Os monstros que moravam no armário
No mundo mais globalizado e interconectado, o que resulta é um individualismo extremo que deseja um chefe que comande a multidão de solitários.
O que é que o Presidente pensava quando escolheu ser o único chefe de Estado europeu, com Victor Orban, na tomada de posse de Bolsonaro? Conhece-se a justificação, pretendia dar um sinal de tranquilidade à comunidade portuguesa no Brasil (num excesso de zelo, o editorial do Público diz que “não podia faltar”, como quase todos os dirigentes mundiais). Mas já é mais estranho que se tenha precipitado a convidar o homem a visitar Portugal nos meses seguintes à nossa próxima eleição parlamentar. É um risco demasiado elevado: se Bolsonaro concretizar pouco que seja da sua promessa de prender ou exilar os seus opositores, se a generalização do acesso a armas tiver o efeito que se adivinha, se a militarização das cidades ou a repressão dos movimentos sociais cumprir a agenda anunciada, Portugal fica numa situação diplomática impossível, recebendo quem é indesejável. A presunção de domar a onça com coktails civilizados é frágil perante a realidade da vida, visto que o presidente brasileiro não é só um rufia que tanto pode invocar Deus como a bala, ele representa agora forças sociais e políticas consistentes que procurarão dar coerência ao seu mandato. O que fizer, será por escolha e não por frivolidade. Um cálice de Porto num banquete nas Necessidades não mudarão a raiva social que esta eleição representa no Brasil.
Aguardemos então o que se ficará a saber logo nos primeiros meses de mandato, aqueles que a diplomacia portuguesa devia ter esperado antes de fazer o convite. Mas, para já, podemos olhar para estes monstros que estão a sair do armário.
Mato-te em Times Square
Se estes tempos fossem propensos a chalaças, poder-se-ia sorrir com a ingenuidade de Donald Trump que, já em campanha, explicou que se matasse alguém em Times Square poderia seguir tranquilamente e ser aplaudido. Quem aprendeu as letras nos programas de entretenimento pensará sempre que a audiência é o juiz supremo e que todos se inclinam perante ela. Do mesmo modo, Duterte escolhe uma conferência de imprensa para confirmar os assassinatos extrajudiciais que fizeram a fama que lhe deu a presidência das Filipinas.
Há portanto monstros a sair do armário, mas anunciam-se em estilo festivo. Perceberam melhor do que ninguém o potencial de formas de comunicação assentes na internet, mobilizando o medo pelo desconhecido (ou pelo conhecido), criando afinidades eletivas, multiplicando o que um sociólogo chamou de “identidades de Facebook”, um modo de reconhecimento que define o seu próprio perfil, constrói a sua fantasia e escolhe os seus amigos num universo paralelo e permeável a todas as lógicas de choque e pavor.
No mundo mais globalizado e interconectado, o que resulta é um individualismo extremo, e essa forma de ser é a mais propícia ao populismo, que deseja um chefe que comande a multidão de solitários. Trump, Netanyahu, Orban, Salvini e agora Bolsonaro são os fantasmas que nasceram nesse armário, prometendo a América branca, ou Israel sem árabes, ou a Hungria sem ninguém de fora, ou o que for.
Há algumas constantes tanto na tecnologia (redes sociais em comunicação sem intermediação) quanto na temática identitária destes seres. O ódio aos migrantes é o mais exibido, seja por Trump contra os mexicanos, por Orban contra os muçulmanos ou por Salvini contra os africanos. Mas o desprezo pelas mulheres não tem menos peso, embora se cubra de um manto de protesto anticultural, contra o “politicamente correto”, abominando a inclusão na linguagem, ou, mais generalizadamente, contra a “ideologia de género”, ou seja, o feminismo como movimento e, em particular, as leis que consagram direitos iguais.
No discurso de posse, Bolsonaro mostrou como leva a sério esse esforço para degradar o papel social das mulheres. Durante esta semana, o partido de extrema-direita que surpreendeu nas eleições andaluzas, o Vox, pôs como condição para o apoio ao governo das direitas que sejam retiradas do programa as medidas contra a violência doméstica, pois seriam “mandamentos da ditadura de género”.
O magnífico Olavo de Carvalho
Se tudo isto lhe parece extravagante, é tempo de lhe apresentar Olavo de Carvalho, um mentor desta cruzada para limpar o “socialismo” e o que ele chama a “ideologia de género, abortismo e gayzismo”. Carvalho foi viver para a Virgínia, nos Estados Unidos, em 2006, dedicando-se desde então a instruir os seus fiéis através de um blog e de um canal youtube. Deu aulas de astrologia, fez parte de uma confraria mística muçulmana, conta o El Pais, e é hoje porventura o brasileiro com mais seguido na internet. Se tropeçar num pensamento recente como “A única situação em que bater numa criança pode ter efeito didático é quando ela estiver batendo numa criança menor”, achou o Carvalho.
Por vários anos, Carvalho insistiu em tornar-se motivo de chacota. Ouviu falar de Galileu? Esqueça tudo o que leu, era um charlatão protegido pelo Papa. Newton “espalhou o vírus de uma burrice formidável” e os seus colegas riam-se do “velhinho”. Einstein foi um farsante, inventou a teoria da relatividade só para esconder que a Terra “não gira em torno do sol”. Darwin foi o pai do comunismo e do nazismo. Acha pouco? Pois a Pepsi usa células de fetos humanos como adoçante, pelo que “quem bebe Pepsi é um abortista terceirizado”. Os cigarros não prejudicam a saúde e os combustíveis fósseis não são fósseis. É aqui que a tecnologia encontra a beatitude. Se o autor se torna suficientemente polémico, é conhecido. O absurdo e o escandaloso é o caminho mais curto para a fama. Composto o público, começa a pregação: Obama era um candidato da Al Qaeda, Haddad defenderia o incesto, bater em crianças menores é pedagógico.
Seja como for, o ódio à esquerda funcionou como agregador eleitoral e, como se viu no primeiro discurso de Bolsonaro depois da eleição, lá estava em cima da mesa uma Bíblia e um livro do Carvalho, para se saber quem manda. Já quando chegou o momento de formar governo, Carvalho escolheu dois ministros, o da educação (limpar a escola de “socialismo”) e o dos negócios estrangeiros (cujo programa é combater a “globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural” e “é um sistema anti-humano e anticristão”).
É extravagante, parece chocante, mas não é. O que é chocante é que esta gente seja tratada com simpatia, ou que as direitas europeias e norte-americana se façam arrastar por estes tempos de ódio. Afinal, os monstros estão a revelar que o armário só dava verniz a uma realidade sórdida. Nas direitas de hoje, a democracia é uma coisa ocasional.
Artigo originalmente publicado no Expresso.