A mais estranha das ilhas

Nos 25 anos da morte do historiador E. P. Thompson, resgatamos análise de seu célebre ensaio “As Peculiaridades dos Ingleses”.

Nicolau Sevcenko 28 ago 2018, 13:21

Para ter uma idéia da importância do trabalho de Edward Thompson, atentemos para o que dele dizem alguns dos mais notáveis historiadores do século 20. Para Christopher Hill, ele “era o historiador contemporâneo britânico mais conhecido fora da Inglaterra. Sua influência mundial sobre os estudantes de história tem sido incalculável… O vasto sucesso de seu grande livro “A Formação da Classe Operária Inglesa” (1963), fundou o valor da história a partir de baixo… Ele não tinha paciência alguma com o determinismo demográfico e estatístico nem com termos enganosamente “neutros”, como “modernização” e “industrialização”, usados com o fim de evitar o rude termo “capitalismo”. O marxismo de Thompson era inteiramente alheio a dogmas preconcebidos”.

Com mais verve ainda, Eric Hobsbawm comentou: “Nos anos 80 Thompson era, de acordo com o Arts and Humanities Citation Index, o historiador do século 20 mais recorrentemente citado em todo o mundo e um dos 250 autores mais frequentemente citados de todos os tempos… (Sua) obra aliou paixão e intelecto, os dons do poeta, do narrador, do analista. Ele foi o único historiador que conheci dono não só de talento, brilhantismo e erudição -e da dádiva da escrita- como também capaz de produzir algo qualitativamente diverso de tudo aquilo que o resto de nós produziu, impossível de ser medido pela mesma escala. Chamemos simplesmente de genial, no sentido tradicional da palavra”.

Pode soar generoso, mas está longe de ser exagerado, sobretudo partindo de quem parte. Desde o lançamento da “Formação”, que já surgiu como um clássico, Thompson se tornou uma das principais referências mundiais tanto no que se referia ao desenvolvimento teórico e metodológico da pesquisa em história social quanto no incremento e qualificação da reflexão histórica como um dos instrumentos críticos mais eficazes para o avanço do debate democrático.
Grande polemista, personalidade magnética, capacidade rara de traduzir com a maior clareza os mais intrincados argumentos filosóficos, sua popularidade cresceu em progressão contínua. De seu prestígio único como historiador, ele em breve se tornou a fonte por excelência da consciência humanitária no Reino Unido. Quando o conheci, em meados dos anos 80, não foi como historiador, mas como a voz dominante na campanha pacifista e no apoio à luta contra o apartheid.

Thompson não era pessoa que se sentisse à vontade no meio acadêmico, partidário ou de toda instituição restritiva. Vindo de uma família de longa tradição radical, ele e o irmão eram comunistas filiados desde a adolescência e ambos lutaram na Segunda Guerra. Frank foi preso e executado na Bulgária, Edward lutou na África e na Itália. Depois da guerra colaborou nas brigadas de solidariedade à Iugoslávia. Em 56, ante as relutâncias do Partido Comunista da Grã-Bretanha de aceitar as denúncias aos crimes do stalinismo e após a invasão da Hungria pelas tropas soviéticas, ele rompeu com o partido, junto com a maior parte do notável grupo de historiadores que ali se haviam aglutinado entre meados dos anos 40 e 50.

Com outros jovens de sua geração, criou a revista “New Reasoner”, fonte do que se tornaria a chamada Nova Esquerda, agrupada a partir de 1958 na “New Left Review”. Na universidade, trabalharia de 47 a 71, a maior parte do tempo em programas de extensão voltados para adultos sem formação superior. Devido à intolerância e ao ambiente repressivo pós-68, abandonou a academia. Confrontou as tendências autoritárias e positivistas dentro do marxismo, mantendo um diálogo crítico franco com outras correntes, sempre fiel à suas convicções democráticas e humanitárias, até sua morte em 93.

