G20: “Roadshow” de engomados

O Grupo dos 20s e tornou uma grande rodada de negócios, de políticos engomados, desonestos.

Carlos Abel Suárez 14 dez 2018, 19:07

“O colapso da civilização e do mundo natural está no horizonte”, assegurou Sir David Attenborough, na abertura da cúpula da ONU em Katowice, na Polônia, sobre a mudança climática. O cientista alertou, ao se dirigir a representantes de cerca de 200 países, que “o tempo está se esgotando (…) as pessoas clamaram, querem que você tome decisões”,referindo-se aos líderes mundiais. “A análise científica ambiental não é mais tão necessária para resolver as mudanças climáticas quanto é a implacável e valorosa vontade política”, disse ele.

Poucas horas antes, em Buenos Aires, os líderes dos países mais desenvolvidos do planeta, reunidos no âmbito do G20, não consideraram a mudança climática como prioridade na agenda internacional. Pior ainda, a delegação dos EUA, chefiada por seu presidente Donald Trump, reiterou sua posição de cruzada contra os acordos de Paris de 2015.

De fato, a reunião em Buenos Aires ratificou o que muitos analistas vêm dizendo há algum tempo, que o Grupo dos 20s e tornou uma grande rodada de negócios, de políticos engomados, desonestos –vários deles à beira do desemprego – que elidem as sérias dificuldades que a humanidade enfrenta.

O reconhecido analista político e consultor argentino, Rosendo Fraga, que está muito longe dos protestos antiglobalização que marcharam por Buenos Aires, ironizou: é um milagre que o G20 ainda esteja vivo. Com esta agenda seu declínio poderia ser inevitável? Uma pergunta que vai permanecer no próximo encontro marcado para junho próximo em Osaka, Japão

O governo de Mauricio Macri expôs a cúpula como um banho de reabilitação, quepode tirá-la do estado de prognóstico reservado em que se mantém,particularmente, quando algumas mudanças no cenário internacional desencadearamuma corrida cambial, com as consequências conhecidas: ajuste brutal e as rédeasda economia – mesmo da política nas mãos do Fundo Monetário Internacional.

Algumas pessoas achavam que o risco organizacional era muito grande, dado que o governo não podia garantir a segurança de um jogo de futebol entre Ríver e Boca, pela Copa Libertadores da América, que por sucessivos escândalos acabou sendo disputada em Madri.

A diferença, no entanto, está no fato de que, para um jogo de futebol na Argentina, em particular em Buenos Aires, é necessário contar com a presença de atores como “barras bravas”, líderes do futebol, policiais,intendente e políticos envolvidos nos clubes, o narcotráfico, todos envolvidos em negócios criminosos.

Na logística do G20, nos últimos 24 meses, cinquenta agências internacionais de segurança têm trabalhado, a China criou seus próprios tanques, o controle do espaço aéreo foi delegado aos poderes que têm tecnologia de ponta, várias aeronaves gigantes dos EUA aterrissaram no aeroporto de El Palomar, perto do epicentro do conclave, com material sofisticado a serviço de Trump, o Senado da República Oriental do Uruguai aprovou a autorização para entrada de tropas estrangeiras e logística para a custódia do G20, que foi realizada no outra margem do rio da Prata. Do Uruguai, o espaço aéreo de Buenos Aires também foi controlado. Ou seja, há pouco a se gabar da participação local no sucesso da cúpula, do ponto de vista da segurança.

O G20, como uma festa de aniversário para pessoas pobres que convidam um punhado de pessoas ricas, deixa pouco benefício para o governo. O próprio Macri entendeu assim. Poucas horas depois de dispensar as visitas, ele avisou e disse que a vida segue a mesma.

A Argentina tem uma baixa participação no comércio, suas exportações atingema penas 0,3% do todo mundial. Sua economia se reprimarizou nas últimas décadas,é uma exportadora eficiente de soja e outras coisas mais, enquanto o setor agroalimentar competitivo regrediu, devido a fatores internos e externos. Háuma grande incerteza sobre suas relações com o Brasil, principal parceiro no Mercosul. Jair Bolsonaro, que toma posse nos próximos dias, antecipou medidas que obrigarão a renegociação do acordo regional, o que poderia impactar negativamente nos setores industriais cuja atividade depende de sua colocação ou do câmbio brasileiro.

