Plínio Marcos, de sombras e máquinas

Quase vinte anos depois de sua morte, Plínio Marcos é de uma atualidade assustadora.

Israel Dutra 19 nov 2018, 18:43

Toda efeméride em tempos sombrios deve remeter à um fio de esperança. Ao menos assim deveria ser. Uso delas para lembrar às novas gerações que a vida pode ser extraordinária, com personagens capazes de feitos extraordinários e biografias (quase) inacreditáveis.

Há 19 anos atrás, num 19 de novembro, nos deixava um dos maiores dramaturgos e escritores que o Brasil conheceu no século XX. E décadas mais tarde, suas obras são tragicamente ainda mais atuais que nos anos noventa. Um Brasil marginal e subterrâneo, ganhou vez e voz na arte de Plínio Marcos.

O estilo singular e inconfundível trouxe um objeto indivísel. Seu enfoque era a “fronteira” entre as classes e seus habitantes. Desclassados, precários, lumpens. E toda a cultura – vulgar e riquíssima a um só tempo – que irradiava dos seus cenários e personagens.

Santos, onde nasceu era a amálgama das determinações que buscava dar tom, cor e contorno. Uma cidade portuária, como muitas no mundo, um ambiente masculino, onde a sexualidade, o efêmero, as condições de classe e os conflitos costuravam sua própria tez.

Plínio Marcos nasceu em 1935, dias após a chamada intentona comunista e o fechamento do regime por parte de Vargas. Filho de trabalhadores, chegou a servir na Aeronáutica e jogou nas categorias de base da Portuguesa Santista, equipe muito menor que o famoso Santos. Acabou encontrando o início da vida artística e profissional num circo, atuando como palhaço. Assim foi construindo seu ideário.

Depois de anos no picadeiro, Plínio Marcos encontrou sua primeira grande referência: a lendária Patrícia Galvão, a “Pagu”. Pelas mãos de Pagu, cercado de um grupo de intelectuais de peso, vanguarda dos anos 50, o caminho do teatro se torna aberto. Sua montagem de estreia marcaria toda a cena teatral paulista: Barrela, uma história sobre a vida numa prisão de Santos. O texto marginal e cru seria uma constante de sua assinatura como autor.

A estreia abriu portas para São Paulo, então centro do mundo cênico no país. Era o começo da intensa década de 60. O Brasil mudava para sempre suas feições, com a urbanização, a dinâmica emergente do conflito de classes e a expansão de uma inteligência viva no mundo da cultura, nas universidades, sindicatos e grupos teatrais. Ainda em 1963 lança “Quando os navios atracam”, que será ampliada e revista com o nome definitivo de “Quando as máquinas param”, em 1967. Uma obra que retrata as relações de opressão, traços de violência e machismo, no cotidiano de um jovem casal que convive com o desemprego e a recessão. O rebaixamento no nível econômico dos protagonistas acusa um retrocesso civilizatório, num roteiro épico de denúncia social. Anos mais tarde, no auge da ditadura (1971), a peça entrou em cartaz no sindicato dos têxteis de São Paulo.

Sua obra mais conhecida e controversa seria de 1966, dois anos após o golpe militar. “Dois perdidos numa noite suja”, inspirada no conto de Alberto Moravia, “O terror de Roma”. Paco e Tonho, os dois personagens da peça, oscilam entre frustrações e sonhos, numa realidade marginal, onde o limite entre o real precário e a fantasia confunde e assombra. A relação sexual entre ambos e a repressão imposta pelo regime são tensões que permeiam os diálogos e o cenário. Ainda na primeira fase da ditadura, “Dois perdidos numa noite suja” se destaca pela linguagem, ganhando inúmeros prêmios, sendo duas vezes adaptada para o cinema.

Ainda nos anos 60, peças como “Navalha na carne” e “O abajur lilás” amplificam a produção e o estilo de Plínio Marcos. Ambas peças foram censuradas, sendo encenadas apenas nas décadas seguintes. Marco no teatro brasileiro, “Navalha” também ganha as telas do cinema, na primeira versão, em 1969 dirigida por Braz Chediak. A segunda versão, estrelada por Vera Fischer, estreia em 1997, dirigida por Neville de Almeida.

A mobilização do mundo do teatro para liberar as peças de Plínio Marcos do crivo da censura se transforma em importante movimento político de contestação à ditadura. Como efeito da proibição, a própria luta contra a censura torna o autor como símbolo da arte engajada e da luta pela liberdade.

A entrada em cena do movimento operário, ao final dos 70, gera uma forte efervescência no mundo da arte. A década de 80 começa promissora com a anistia, a legalização das entidades estudantis e sindicais e a retirada da censura de peças como Abajur Lilás. Há uma primavera no mundo das artes e Plinio Marcos se articula com o grupo “O Bando”, com apoio de Antonio Abujanra, mobilizando uma nova camada de ativistas culturais. A luta fundamental do Bando é popularizar o teatro.

A difusão do ambiente degradado das ruas e dos portos é uma ponte para o retrato da sexualidade em tempos de repressão. Prostitutas, cafetões, travestis, desempregados, operários, portuários,se misturam livremente no mundo retratado por Plínio Marcos. Iniciativas que iriam revolucionar a questão dos espetáculos, levando em conta outras dimensões da sexualidade como Dzi Croquettes, nos anos 70 ainda, corroboram a temática cotidiano de Plínio Marcos.

Nos anos 80 e 90, Plínio Marcos assume uma condição de “camelô”, ao dedicar-se a venda dos próprios livros nas ruas e com palestras sobre o teatro e as condições da resistência democrática. Flertando com posturas esotéricas, nos anos 90 segue com suas palestras, desta vez, destoando da linha cênica, abraçando temas de cultura mística, como o tarô.

Quase vinte anos depois de sua morte, Plínio Marcos é de uma atualidade assustadora. A transição incompleta da ditadura alimentou monstros que pareciam ter sido derrotados. Os textos de suas peças, tão realistas quanto existenciais, nos parecem familiares, por sua brutalidade. O retrato de um país sombrio serve como grito, como resistência e como recordação.


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