Duas variantes na formação do capitalismo

Sobre como a burguesia brasileira pôde crescer e chegar a ser classe dominante, sem precisar de uma revolução, após a Abolição

Jacob Gorender 14 nov 2018, 21:52

O feudalismo como meio ambiente original

Ao nascer nas entranhas do feudalismo europeu, o modo de produção capitalista deveria enfrentar, no processo de sua expansão, obstáculos bem característicos da ordem feudal dominante. Vejamos, numa exposição esquemática, quais eram estes obstáculos, cabendo observar que sua incidência variou conforme cada país:

a) Os camponeses, que representavam o grosso da força de trabalho, estavam vinculados à terra sob diferentes formas. Em alguns países, como Portugal e Inglaterra, a servidão da gleba desapareceu nos séculos XIII e XIV, mas em outros, como Alemanha e Rússia, persistiu até meados do século XIX. Em geral, a servidão de gleba foi substituída pela vinculação da enfiteuse – uma instituição que dava ao camponês o direito de explorar a terra, transmiti-la por herança ou mesmo vendê-la, porém não o tornava proprietário pleno, pois permanecia a obrigação perpétua de pagar uma renda, como foreiro, ao senhorio feudal.

b) Salvo exceções expressivas, a propriedade da terra não era alodial: estava sempre gravada pelos tributos privados que deviam ser pagos a um senhorio da nobreza, ao clero ou ao monarca.

c) O mercado de terras se submetia a extrema restrições jurídicas. Com a vigência do instituto do morgadio, os feudos só podiam ser herdados pelo filho primogênito e, além de indivisíveis, tinham a condição de inalienáveis (não podiam ser transferidos por via de compra a um novo proprietário). Cerca de um terço das terras da Europa, durante a Idade Média, pertencia à Igreja Católica e, por conseguinte, era insuscetível de transações mercantis.

d) Os artigos industriais, produzidos ainda com uma técnica artesanal, constituíam privilégio legal das corporações ou guildas, em cada localidade. Cabia-lhes regulamentar o número de produtores, os processos de produção, a qualidade e a quantidade dos artigos, seus preços, etc. A produção industrial se achava, portanto, rigidamente controlada.

e) O tráfego de mercadorias, além de inseguro, sofria tributação cada vez que passava por um feudo. Cada feudo cobrava impostos privativos, cunhava sua própria moeda e usava um padrão particular de pesos e medidas. Tudo isso entravava a circulação de mercadorias.

f) A nobreza e o clero constituíam estamentos privilegiados: não pagavam impostos e monopolizavam o acesso aos cargos públicos das instâncias superiores do Estado.

Com maior ou menor radicalismo, as revoluções burguesas europeias eliminaram os obstáculos acima enumerados e desobstruíram o caminho ao desenvolvimento do modo de produção capitalista e à afirmação da burguesia como nova classe dominante. Assim é que, em resumo, as revoluções burguesas desvincularam os camponeses da terra e jogaram uma parte deles (na Inglaterra, praticamente todos) no mercado de trabalho assalariado, onde podiam ser livremente contratados pelos capitalistas. A terra tornou-se alodial, completamente isenta de encargos privados. Extinguiu-se o morgadio e a Igreja teve os seus domínios confiscados e postos à venda. Criou-se um mercado capitalista de terras. As corporações foram dissolvidas, suas regulamentações anuladas e a instalação de manufaturas e fábricas deixou de sofrer qualquer restrição. Unificou-se o mercado nacional e ficou estabelecida a uniformidade monetária, tributária e de pesos e medidas. Cumpriu-se o lema dos economistas liberais: laissez-faire, laissez-passer (liberdade para produzir e circular). Aboliram-se os privilégios estamentais da nobreza e do clero.

O escravismo colonial como meio ambiente original

Se nos voltarmos para o Brasil escravista, constataremos a ausência dos obstáculos de tipo feudal ao desenvolvimento do modo de produção capitalista.