O nascimento do G20, é útil lembrar, foi causado pela maior crise econômica desdea Grande Depressão, quando em 2008, o colapso financeiro colocou o sistema capitalista como um todo em terapia intensiva. O resgate foi eficaz,especialmente para o sistema financeiro, ao mesmo tempo em que significou o esgotamento de algumas bolhas – o que ajudou o funcionamento do capitalismo –,mas estava longe de resolver as questões fundamentais. Daquele primeiro encontro, as cúpulas foram se degradando para se limitarem a dar declarações de propósito e boas intenções que, como sabemos, mais de uma vez pavimentaram o caminho para o inferno.

A principal manchete da imprensa mundial sobre a cúpula de Buenos Aires foi uma trégua na guerra comercial. Um Trump, que nunca desarmou a cara de mau gaúcho durante sua visita, e um Xi de sorriso permanente, depois de saborear um lombo grelhado harmonizado com vinho Malbec, anunciaram a suspensão por 90 dias da escalada tarifária de uma lista relevante de produtos chineses que entram no mercado norte-americano – que passariam de 10 a 25% a partir de janeiro próximo – os chineses, por sua vez, prometeram aumentar as compras de produtos norte-americanos. Durante o período de trégua, eles estudarão como alcançar uma paz duradoura. Tarefa bastante complicada, segundo os especialistas, pelas aspirações e necessidades urgentes de Trump e pela paciência milenar dos chineses em negociar. De acordo com os correspondentes do New York Times, per todo final do breve jantar, Trump perguntou a Xi quando iriam parar de enviar ilegal mentefentanil, uma droga mortal cujo consumo está em expansão nos Estados Unidos. Um manual trumpiano de relações públicas para coroar um acordo.

As repercussões da “distensão” não se esgotaram, pois entre quarta e quinta-feira, as futuras ações dos Estados Unidos nos mercados asiáticos desmoronaram, quando se espalhou a notícia da prisão no Canadá de Meng Wanzhou, diretora de finanças e filha de um dos fundadores da Huawei, a gigante das telecomunicações chinesa. A medida foi solicitada às autoridades canadenses pelas autoridades de Washington que acusam Meng de ter violado as medidas alfandegárias decididas por Trump como parte da chamada guerra comercial contra a China. Pequim exigiu, tanto para o Canadá quanto para os Estados Unidos, a libertação imediata da empresária chinesa. A fragilidade da paz alcançada em Buenos Aires é evidente.

Quem se importa com mais um assassinato no Expresso Oriente?

Trump, o capitalista lumpen, como bem foi classificado por Samuel Farber, estava acossado durante sua estada em Buenos Aires, por seu prontuário passado e recente. Chegou a usar a morte de George Bush pai para cancelar, “por respeito à família”, todo contato com a imprensa. Dificilmente numa conferência de imprensa poderia escapar de certas pergunta incômodas, desde aquelas sobre seu ex-advogado, Michael D. Cohen, que admitiu ter mentido ao Congresso sobre suas relações com a Rússia, até aquelas referentes à investigação da CIA sobre o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi. Obviamente, uma rodada da perguntas numa coletiva com Trump teria tirado o G20 do tédio, com manchetes chocantes para a imprensa. Mas o que pode intimidar um político capaz de colocar por escrito: “Poderia muito bem ser que o príncipe estivesse ciente deste trágico acontecimento; talvez ele o tenha feito, talvez não! (…) Os Estados Unidos pretendem continuar sendo um parceiro firme da Arábia Saudita para garantir os interesses do nosso país”.

