Racismo, distinção de classe e capitalismo no Brasil

Como que 130 anos após a abolição da escravatura a assimetria entre negros e brancos segue tão marcante?

Gilvandro Antunes 8 jan 2019, 16:32

A situação da integração do negro na sociedade capitalista ainda segue suscitando uma gama de debates sobre a situação atual e a perspectivas tendo em vista a dinâmica social brasileira. Não raras, tais perspectivas apontam para um lado um tanto quanto pessimista quando se trata de uma integração permanente e autossuficiente. Quando se trata de se debater a fundo a questão da integração do negro à sociedade urbana, moderna capitalista vemos em números que ainda há um grande hiato no que diz respeito à comparação entre negros e brancos. O país vive uma grande crise econômica onde o reflexo social mais dramático é o desemprego. Dos 13,7 milhões de desempregados 63,7% são negros de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além do desemprego, os vencimentos fruto do trabalho, como salário, apresentam desigualdades raciais. Em estudo da ONG inglesa OXFAM, através do cruzamento de dados da Pnad/IBGE e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mantida a dinâmica atual, somente no ano de 2089 poderá haver igualdade salarial entre brancos e negros, ou seja, 201 anos após a abolição da escravatura. Quando o quesito é a exposição à violência notamos uma forte desigualdade entre as raças. No entanto, agora, os negros estão na parte de cima. O Brasil é o campeão mundial, em números absolutos, de homicídios, cerca de 62 mil por ano. Nesse caso, a cada fração de 100 pessoas assassinadas nesses 62 mil, 71 pessoas são negras, de acordo com o Relatório 2018 das Nações Unidas (ONU). Dos 622 mil presos, 61% são negros ou pardos, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em relação aos feminicídios, homicídios contra mulheres pelo fato de serem mulheres, de 2003 a 2013, esses números caíram 10% em relação às mulheres brancas (o que não quer dizer que as coisas estão boas, pelo contrário), já em relação às mulheres negras os números aumentaram em 54% no mesmo período, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS/ONU).

Para além dos dados estatísticos estarrecedores, porém nada surpreendentes, se é possível tal combinação semântica, a questão é: como que 130 anos após a abolição da escravatura a assimetria entre negros e brancos segue tão marcante? Creio que a resposta está na escravidão, bem como na própria abolição, uma vez que essas duas tiveram influência direta no tipo de modernização capitalista engendrada no Brasil.

Escravidão Negra e os Pilares do Racismo Hoje

A escravidão negra reúne números de vergonhosa grandeza no Brasil. Dos 12 milhões de pessoas negras feitas escravas e que tiveram seu destino o continente americano 5,5 milhões tiveram como destino o Brasil. Isso demonstra o tamanho da escravidão para a formação de capital da relação entre a economia colonial e a economia metropolitana. O papel central do escravo na América era servir como mão-de-obra barata para a economia monocutural. Nesse sentido, o escravo era “peça” fundamental dentro do incipiente capitalismo dominado pelo capital comercial. Ou seja, de acordo com o sociólogo Octavio Ianni, em seu livro Escravidão e Racismo, para por em andamento as engrenagens do lucro no capitalismo comercial, proporcionando altos ganhos de lucratividade, o comerciante deve comprar muito barato e vender muito caro. Isso, por seu turno, era possível através do monopólio comercial entre metrópole e colônia e através da máxima extração de mais-valia absoluta do trabalhador escravo negro. O produtores vendiam barato porque baixavam ao máximo os custo de produção através da apropriação integral do resultado do trabalho do escravo.

Vejamos Ianni:

“Na base do arcabouço de cada formação social, no entanto, havia dois elementos fundamentais: o trabalho compulsório e o vínculo com o capital comercial europeu”. (IANNI, Octavio, Escravidão e Racismo, página 06, ed. HUCITEC, 1978, São Paulo).

Mais adiante Ianni arremata:

“Essas reflexões indicam claramente que o que singulzariza a hegemonia do capital mercantil é que ele se torna autônomo, ou substantiva, o processo de circulação, subordinando o processo de produção. Tanto assim que a produção de mercadorias pode dar-se sob as mais variadas formas seja nas haciendas, encomiendas, fazendas, engenhos e plantations”. (idem, pág. 09).

Ou seja, a escravidão negra é a forma de trabalho prioritária no Novo Mundo na formação de capital onde o capitalismo comercial é preponderante. Para isso, o escravo precisa ser duplamente alienado, pois aliena todo o produto do seu trabalho e é alienado enquanto ser humano, uma vez que é propriedade, portanto mercadoria, do seu dono. Nesse sentido Octavio Ianni fairma:

“No escravismo, a mercadoria aparece diretamente como produto alienado de um produtor alienado. (…) Daí a importância das técnicas de repressão e violência, operando tanto no processo produtivo, em sentido estrito, como fora da situação do trabalho”. (Ibdem, pág. 39).

