A República de Sócrates

A experiência da ‘Democracia Corinthiana’ foi breve, mas valeu a pena.

Oriol Rodríguez 4 dez 2018, 17:16

“O futebol profissional pratica a ditadura”, teorizava o intelectual por excelência do futebol, Eduardo Galeano em seu programa de televisão Fútbol Pasión. “No despótico senhorio da bola, os jogadores são os últimos macacos do crico. Não têm direito a dizer nem um pio. Mas nem sempre foi assim. Lá por 1982, em plena ditadura militar, os jogadores do Corinthians tomaram o poder. Eles, os futebolistas, decidiam tudo. Reuniam-se e, democraticamente, por maioria, elegiam o método de trabalho, os sistemas de jogo, os horários de treinamento, a divisão do dinheiro… Votavam sobre absolutamente tudo. Vaticinaram-se os piores augúrios, no entanto durante esses anos o Corinthians convocou as maiores multidões nos estádios do Brasil, além de ganhar consecutivamente o Campeonato Paulista durante dois anos, oferecendo o mais charmoso e vistoso futebol de todos. A experiência da ‘Democracia Corinthiana’ foi breve, mas valeu a pena”.

Na noite de 31 de março de 1964, as principais cidades brasileiras foram tomadas pelo exército. Quatro dias mais tarde, cercado por seus detratores, o presidente eleito, João Goulart, viu-se obrigado a exilar-se no Uruguai. Em 15 de abril, o Congresso, atazanado pela pressão militar, designou o general Humberto de Alencar Castelo Branco como novo presidente do país. Não se restauraria a democracia até 1985. Entretanto, desde o início da década de 1980, o regime ditatorial começou a dar sinais de estar entrando em fase terminal. Mostra disso foi em 1982, forçados pelo clamor popular, os representantes da autarquia resolveram convocar eleições para 15 de novembro com vistas a designar o novo Governador do Estado de São Paulo. Poucos dias antes do plebiscito, os jogadores do Corinthians, liderados por um ilusionista da bola com nome de filósofo clássico, saltaram para o campo com camisetas nas quais em suas costas, sobre a espinha dorsal, não se lia o nome de seu proprietário (feito, por outro lado, ainda inusual em sua época) mas a legenda ‘Dia 15 Vote’. Un ato que erigiu o conjunto do timão ao centro da luta pela recuperação da liberdade.

Dizem que foi enquanto esperavam o bonde que devia levá-los para casa depois de outra jornada de trabalho. Verdade ou lenda, em 1 de setembro de 1910, Joaquim Ambrósio, Carlos da Silva, Rafael Perrone, Antônio Pereira e Anselmo Correia, cinco trabalhadores de São Paulo, amantes desse novo esporte que já começava a levantar paixões entre as massas, decidirar criar sua própria equipe de futebol. Coincidentemente, por essas mesmas datas, os ingleses do Corinthian F.C. encontravam-se na cidade disputando diversos encontros amistosos. Em honra a aqueles gentlemen que acabavam de derrotar a Associação Atlética das Palmeiras por um contundente 0-5, em sua assembleia constituinte determinaram a sua nascente identidade como Sport Club Corinthians Paulista. Também estabeleceram que suas vestes, à imagem da dos britânicos, seria uma camisa de cor creme e com os punhos negros. Mas, com as sucessivas lavagens, esse amarelo pastel foi perdendo o brio até virar branco. Cores, o branco e o negro, que se estabelecaram como seus símbolos tonais definitivos. Finalmente, elegeram o alfaiate Miguel Battaglia como primeiro presidente, ilustrando este seu discurso de aceitação com algumas palavras que marcariam a personalidade d clube: “Corinthians vai ser o time do povo e o povo é quem vai fazer este time”. Certamente, com os anos, o Corinthians se tornaria a segunda instituição mais popular do Brasil, tão somente superada em simpatia pelo Clube de Regatas do Flamengo do Rio de Janeiro.