Príncipe Mohammad bin Salman, foi o primeiro dos notáveis que chegou a Buenos Aires, cercado por centenas de assessores e seguranças, como em desafio ao mandado do juiz federal argentino, Ariel Lijo, que perguntou à Turquia, ao Iêmen e à Corte Criminal Internacional se há processos em trâmite pelos fatos denunciados pela Human Rights Watch, sobre o assassinato de Khashoggi.

No entanto, todos os seus colegas, em público ou discretamente, prestaram poucaatenção à má reputação do príncipe e do seu regime; obviamente eles pensam comoTrump ou quase. Mesmo Vladimir Putin, confrontado em vários cenários de guerraconcretos com os sauditas, encontrou um momento para dialogar com o príncipe.Neste tipo de reunião é comum que a hipocrisia e o cinismo abundem mais quechampanhe, mas no G20 de Buenos Aires, com personagens como Trump,Putin, Xi, Macrón, Salvini, May, Temer e vários outros, o nível excedeu oesperado.

Numa curiosa defesa da presença do príncipe esquartejador, Jaime Durán Barba, o mais notório intelectual da órbita de Macri, escreveu: “Na Arábia Saudita, pelo menos uma pessoa é executada por suas preferências sexuais ou religiosas a cada dois dias. O assassinato de Khashoggi não altera a vida quotidiana daquele reino”.

Trump e Xi não aceitaram os outros atores do elenco

A irrelevância da cúpula é que a grande manchete compartilhada por todos, a trégua entre Trump eXi foi uma negociação que teve como protagonistas, por lado, a delegaçã onorte-americana, da qual saíram anedotas e posições diferentes entre falcões epombos, e por outro, os chineses, como sempre sorridentes e herméticos. Todos os outros, neste momento, eram convidados de pedra.


Poucas horas antes de ir para a lata de lixo da História, o mexicano Enrique Peña Nieto entrou sorrateiramente para assinar o novo tratado com os Estados Unidos e o Canadá, que substitui o NAFTA.

“O USMCA (sigla em inglês) é o maior, mais significativo, moderno e equilibrado acordo comercial da História”, disse Trump, eufórico. Não tardou para um funcionário de seu governo corrigi-lo: “Sim, é um grande acordo que foi negociado nos anos 90”, afirmou Edward Alden, do Conselho de Relações Exteriores.

Finalmente, os líderes participaram de rodadas de negócios, enquanto seus assessores discutiram e acordaram uma declaração conjunta, um bordado difícil para integrar as visões concorrentes, em um mundo onde vários dos presentes estão de saída de seus cargos (ou porque seus mandatos se esgotaram, ou porque não sabem quanto tempo eles podem durar em suas posições), em um mundo politicamente e economicamente turbulento, às vezes trágico, explicado nos excelentes artigos de Michael Roberts e Alejandro Nadal.

“Foi a declaração mais fraca que vimos desde o G20”, disse um negociador canadense à AFP.

Com relação às mudanças climáticas, diz-se que, para 19 chefes de governo, “o Acordo de Paris é irreversível”. No ponto seguinte se esclarece que “os Estados Unidos reiteram sua decisão de retirar-se do Acordo de Paris”. Uma pá de cal e outra de areia. Um dos principais países poluidores, que controla diretamente ou por meio de suas empresas transnacionais as maiores reservas de hidrocarbonetos, a potência econômica e militar do planeta, é contra. A política de Trump, por si só, é uma calamidade para a humanidade, mas multiplica seu efeito pela condição peculiar de ser contagiosa. A lista de imitadores e aspirantes é numerosa, embora a intensidade do dano possa ser muito variada.

Protesto nas ruas

A esquerda e os movimentos sociais se manifestam nas ruas de Buenos Aires e nas principais cidades argentinas a fim de denunciar os efeitos das políticas implementadas pelo G20 desde que existem, herdeiro de outras cúpulas igualmente atentas e preocupadas com os interesses de 1% e talvez um pouco mais.