Algumas de suas obras básicas foram publicadas no Brasil, como “A Miséria da Teoria” (Jorge Zahar, 1981), “Exterminismo e Guerra Fria” (Brasiliense, 1985), “A Formação da Classe Operária Inglesa” (Paz e Terra, 1987), “Senhores e Caçadores” (Paz e Terra, 1987) e “Costumes em Comum” (Cia. das Letras, 1998). A presente edição, centrada no ensaio “As Peculiaridades dos Ingleses”, tem a dupla intenção de revelar ao público a notável carreira intelectual e política de Thompson, reunindo ao mesmo tempo textos que condensam as questões teóricas que se destacaram em sua pesquisa e em seus debates com as correntes marxistas e outras predominantes em seu tempo.

Na parte sobre Thompson e sua obra há um obituário muito tocante, escrito por Eric Hobsbawm, seguido de ensaios bem formulados sobre seu percurso historiográfico e político e seu debate crítico com a herança marxista. Seguem-se o seminal “As Peculiaridades” e mais quatro artigos, sobre a história social, a cultura popular, a interlocução com a antropologia e a crítica aos usos do conceito de classe social.

das ilhas

No conjunto, uma edição enxuta, sintética e imprescindível para todo e qualquer estudioso de história ou ciências sociais, assim como para o público interessado em refinar o debate político, sobre questões tão diversas quanto os potenciais democráticos do socialismo, as prioridades da agenda social ou a generosidade interessada dos intelectuais.

O ensaio sobre “As Peculiaridades dos Ingleses”, sendo a alma e o esteio do volume, tem uma história que o precede e lhe dá o contexto. Após o momento de ebulição intelectual e associativa que se seguiu à fundação da Nova Esquerda, em fins dos anos 50, a intensidade das demandas políticas e da reorganização acadêmica dragou suas forças. No início dos anos 60 uma nova geração, encabeçada por Perry Anderson e Tom Nairn, assumiu a cena.

Anderson se tornaria o novo editor da “New Left Review” e, ato contínuo, junto com Nairn, passaria a escrever uma série de artigos revendo a interpretação da história inglesa legada pelo grupo anterior. Suas novas fontes teóricas se alinhavam pela revisão estruturalista do marxismo, segundo em especial a cartilha inflexível de Louis Althusser.

Guerra aos neopositivistas

Em 1963 Thompson reuniria toda sua sofisticada artilharia teórica e abriria guerra contra os neopositivistas, com seu ensaio sobre “As Peculiaridades”. O artigo põe em cena um impressionante bailado intelectual, em que se revezam com irresistível elegância elementos de crítica, ironia, lucidez argumentativa, erudição, rigor conceitual e uma exuberante riqueza de conhecimentos factuais.

O pomo da discórdia era a caracterização que Anderson e Nairn faziam do processo social e político ingleses como incompletos, inconsistentes e irresolutos. Em virtude de uma revolução conspurcada e um capitalismo bastardo, a burguesia inglesa seria atípica, e o proletariado, subordinado, o que resultou num presente mofino e num futuro estéril. Uma linha de análise sem respaldo de pesquisa e que fazia tábula rasa da extraordinária produção dos historiadores marxistas ingleses.

O que Thompson contesta sobretudo em Anderson é sua obstinação em conceber e apenas admitir um e único “modelo” de processo histórico, de classe social e de revolução, que no caso da burguesia implicaria na repetição universal da história francesa e, no do proletariado, na reedição por toda parte do episódio russo.

Nas palavras de Thompson: “Estou me opondo a um modelo que concentra a atenção sobre um episódio dramático -“a” Revolução-, ao qual tudo que vem antes e depois deve ser relacionado e que institui um tipo ideal dessa revolução contra a qual todas as outras devem ser julgadas. Mentes que anseiam por um platonismo asseado logo se tornam impacientes com a história real”. O que leva Thompson a conclusões como: “Se não há lugar para ela (a história real) no modelo, é este que deve ser abandonado ou refinado”.