Entre as figuras mais relevantes na história do ‘Todo Poderoso’, sobressai o nome de Vicente Matheus. Nascido em 1908 na Espanha, especificamente em Zamora, Matheus, que desembarcou em Sao Paulo com sua família em 1914, se tornaria um dos empresários mais poderosos do Brasil, graças a seus negócios nos setores da construção civil e da mineração. Apaixonado por futebol, e louco pelo Corinthians, aquele personagem que todos descrevem como cativante assumiu a presidência do clubel em 1959. Dirigente à velha moda, daqueles que saneavam as contar pondo dinheiro do próprio bolso, ocuparia o cargo, com alguma intermitência, até 1981. No começo dos anos 80, e entre o passado reluzia repleto de troféus (ainda que a maior vitória de Matheus tenha produzido fora de campo, ao tirar do Botafogo de Ribeirão Preto em 1978, superando o interesse dos rivais, um jovem estudante de medicina que começava a se destacar como uma promessa: Sócrates), o Corinthians não estava passando por seu melhor momento esportivo. Ante o descalabro que vivia a equipe, Matheus cedeu seu posto a Waldemar Pires. Uma das primeiras decisões que tomou o novo presidente foi nomear o sociólogo Adílson Monteiro Alves como diretor de futebol do Corinthians. Com ele mudaria o rumo do clube e, em grande medida, o do Brasil.

Um vestiário autogestionado

Conhecido por seu compromisso político em seus anos como estudante universitário, Monteiro, acérrimo defensor do diálogo e do consenso, chegou ao Corinthians com o ânimo de ceder a voz a todo aquele que acreditasse que podia aportar algo positivo para o funcionamento da entidade, pensamento totalmente inovador naquela época, mais ainda numa sociedade regida pelo totalitarismo. Doutrinas assembleístas que logo gozaram do favor dos pesos pesados do vestiário. “O país luta pela democracia. Se assim consegue, o futebol ficaria à margem porque nos países democráticos o futebol ainda é conservador. Temos que modificar isso”, afirmou o sociólogo em sua primeira reunião com o plantel. Passados alguns instantes de assombro, o ‘Doutor’ Sócrates, os ídolos da torcida Wladimir e Zenon, que se destacavam por serem jovens militantes de arraigada consciência social, e o rebelde centroavante Casagrande se somaram àquela proposta de autogestão. Depois deles, o restante do grupo. Ao amparo deste sistema foram resolvidos assuntos tão diversos como os menus da cafeteria, a conveniência de fazer concentrações antes dos jogos, as novas contratações ou que um percentual das premiações, dos patrocínios e dos direitos televisivo seria repartido em partes iguais entre todos os representantes do clube: diretores, jogadores, roupeiros, o motorista do ônibus do time, as senhoras da limpeza… “Abolimos o processo que existia no futebol, onde os dirigentes impediam que os jogadores se tornassem adultos”, afirmaria Sócrates sobre a causa empreendida. “No início houve ansiedade em meus companheiros, não estavam acostumados a se expressar, a decidir. Mas foram aprendendo e se prepararam para afrontar sua profissão e sua vida”. De fato, no seio da equipe surgiram algumas poucas vozes discordantes, como a do goleiro Emerson Leão, que não via nada de democracia nesse sistema. “Só funcionou para os que mandavam no vestiário: Sócrates, Wladimir, Casagrande, que eram bocudos, e Adilson Monteiro Alves. O restante eram simples espectadores”. Palavras rebatidas pelo cineasta Pedro Asbeg. Para o director de Democracia em Preto e Branco, o magnífico documentário sobre o giro libertário do Corinthians, os que assim opinam “têm uma mente um tanto obtusa. Não só porque naquele Corinthians todo mundo podia exercer seu direito a voto, mas porque, quase de imediato, o futebol se tornou algo secundário. A grande maioria de jogadores não queria limitar sua influência ao esporte, mas queriam participar no destino do país”. Graças ao engenho do vice-presidente de marketing do cluble, Washington Olivetto, aquela eclosão de pluralismo e tolerância passou a se denominar ‘Democracia Corinthiana’.

