“Ortega sequestrou os valores da revolução de 1979″

Militante nicaraguense profere discurso durante etapa da caravana de solidariedade à Nicarágua no Brasil.

Ariana McGuire 20 set 2018, 12:56

“Olá, me chamo Ariana. Sou representante da Coordenadora Universitária pela Democracia e pela Justiça, um espaço de articulação interuniversitária com presença em todo o território nacional. Temos participação em 12 recintos universitários públicos e privados, e nos conformamos como uma articulação nacional quando começaram a assassinar os jovens universitários que protestavam dentro das universidades.

Não pretendo fazer um extenso resumo dos acontecimentos desta crise, pois imagino que vocês já estejam suficientemente informados quanto a isso. Aos que se interessem por mais dados, indico o relatório da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, disponível na internet. Existe também o informe da Anistia Internacional. Estes documentos relatam com precisão a repressão brutal e o terrorismo estatal do governo Ortega.

Para fazer uma breve contextualização, Ortega sequestrou o imaginário e os valores sandinistas, produto da revolução popular de 1979. Ortega é um imperialista, pedófilo, estuprador e assassino. Cultiva o nepotismo, posto que sua esposa é a sua vice presidenta e seus filhos tem cargos de assessoria, na magistratura e na procuradoria. Controla totalmente a polícia e tem uma aliança estratégica com a ultradireita nicaraguense, com o exército da Nicarágua, com as empresas privadas e com as empresas transnacionais, principalmente as de origem chinesa e russa, mas também de origem estadunidense. Os trabalhos que existem na Nicarágua são empresas transnacionais maquiladoras que empregam mão de obra barata em condições terríveis para a organização sindical.

Há uma falta total de institucionalidade na Nicarágua. Mudaram a Constituição para permitir a reeleição indefinida de Daniel Ortega. As nomeações dos magistrados passam todas pelo crivo de Daniel Ortega. Há um controle firme sobre os principais meios de comunicação, publicidade, postos de gasolina, hotéis, transportes, hospitais, bancos… Ortega tem basicamente o controle da maioria das empresas estatais, compradas com a cooperação venezuelana, que sempre foi utilizada discricionariamente. Nunca tivemos prestação de contas sobre isso.

O “orteguismo” não é uma corrente de esquerda. O orteguismo traiu os valores da luta popular sandinista dos anos 1970 e 80. Seguir defendendo o orteguismo é trair a ideologia de esquerda e o sentido ético da responsabilidade moral que a esquerda apresenta frente aos direitos humanos.

Bem, pondo tudo isso em contexto, identificamos um estado total de vulnerabilidade social e política. Não temos instituições, as leis não são respeitadas. As autoridades não garantem a segurança e a vida de seu povo. 80% da população já se manifestou contra esse regime, exigindo uma mudança radical e a saída do ditador.

Nós, enquanto caravana, somos cada um movimento diferente, porém ao mesmo tempo fazemos parte de uma grande articulação de movimentos sociais que é a maneira pela qual o povo nicaraguense está conseguindo se organizar. Nunca como agora diferentes setores sociais se uniram por uma só luta. Mulheres, feministas, grupos LGBT, estudantes, camponeses, afro-caribenhos, grupos indígenas, grupos sindicais, doutores, professoras, Igreja, empresa privada… ou melhor dito, com certos setores da iniciativa privada. Estamos todos juntos, praticando uma forma improvisada de democracia, onde os processos são horizontais, onde há a participação ativa da sociedade, onde há uma necessidade de se fazer escutar e de propor ideias.

Com esse negacionismo brutal de Daniel Ortega frente ao massacre e aos crimes de lesa-humanidade contra um povo desarmado e pacífico, um povo que não está disposto a enfrentar novamente uma guerra, decidimos visitar a região sul-americana, depois de uma caravana bem-sucedida na Europa. A América do Sul tem uma proximidade maior com a Nicarágua, temos laços maiores de amizade, solidariedade, afeto e história compartilhada. Por isso, decidimos vir falar com vocês, com o Chile, Argentina, Uruguai, Brasil e Peru. Para recordar a responsabilidade que têm de se pronunciar e atuar frente aos massacres que estão sendo cometidos contra os nicaraguenses.

Neste sentido, nossa agenda estabeleceu uma dinâmica de reunião com grupos parlamentares, comissões de relações exteriores, chancelarias, órgãos estatais e governamentais. Ao mesmo tempo, estamos também articulando encontros de ação com diferentes partidos políticos, principalmente com os de esquerda e os progressistas desses cinco países, além de nos reunirmos com os movimentos de base adscritos a esses partidos ou os que trabalham de forma autônoma e independente.