Essa é a questão das “peculiaridades” da história inglesa. Há no caso inglês uma interpenetração entre interesses capitalistas e agrários, em particular dada a singularidade dessa camada ambivalente que é a “gentry”, capitalista, mas assentada no campo e envolta em práticas senhoriais. Ela redefiniu o conjunto do cenário social, tanto colaborando para a sobrevivência tardia da aristocracia quanto para a consolidação de um padrão teatral e legalista da hegemonia burguesa, baseado nos tribunais, juízes e numa tradição casuística, aberta a todo tipo de mediação e negociação. Situação que predispunha, por sua vez, a classe trabalhadora a uma práxis de lutar por direitos, franquias e regulamentações a partir do reconhecimento do seu papel e peso político particular no confronto geral das forças sociais.

Atitude utilitarista

A resultante desses processos peculiares é a mesma na Inglaterra como em outros países, a formação do proletariado e a consolidação do capitalismo. Mas, Thompson repete várias vezes, “aconteceu de um modo na França e de outro na Inglaterra”. Em especial, ressalta ele, esse apego ao prático, ao tópico, ao contingente, derivava da atitude utilitarista da burguesia inglesa. Ela negava o Estado e o controle abstrato da nação em nome de uma razão planejadora, em favor do poder local e da liberdade de iniciativas.

É por isso que não se teria desenvolvido uma ciência política inglesa, mas sim formulações práticas da gestão econômica e da liberdade de iniciativas. Seria esse “idioma” empírico que os ingleses aplicariam às ciências naturais e exportariam, com enorme sucesso, para todo o mundo. No limite, era esse mesmo idioma, atento ao particular, ao circunstancial, aos mecanismos que comandam a dinâmica da vida e das mudanças, que Thompson reconhecia como a herança mais preciosa do marxismo inglês, destilado pela sua geração. E é com base nesse legado atento ao concreto, às contradições e à vida pulsante que ele fustigava seus adversários.

Anderson e Nairn estão muito tristemente enganados se acham que, nesses últimos tempos, irão destronar o “empirismo” em nome de um sistema marxista auto-suficiente, (…) adornado com alguns neologismos. Nem lhes deveria ser permitido empobrecer o criativo impulso da tradição marxista desse modo. Pois o que falta ao seu esquema são os “grandes fatos”, e é improvável a Inglaterra capitular ante um marxismo incapaz de ao menos entabular um diálogo com o idioma inglês.”

Em favor de seu argumento ele invoca ninguém menos que Engels, o qual em carta a Marx lastimava que “a concepção materialista da história (…) (tenha) muitos amigos hoje em dia, a quem serve como desculpa para não estudar a história”.

No limite, para Thompson, negar o concreto implica em renunciar ao humano, à vida e às circunstâncias que afligem homens e mulheres de carne e osso, reduzidos à retórica conceitual de uma doutrina abstrata. Daí seu ataque a conceitos idealizados de classe e consciência de classe. “Reduzir classe a uma identidade é esquecer exatamente onde repousa a agência, não na classe, mas nos homens”.

Terminemos com uma formulação lapidar que, tanto resume o argumento deste livro quanto pode servir como uma síntese do testamento intelectual de Thompson: “A história não pode ser comparada a um túnel por onde um trem expresso corre até levar sua carga de passageiros em direção a planícies ensolaradas. Ou então, caso o seja, gerações após gerações de passageiros nascem, vivem na escuridão e, enquanto o trem ainda está no interior do túnel, aí também morrem. Um historiador deve estar decididamente interessado, muito além do permitido pelos teleologistas, na qualidade de vida, nos sofrimentos e satisfações daqueles que vivem e morrem em tempo não redimido”.

As Peculiaridades dos Ingleses
E.P. Thompson
Tradução: Antonio Luigi Negro e
Sergio Silva
Ed. da Unicamp

Artigo originalmente publicado no dia 8 de setembro de 2001 no jornal Folha de S.Paulo.


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Pedro Micussi