Sempre com democracia

“Quando pisávamos nas quatro linhas”, declarou numa ocasião Sócrates, “sabíamos que estávamos participando de algo mais do que numa simples partida de futebol. Lutávamos para recobrar a liberdade em nosso país”. E, certamente, o clima de euforia democrática que se respirava dentro do vestiário do Corinthians acabou por reluzir no tapete verde, pois, apesar da pressão que isso acarretava, os futebolistas eram conscientes de que a consolidação e o êxito do processo empreendido passava por levar a bola até o fundo das redes. Assim, o mesmo plantel que em 1981 havia protagonizado uma das piores campanhas da história do Corinthians, meses depois exibia um futebol extremamente atrativo, caminho para a conquista do Campeonato Paulista de 82 e 83. Além disso, sabedores da repercussão que tinham todos os seus atos, aqueles rebeldes da bola não duvidavam em aproveitar qualquer oportunidade para vocalizar as demandas do povo. Foi então quando iniciaram campanhas como as de imprimir em suas camisetas lemas como ‘Democracia Corinthiana’ ou ‘Dia 15 Vote’; entrar na final do Campeonato Paulista de 1983 escudados atrás de uma faixa na qual era possível ler ‘Ganhar ou perder, mas sempre com democracia’, ou participar, ombro a ombro, com artistas como o cantor e compositor Gilberto Gil, que lhes dedicou a canção “Andar com fé”, ou os então ativistas, tempos depois presidentes do país, Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva, nas multitudinárias manifestações de 1984 promovidas pelo movimento Diretas já. Mobilizações com as quais a sociedade brasileira pedia que o Congresso aprovasse a emenda Dante de Oliveira, proposta que tinha por objetivo assegurar a eleição direta do Chefe de Estado, ou o que é o mesmo, que fosse o povo que elegesse o próximo presidente.

Foi num desses protestos, perante milhões de pessoas, que Sócrates, ícone que havia transcendido os limites do retângulo, tomou o microfone e prometeu que fossem recobradas as liberdades perdidas décadas atrás, rechaçaria a oferta que lhe acabava de fazer a Fiorentina e ficaria no Brasil No Congresso não se obteve a maioria necessária para a aprovação da emenda e o astro vôou para a Toscana.

Teoricamente, o Brasil recuperou sua democracia em 1985 com a eleição indireta de José Sarney como presidente do país. Contudo, não foi até 1989 que a cidadania pôde votar em seu máximo mandatário. “Joguei as Copas do Mundo de 82 e 86 numa maravilhosa seleção. Conheci o calcio na Fiorentina. Fui técnico. Sigo sendo médico. Escrevo crônicas para um jornal esportivo e poemas que colocamos em canções com amigos músicos. Mas essa foi a época mais exultante da minha vida. Dois anos e meio que valem por 40 de felicidade”. Com estas efusivas palavras, Sócrates, falecido em 2011 aos 57 anos, evocava a utopia futebolística da qual havia sido emblema.

Com o ‘Doutor’ exilado na Itália, a extraordniária experiência da “Democracia Corinthiana” se aproximava de um final que se fez realidade com as eleições para a presidência do clube em 1985. Apesar dos três milhões de superávit que haviam sido gerados nos três anos anteriores, a lista encabeçada pelo sociólogo Monteiro Alves, ideólogo da mudança progressista, foi derrotada, sob justificadas suspeitas de fraude, pela candidatura de Roberto Pascoa, personagem que não ocultava sua afinidade com a ditadura militar. “Em sua gênese, a ‘Democracia Corinthiana’ foi um movimento interno, do futebol, algo que não tinha nenhuma relação com o mundo exterior”, salienta Pedro Asbeg. “Mas provindo de duas longas décadas de ditadura, aqueles futebolistas enviaram uma mensagem à sociedade brasileira. Os jogadores não só elegiam seu destino profissional, algo de por si só inusual nessa época e num país como o Brasil, mas aproveitaram sua condição de ídolos para se expressar livremente e protestar. A ‘Democracia Corinthiana’ contribuiu no caminho da sociedade brasileira rumo à conquista da liberdade”.

Fonte: Panenka.org https://www.panenka.org/tiempoextra/la-republica-de-socrates/


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