A propriedade do solo sempre foi alodial e alienável, motivo por que, desde o século XVI, se assinalam operações de compra e venda de terras, tornadas, com o tempo, bastante frequentes. É certo que os plantadores gozaram, sob o domínio de Portugal, do privilégio várias vezes renovado da impenhorabilidade dos seus bens, mas isto, se dificultava as operações de crédito e lhes agravava o caráter pré-capitalista, não chegava a impedir de todo as transferências da propriedade da terra. Em 1833, ainda em plena vigência do escravismo, a Regência decretou a extinção do privilégio da impenhorabilidade. Registraram-se casos de morgadio, porém sua incidência não alterou o caráter geral do regime jurídico fundiário. Uma lei de 1835, também sob a Regência, declarou extintos todos os morgadios. A propriedade de terras para a Igreja Católica deixou de ser questão grave ainda na época colonial. Isto porque a Companhia de Jesus, entidade clerical detentora das maiores extensões territoriais, foi expulsa de Portugal pelo Governo de Marquês de Pombal, em 1759, e teve seus bens confiscados pela Coroa lusitana. Outras ordens religiosas sofreram o mesmo tipo de confisco. Por isso, já no Brasil independente, os bens territoriais confiscados da Igreja eram chamados de bens da nação. Nos dias atuais, resta à Igreja Católica a propriedade residual de terrenos urbanos muito valorizados, cujo usufruto costuma ceder sob o regime de enfiteuse. Tal circunstância, não obstante, se tornou indiferente ao desenvolvimento do capitalismo.

As explorações de ofícios existentes no Brasil colonial eram fictícias, se comparadas às europeias. Não dispunham de força jurídica efetiva e foram abolidas pela Constituição imperial de 1824.

Organizado em país independente, o Brasil adquiriu um Estado nacional unificado, sob um Poder político fortemente centralizado, apropriado à defesa da instituição escravista, conforme o interesse da classe dominante dos plantadores. Já no Primeiro Império, foi estabelecida a uniformidade tributária, monetária e de pesos e medidas. Quanto ao privilégio estamental de isenção de pagar impostos, inexistiu sequer no Brasil-Colônia.

Então, que obstáculos ao desenvolvimento do modo de produção capitalista eram específicos do escravismo colonial?

O principal, o fundamental era a própria instituição escravista. Se as primeiras fábricas, como afirmei acima, empregaram escravos, isto só podia representar recurso muito restrito e efêmero. O modo de produção capitalista é absolutamente incompatível com o trabalho escravo. Seu desenvolvimento depende da formação de um mercado de mão-de-obra despossuída, abundante e juridicamente livre para ser assalariada, sob contratos de trabalho rescindíveis quando convier ao empregador. Esse tipo de mercado de mão-de-obra começou a se constituir no Brasil na segunda metade do século XIX, porém sua expansão permaneceu fortemente restringida enquanto subsistiu a instituição serviu. A persistência da escravidão fazia do ócio apanágio do homem livre, de tal maneira que muitos despossuídos preferiam a marginalidade e a indigência ao trabalho assalariado. Também a imigração de trabalhadores europeus, enquanto sobrevivesse a escravidão, encontraria sérios impedimentos.

Acresce que, sob vários aspectos, o ordenamento jurídico vigente no Brasil-Império se revelava inadequado ao desenvolvimento capitalista. A organização judiciária era apropriada a um regime dominado por plantadores escravistas, porém cheia de falhas graves quando se tratava de proteger empreendimentos capitalistas. Só para citar um exemplo, por uma lei de 1860, parcialmente alterada em 1882, as sociedades anônimas não podiam ser constituídas sem autorização expressa do Governo e estavam proibidas de colocar suas ações à venda. Finalmente, a condição do catolicismo como religião oficial e as restrições à prática dos demais cultos opunham dificuldades à vinda de imigrantes protestantes e de outras confissões.

