado de uma vida plena de inquietação, drama e de furor introspectivo. Do mesmo modo, a escuridão metafísica da obra, a amargura das interrogações existenciais que se exprimem, não deveriam fazer esquecer o feroz apetite pelo apreço à vida. Todo o Bergman está, além disso, nessa tensão, e toda a sua obra, por si só, imprime esta inexorável dualidade.
Como sublinham Olivier Assayas e Stig Bjorkman no prefácio a seu livro de entrevista consagrado ao cineasta: “Bergman colocou tudo em seus filmes. Ele está inteiro neles. Ele está nu. Ao mesmo tempo ilusionista e primeiro denunciador dessa ilusão. Ao mesmo tempo vulnerável e acessível, humano e insaciável”.
Essa vida que seus filmes prolongam e a transfigura começa em 14 de julho de 1918 em Uppsala, na Suécia, onde Bergman vê a luz do dia dentro de uma casa rigorosa, de um pai pastor da Igreja luterana e de uma mão de origem valã. O cineasta dá, em sua autobiografia, uma imagem de sua educação que, se ela se revela mais ambígua do que poderíamos resumir, não impressiona menos por sua crueldade.
Ele não se indentificaroa, adolescente, olhando uma gravura de Gustave Doré sobre o Isac biblíco a ponto de ser sacrificado por seu pai? Não vai ele explicar a inércia de seu país face o nazimso pela interiorização mental das regras de uma sociedade contraída pela crença no pecado e na confissão da culpa? Ele mesmo, como ele próprio reconhecera mais tarde, foi sensível aos vinte aos às funestas sirenes deste período sombrio.
O efeito de distanciamento que sinaliza a modernidade
Qualquer que seja ele, o refugio no imaginário e o recurso às delicias da ilusão se impõem muito cedo em sua vida, a ponto de borrar, segundo suas próprias confissões, a fronteira entre o sonho e a realidade. Essa propensão conduzirá o jovem Ingmar Bergman dos divertimentos da infância (montagem de pedaços de filme, prática da fotografia, construção de um teatro de marionetes) à escrita e à encenação de teatro em Estocolmo, cidade para qual ele se muda ainda muito jovem, fora do alcance da celula familiar.
As peças que ele monta neste quadro, com uma predileção por Strindberg e Shakespeare, o fazem muito cedo ser percebido por certos profissionais do cinema, que o integram, em 1942, na equipe de roteiristas da poderosa sociedade de produção Svensk Filmindustri. Desde então, ele não cessará, sob um ritmo frenético, de colocar de fronte as duas atividades, a partir de uma divisão sazonal que o mantém durante o inverno concentrado no teatro enquanto se consagra, durante o verão, à rodagem de seus filmes.
O primeiro deles, realizado em 1945, se intitula Crise, melodrama onde profilam já algumas das principais obsessões bergmanianas (a filiação, a ilusão e a necessidade das aparências, a violência e a repressão do desejo, a ruína do casal). O filme foi um fracasso. Não será nem o primeiro nem o último. Mas a revanche será ainda mais brilhante
Alguns de seus primeiros filmes, dirigidos sob a influência do neorrealismo, são assim percebidos na França, onde os jovens críticos da futura Nouvelle Vague dão um destino muito favorável à Monika e o desejo (1953). Interpretado pela sensual Harriet Andersson, que faz resplandecer suas dezenove primaveras no papel principal, esse drama, que passa à época como um filme erótico, vale por sua descrição incrivelmente carnal de uma juventude ávida pelo prazer, antes de pagar o preço da traição e da solidão pela sociedade.
O famoso olhar direto à câmera de sua heroína no final do filme – este momento petrificante onde a jovem mulher se prepara para abondonar seu filho e o homem que ela amou colocando o espectador como testemunha dessa necessária crueldade – encontra notavelmente em Jean-Luc Godard um interprete abalado, que a vê, com o efeito do distanciamento que sinaliza sua modernidade, “o plano mais triste da história do cinema”.
O despojamento, os “entre portas fechadas”
Mas Bergman esta destinado a uma glória ainda maior. Sorrisos de uma noite de amor (1955), brincadeira espumante onde plana a sombra ameaçadora da humilhação e da vergonha, é premiado no Festival de Cannes e o faz ser reconhecido finalmente pela crítica internacional, antes que O sétimo selo (1956), mais uma vez premiado em Cannes, o consagre como um autor de primeira linha.
Esse poema alegórico, alimentado pelo Apocalipse de São João e mergulhado em uma Idade Média de pura convenção, evoca o enfrentamento metafísico do homem e de sua própria morte. A recompensa suprema é, contudo, acordada no Festival de Berlim em 1957, onde o Urso de Ouro coroa Os morangos silvestres, retorno, no momento de sua morte, de um velho homem sobre o caminho de sua vida.
