A Itália chocou com o icebergue
Uma Comissão moribunda ameaça um governo populista, que já se sabe que vai responder em fanfarra.
Escrevi aqui que os focos de instabilidade na Europa estão na Itália, mas também em França (o Presidente mais rapidamente impopular pode ser vencido por Le Pen, em maio) e na Alemanha (com a lenta desagregação da direita clássica e da social-democracia). Estamos agora a assistir a uma conjugação de todos estes focos: uma Comissão moribunda ameaça um governo populista, que já se sabe que vai responder em fanfarra, e um Conselho dominado por governos frágeis teme as eleições mais do que tudo. A UE arrisca-se a uma crise por gosto próprio.
A culpa da Itália
Em 2015, a Comissão puniu a Grécia com austeridade para evitar a contaminação. Contra a Itália a coisa fia mais fino. Primeiro, porque desta vez é parte da direita europeia, afinal a Liga esteve no Governo com Berlusconi e era parceira do PPE. Por isso, o Governo de Roma, e Salvini em particular, beneficiam do efeito popular de um choque com um “inimigo externo”, que a Comissão lhe oferece, e, portanto, gere a crise sabendo que tem poder real sobre Bruxelas. Depois, porque a dimensão da economia italiana pode gerar uma perturbação de grandes proporções, que ninguém parece querer evitar mas que todos parecem temer.
Em substância, a Itália pode alegar que o seu Orçamento, agora rejeitado pela Comissão, consagra um défice de 2,4% e que o da França é de 2,8%, não tendo havido com isso o menor incómodo. Mas “la France c’est la France”, como disse Juncker num momento de franqueza. Acresce que a França esteve em “défice excessivo” desde 2009 até 2018, sem que nenhum ano tenha corrigido as contas, e até se propõe agravar o défice em 2019.
Não é só a França ou a Itália que não cumprem as regras. Durante a recessão, entre 2009 e 2012, quinze dos estados da zona euro estavam em procedimento por défice excessivo, o que foi utilizado pelas autoridades europeias para imporem programas de austeridade e de privatizações. Ora, não foram impostas sanções a nenhum deles (a multa, no caso italiano, poderia chegar a 3,4 mil milhões de euros).
O mercado é um bicho assustadiço
O risco para Itália não parece vir de sanções eventuais. Elas começariam com um procedimento por défice excessivo, já se sabe que é uma decisão lenta, exigiriam um alto grau de confronto mas, uma vez aprovadas, não teriam regresso possível. Tudo um disparate e ao Governo dá jeito elevar a tensão.
O risco é outro, é o dos mercados. As Bolsas italianas já caíram 13% num mês e a diferença entre os juros da dívida italiana e alemã é o mais alta desde 2013. Os credores estão com medo de uma Itália que tem a terceira maior dívida do mundo. A contaminação é evidente, o Nasdaq teve a maior queda desde 2011. A finança exigirá por isso recompensas na reciclagem da dívida e é aí que está o perigo de efeito-dominó em toda a Europa.
Joseph Stiglitz, que desde há anos argumenta que a próxima crise do euro começará em Itália, dado que “é um sistema concebido para falhar” e sugeriu mesmo a sua saída da moeda única, com a criação de uma segunda moeda legal no país. Há várias hipóteses para essa moeda para contas internas, e uma delas é que se baseie em obrigações garantidas por receitas fiscais futuras, sendo convertível em euros, o que não aumentaria a dívida mas melhoraria a procura agregada, contrariando a recessão. Acho que a solução não funcionaria, dado que o Estado não teria controlo efetivo sobre a moeda, mas que se discutam soluções de urgência que estão fora do menu tradicional, isso já é revelador de que mergulhamos em território desconhecido. Não há volta atrás.
Artigo originalmente publicado no jornal “Expresso” a 27 de outubro de 2018. Reprodução da versão publicada no esquerda.net.