A revolução abolicionista

Para fins do meu tema, não careço de tratar em detalhe do evento da Abolição (abordado, nesta coleção, por Suely Reis de Queiroz). O que, aqui, me interessa ressaltar consiste em que considero a extinção das relações de produção escravistas, no Brasil, um evento revolucionário. Ou, dito de maneira mais taxativa: a Abolição foi a única revolução social jamais ocorrida na História de nosso País.

Com o desaparecimento da escravidão, desapareceram também o modo de produção escravista colonial – dominante durante quatro séculos – e a formação social escravista correspondente. A profunda transformação na estrutura econômica não deixou de se manifestar na superestrutura político-jurídica. A Monarquia centralizadora estava esclerosada e se tornara um trambolho. Daí ter sido substituída pela República federativa descentralizada, na qual os Estados ganharam ampla autonomia, sob a batuta hegemônica dos dois Estados mais poderosos: São Paulo e Minas Gerais.

Pode-se objetar: mas a Abolição deixou o latifúndio intocado. É verdade. E não poderia ser de outra maneira, por dois motivos principais:

1º) A possibilidade de efetivação da reforma agrária seria concebível somente se já existisse um movimento camponês capaz de lutar por ela em aliança com o movimento abolicionista. Ora, como se sabe, o abolicionismo não encontrou apoio em nenhum movimento camponês.

2º) A mais elevada forma de luta dos escravos consistiu na fuga das fazendas, o que se deu sobretudo em São Paulo, a região do escravismo mais próspero dos anos 80 do século passado. Em consequência, ao abandonar as fazendas, os escravos se incapacitavam para a luta pela posse da terra, apesar de manifestarem aspiração nesse sentido.

Com todas as suas limitações, a Abolição não deixou de ser uma revolução. Pela via da luta política, deu vigoroso impulso à eliminação de formas de exploração já esgotadas. Porém não fez para trazer o paraíso aos trabalhadores, negros ou brancos. Novas formas de exploração vinham sendo instauradas e se expandiram após a Abolição, pois adequadas ao nível mais elevado das forças produtivas. Em especial, todos os trabalhadores se tornaram juridicamente livres e, com isso, a difusão das relações de produção capitalistas ficou desembaraçada.

A República pôs em vigor algumas medidas, que completaram a transformação abolicionista: a Igreja Católica foi separada do Estado e ficou garantida a liberdade da prática pública de outros cultos religiosos; uma lei de 1890 agilizou a organização de sociedades anônimas, afastando a interferência do Estado e permitindo a negociação pública de ações.

Coloquemos, no entanto, a seguinte questão: que papel teve a burguesia em transformações de tão grande envergadura?

No concernente à Abolição, não contamos ainda, em nossa historiografia, com um estudo monográfico sobre a atuação da burguesia. Há somente referências ocasionais à militância abolicionista de comerciantes e industriais.

Se é possível conjecturar que a burguesia bancária (Machado de Assis alude a isso no seu romance Esaú e Jacó) seria hostil à Abolição ou temerosa de suas consequências, uma vez que os fazendeiros eram os principais devedores dos bancos e a propriedade servil representava a garantia mais substancial dos débitos, pode-se supor, pela lógica dos interesses de classe, que a burguesia industrial deveria assumir uma atitude oposta. Mas a burguesia industrial apenas estava em formação e, na vida real, suas posições não foram sempre coerentes.

Ao menos, é característico o caso de Antônio Felício dos Santos. Industrial têxtil em Minas Gerais, presidente da Associação Industrial e signatário do seu Manifesto de 1881, no qual defende uma política tarifária protecionista em favor do desenvolvimento da indústria nacional. Felício dos Santos conciliava semelhante posição com a de antiabolicionista. Em 1885, foi eleito para a Câmara de Deputados como candidato dos escravocratas.

P.15 a p.23, capítulo do livro A burguesia brasileira, 1981, ed. Brasiliense.


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