Evidentemente a comunidade nicaraguense residente nestes países tem um papel fundamental no trabalho que estamos realizando. Como parte dos êxitos desta caravana, podemos dizer, a princípio, que tivemos a oportunidade de denunciar com nossas testemunhas e nossa história essa experiência inimaginável de terror que vivenciamos com nossas famílias na Nicarágua. Num primeiro momento, o objetivo era fornecer essa informação de primeira mão. Depois, o nosso objetivo era sensibilizar aqueles que não entendem ou não creem que os acontecimentos relatados na Nicarágua são de responsabilidade de um suposto comandante revolucionário, que na verdade se distancia muito desta aparência.

Aliás, gostaria de denunciar que tenho nove companheiros que neste momento são prisioneiros políticos, submetidos a tortura há 12 dias, sem sequer acesso a alimentação na carceragem, como pôde comprovar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Tentam incriminá-los como “terroristas” e “assassinos”, além de outros delitos inventados. Tratam-se de líderes estudantis, amigos meus que têm um sólido compromisso com uma Nicarágua melhor e mais justa. O mais jovem acabou de completar 18 anos dentro da cadeia, sob torturas físicas e psicológicas. Além disso, deve-se dizer que os assédios maiores contra as mulheres que estão sendo presas, principalmente com as mulheres trans, dado o nível de machismo, misoginia, homofobia e transfobia que caracterizam as sociedades latino-americanas e, em particular, a nicaraguense.

Temos um estado de vulnerabilidade total. A única lei que se aplica na Nicarágua é a Lei Antiterrorismo, promulgada por decreto presidencial em 20 de julho deste ano, num tempo recorde de 2 horas. Esta lei prescreve que qualquer forma de manifestação, protesto, dissidência, ação e mobilização contra o regime de Ortega é um ato terrorista com pena de 20 anos de prisão ou até mais, dependendo das acusações. Para citar um exemplo: a caravana que estamos agora fazendo é considerada um ato de terrorismo, para vocês terem uma ideia do risco que estamos correndo.

Bem, até agora fomos muito bem recebidos pelos grupos que se dispuseram a organizar nossa vinda. A proposta é gerar uma rede latino-americana que funcione desde a América do Sul que sirva para assessorar o povo nicaraguense e os movimentos organizados que busca uma saída transitória democrática a partir da saída de Ortega e toda sua cúpula de mando. Afinal, é impossível avançar um centímetro em nossa situação, enquanto nos matam. Então, partindo da ideia de que Ortega não vai durar muito tempo, propomos a conformação de uma rede composta por parlamentares, deputadas, personalidades da cultura, ativistas sociais, partidos políticos, dirigentes como vocês, que possam gerar células de trabalho com funcionamento através de comissões (Comissão de Direito Internacional, Comissão de Memória, Verdade e Justiça, Comissão de Comunicação e Divulgação para a denúncia permanente do que ocorre lá, Comissão de assuntos de Gênero, Feminismo para acompanhamento da violência especial que vivem as mulheres por serem mulheres na Nicarágua, Comissão de Democracia, Comissão de Pacificação para o desarme dos grupos paramilitares, etc.).

Quero esclarecer que os grupos paramilitares na Nicarágua não têm nada que ver com o crime organizado ou com o narcotráfico. São grupos armados correspondentes às máfias políticas dirigidas por Daniel Ortega.

Logo, gostaríamos de saber, em princípio, de que forma podemos reforçar estas ações de solidariedade por parte do PSOL, quais as ideias que lhes ocorrem, como vocês veem a situação, que ações conjuntas poderíamos coordenar e quem estaria disposto a participar desta rede sul-americana de trabalho. A rede visa conformar uma célula de trabalho em cada país, no caso do Brasil visitaremos três cidades (Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo). Penso que cada cidade poderia funcionar com uma célula local, como Santiago, Montevidéu, Buenos Aires e Lima. Uma vez estabelecidas estas células de trabalho, buscaremos conformar uma rede muito maior que inclua toda a região sul-americana.

É importante recordar a responsabilidade que tem a esquerda de não seguir apoiando a um assassino estuprador, pois não há nenhuma justificação ideológica que possa estabelecer uma razão que aceite a violação sistemática dos direitos e os crimes de lesa-humanidade, as execuções sumárias, os sequestros, os estupros, etc.

Agradecemos a presença de vocês e indicamos, uma vez mais, o material disponível na internet que documentam essa crise sociopolítica na Nicarágua e organizam cronologicamente os acontecimentos e a resistência do povo nicaraguense.”

Discurso proferido durante a etapa brasileira da caravana em solidariedade à Nicarágua. Originalmente publicado no Portal da Esquerda em Movimento


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