A maioria da oposição parlamentar tomou distância dos protestos. Cristina Fernández de Kirchner participou de uma frente contra a cúpula, mostrando em sua intervenção sinais óbvios de entrar na campanha eleitoral, tirando cabos para acordos em várias direções, incluindo uma mensagem não tão cifrada para o Vaticano. Uma aliança onde a esquerda incomoda. Cristina não pode dizer muito sobre o G20 porque saiu em todas as fotos enquanto era presidente e assinou todas as declarações, mesmo a que sugeriu colocar as economias dos países membros sob a supervisão do FMI. Após seu discurso contra a cúpula, orientou os seus a não participar dos protestos e mobilizações, que ocorreram por conta dos movimentos sociais e da esquerda.

A diplomacia argentina

No campo da diplomacia, há décadas que a Argentina não sabem para onde ir. O mundo que conheciam Raúl Alfonsín e seu ministro das Relações Exteriores, Dante Caputo, com o retorno à democracia, mudou bastante. Eles tentaram navegar apontando para a transição para a democracia na América Latina e nas fileiras da social-democracia da época. Carlos Menem inaugurada a relação carnal com os EUA, uma linha tão absurda que nem a ditadura ousou seguir. O ditador Videla acompanhado por Martínez de Hoz, nunca abandonou sua pertença aos países não-Alinhados, e seu principal cliente comercial por um longo tempo, foi a União Soviética. Bons negócios e amor correspondido. A URSS e todos os seus aliados sempre votou a favor da ditadura quando em fóruns internacionais foi o tema dos direitos humanos na Argentina. Menem e a Chancelaria Argentina amavam Washington, um amor tortuoso e abandonado, como a maioria dos investimentos em privatizações do tempos menemistas vieram da Europa e particularmente o Reino de Espanha. Logo enveredaram por vários experimentos, sempre priorizando negócios com transnacionais comprometidas com o extrativismo para chegar ao escandaloso – e até agora vigente – acordo com a Chevron e ao desastrado tratado com o Irã, assinado por Cristina Kirchner. Agora Macri quer ir para o mundo. Ao qual? Ao de Trump, de Xi, de Putin, de Bolsonaro? Não se sabe.

Houve momentos em que os representantes argentinos em fóruns internacionais tinham coisas a dizer, embora não pudessem impor seus pontos de vista. Na Primeira Conferência Pan-Americana de 1889, reunida em Washington, a delegação argentina integrada por Roque Sáenz Peña e Manuel Quintana enfrentou a doutrina de Monroe, observando o que estava emergindo como o núcleo da geopolítica americana, que logo se traduziria na “política das canhoneiras”, uma intervenção direta nos assuntos de vários países da região. “O louvor do sucesso definitivo e retumbante coube à delegação argentina. Quem viu esse espetáculo jamais vai se esquecer”, disse o cubano José Martí, que testemunhou essa batalha e narrou em vários artigos, como correspondente nos Estados Unidos do jornal La Nación de Buenos Aires.

Logo noinício da sessão da Convenção de Genebra, que se destinava a lançar a Liga dasNações, em novembro de 1920, na sequência da aprovação da agenda do dia, ochefe da delegação da Argentina, Honorio Pueyrredón, tomou a palavra e advertiuque “a não admissão de alguns países poderia causar inquietude constante na pazdo mundo”. Rejeitou a proposta dos vencedores da Grande Guerra para incorporaro Tratado de Versalhes como parte constituinte da Liga das Nações, ao mesmotempo que se opôs à participação dos perdedores da guerra na nova instituiçãoresponsável pela preservação da paz. Pueyrredón sustentou naquele dia oprincípio de que a vitória pela força das armas não dá direito territoriais, aigualdade entre Estados soberanos, auto-determinação dos povos, a liberdade dosmares e a existência de uma moralidade internacional, pedindo um fim àdiplomacia secreta. Uma postura que quase ninguém ousou tomar em tempos de distribuição territorial e extrema subjugação dos vencidos. Os sucessos posteriores se encarregaram de mostrar o acerto desses princípios defendidos pelo então chanceler argentino.

Artigo originalmente publicado no Sin Permiso. Tradução de Flavia Brancalion para a Revista Movimento. 


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Pedro Micussi