Com a trilogia que engloba Através de um espelho (1961), Os Comungantes (1963), e O Silêncio (1963), Bergman – que é, neste meio tempo, nomeado em 1963 à direção do Teatro Nacional de Estocolmo – inaugura a temática de filmes de quarto, explicitamente empresteado de seu autor preferido, Strindeber, ao mesmo tempo em que cruza uma nova etapa na pesquisa de uma expressão que está relacionada com a modernidade cinematográfica.
O despojamento, os “entre portas fechadas”, a exploração do rosto como cena são aqui colocados ao serviço de problemas intimamente embaralhados pelo imaginário e pela realidade, pela carne e pelo espírito, pelo prazer e o dever, o amor e a raiva. Eles anunciam o pico de sua obra, Persona (1966), variação de uma audácia desconhecida sobre o tema da cópia e os abismos inescrutáveis da psique que a confrontação de Liv Ullmann e Bibi Anderson confere uma intensidade aguda, mas também uma reflexão sobre o cinema como duplo fantasma da realidade.
Então vivendo na solitária ilha de Faro, no mar Báltico, Bargman vai empurrar essa inspiração ainda mais, em uma série de filmes insulares balizados pelos maus ventos da morte e da busca expiatória, com o ator Max Von Sydow condecorado como cópia do autor. A Hora do Lobo (1967), Vergonha (1968), A Paixão de Ana (1969), centrados ao redor de um casal, testemunham essa escuridão metafísica.
Tentação niilista, onirismo assombrado pelas forças desencadeadas do inconscientes, defiguração e degradação do humano, são aqui colocados a serviço de uma causa implacável da criação e do imaginário como forma de mentira, de terror e de negação. Longe de se absolver da infâmia do mundo, o artista Bergman lava a roupa em frente de casa, estigmatizando a perversidade atormentada de sua própria inspiração e a futilidade de uma arte que falha em entregá-la.
Ultrapassar a dilaceração de seu tormento
Entretanto, é enfrentando explicitamente uma angustia, dando uma imagem (a da Pieta sublime de Gritos e Sussurros) a essa morte que ronda os seres como as imagens, que Bergman vai ao mesmo tempo ultrapassar a dilaceração de seu tormento e dotar de maturidade suas principais obras, embuídas de uma beleza e de uma dor de onde radia, se não a redenção, ao menos o advento de sua probabilidade.
Gritos e Sussuros (1973), Cenas de um Casamento (1974), Sonata de outono (1978) preparam assim a floração desse filme-soma que é Fanny e Alexandre (1982), afresco suntuoso onde a marcha e as mascáras da morte são bem colocadas a serviço de uma das mais magnificas celebrações da vida já encenadas no cinema. Ingmar Bergman perseguiu esporadicamente a televisão, com a qual ele colaborou por longa data, uma obra que evoca, com uma justeza e potência de emoções intactas, a crônica íntima do envelhecimento do artistas e do olhar que ele porta de sua arte. Depois da Repetição (1984), Na presença de um Palkha (1998), assim como seu último filme, Sarabande(2003), sequência tardia de Cenas de um Casamento, colocam em cena com um despojamento e uma inteligência excepcional a constante busca de Bergman pela exposição, pela arte, dos homens e do mundo, do desejo e da morte.
Em Saraband, é o velho Erland Josephan que se “cola” literalmente, se revelando em carne e osso em uma cena de alcova doce-amarga, de uma audácia chocante. É com o mesmo ator que em 2000 o mestre aceitaria excepcionalmente romper sua aposentadoria e seu silêncio registando, sob forma de entrevista com esse amigo de juventude e superego das telas, uma emissão para a televisão sueca.
Ele dizia da dor que a morte de sua mulher em 1995 havia provocado, a crueldade que recai sobre o destino do sobrevivente, e esse lento e penoso naufrágio que é para todo homem a velhice. “De agora em diante, continuar a viver me é completamente indiferente”, ele declarou, não sem adicionar que havia decidido com seu velho amigo de “controlar um ao outro nosso potencial de senilidade”. Entre as duas águas da ironia cortante e da desordem trágica, Ingmar Berman deverá até o fim de suas forças continuar a entreter o conhecimento pelos abismos e a fé pela vido até o cume do abismo.
Evocando o celebre “Oh meu Deus, que minha alegria permaneça”, anotado em seu diário por Jean-Sébastian Bach no retorno de sua viagem ode ele descobre a morte de sua mulher e de seus filhos, o cineasta escreve o seguinte em sua autobiografia: “Durante toda minha vida consciente, eu vivi o que Bach chamava de sua alegria. Ela me salvou em todas as minhas crises, em todas as minhas misérias, ela me foi tão fiel como meu coração”. Reconsiderando sua obra, hoje que ela definitivamente se juntou ao reino das sombras, mesmo os que embutiam em Bergman uma sinistra reputação deveriam terminar por abrir os olhos e constatar, na medida em que o fluxo da vida desafia as potências da morte, a que ponto sua alegria permanece!
Artigo publicado no Le Monde, em 31 de julho de 2007, na ocasião da morte do diretor. Tradução de Pedro Micussi para a Revista Movimento.