Desse modo, a situação do cativo negro era de dupla alienação, que para ser sustentada fazia uso de extrema violência. É com essa violência e com essa dupla alienação, aliadas ao monopólio comercial e à monocultura colonial que o capitalismo comercial acumulava o capital. Assim, Ianni defende a tese de que o negro fazia parte do capital constante dentro do modo de produção mercantil escravista, uma vez que este possuía uma relação inversa ao trabalhador assalariado livre. No caso do trabalhador livre, seu trabalho é mercadoria, mas ele não o é. No caso do escravo, seu trabalho não é mercadoria, pois não há venda, ao passo que ele é mercadoria enquanto propriedade de alguém, que foi comprada e pode ser vendida. Dessa maneira, a escravidão se sustentou agregando o trabalhador ao capital constante, diminuindo ao máximo o capital variável na produção. Notaremos depois que essa também será arruína do modo de produção escravista onde o capitalismo mercantil é o centro dinâmico. Isso se dará com o advento da revolução industrial inglesa. A definição do escravo enquanto um capital constante era partilhada com Celso Furtado quando este afirma que:

“A mão-de-obra escrava pode ser comparada às instalação de uma fábrica: a inversão na compra do escravo, e sua manutenção representa custos fixos. Esteja a fábrica ou o escravo trabalhando ou não, os gastos de manutenção terão de ser despendidos. Demais, uma hora de trabalho do escravo perdida não é recuperável” (FURTADO, Celso, página 61, Companhia das Letras, 2010, São Paulo).

A explanação da dupla alienação do escravizado negro vai ter severas implicações na formação de uma consciência de classe do escravo. Como cativo sujeito à toda violência física não via no trabalho nenhum tipo de emancipação, pelo contrário. Como mercadoria muitas vezes não se enxergava como ser humano, portanto, como agente político. A sociologia, inclusive Octavio Ianni, tende a exagerar a alienação enquanto elemento de paralisação do negro escravizado. Todavia, ainda que, de fato, a dupla alienação era um sério problema para o desenvolvimento da consciência as revoltas existiram e não foram poucas como Palmares, malês, etc. Talvez o exemplo do Haiti seja o mais emblemático onde após a revolução se difundiu na América como um todo o chamado “perigo do Haiti”.

Mas as dificuldades para a organização negra no período escravocrata era muitas. Em relação a essa afirmativa recorrerei a Jacob Gorender:

“Mais do que outras classes oprimidas, os escravos se defrontavam com enormes dificuldades estruturais para formar uma consciência de classe que transcendesse a rebeldia e atingisse o nível de consciência revolucionária dirigida à transformação social progressiva. A introdução continuada de africanos trazia diferenciações étnicas, religiosas, linguísticas e outras de natureza cultural, aprofundando separações, estranhamentos e hostilidades. Escravos crioulos se distanciavam de escravos africanos, impossibilitando ou emperrando ações cooperativas contra um adversário comum. (…) Por si sós, enquanto classe, não alcançavam a consciência revolucionária. Seus atos de oposição mais avançados visavam à liberdade individual dentro do próprio regime escravista.

Nada há pra surpreender que escravos tenham assimilado os valores da sociedade escravista e pensassem atingir a liberdade para se tornarem eles próprios senhores de escravos”. (GORENDER, Jacob, A Escravidão Reabilitada, página 142, Expressão Popular, 2016, São Paulo).

Note-se que além da dupla alienação referida por Ianni, há a heterogeneidade dos escravos, adendada por Gorender, como mais uma barreira para a formação de uma consciência de classe. Ademais, a obra A Escravidão Reabilitada traz o elemento da ideologia branca escravista sobre a subjetividade do cativo negro. A regra era o escravo nascer e morrer escravo. Mas não tão raro assim, alguns compravam, através de muito trabalho, sua alforria. Poucos desses se tronavam “pequenos senhores de escravos”. O livro Escravos, do jornalista Leandro Narloch, traz uma série de contos da vida privada de escravos senhores de outros escravos, evidenciando que a penetração ideológica do regime escravocrata penetrava também nos escravos. O jornalista usa um tom de exagero, ao tentar colocar senhores brancos e escravos como uma massa presa em um regime arcaico. Narloch, às vezes, parece esquecer a racionalidade do regime escravista onde a grande plantação é um sistema econômico racional onde a crueldade é a regra e não a convivência. Neste sentido, Narloch, tenta reviver, sem a mesma maestria e rigor teórico, o pensamento de Gilberto Freyre na obra Casa Grande e Senzala. Todavia, em Casa Grande e Senzala, Freyre, apesar de algumas passagens pitorescas de convivência entre senhores e escravos, narra um regime alicerçado no sadismo. Essa observação freudiana de Freyre, estudador de Freud, será fundamental para entendermos o racismo brasileiro inclusive nos tempos atuais, tamanha marca deixara na sociedade. O sociólogo Jessé Souza descreve as raízes do sadomasoquismo como elemento da construção da sociedade brasileira escravocrata deixada como herança para o período pós-abolição.

“De certa forma, Freyre retira todas as consequências do fato de que a família é a unidade básica, dada a distância do Estado português e de suas instituições, da formação brasileira e interpreta o drama social da época sob a égide de um conceito psicoanalítico: o sadomasoquismo. (…) Uma tal organização societária, especialmente quando o domínio da classe dominante é exercido pela via da violência armada, não propicia a constituição de freio sociais ou individuais aos desejos primários de sexo, agressividade, concupiscência ou avidez. As emoções são vividas em suas reações extremas, são expressas diretamente, e a convivência de emoções contrárias em curto intervalo de tempo é um fato natural”. (SOUZA, Jessé, Subcidadania Brasileira, página 170, ed. Leya, 2018, Rio de Janeiro).

Portanto, as razões psicossociais para o sadomasoquismo escravista que perdura advém do patriarcalismo e este, por sua vez, advém do modo de produção escravista no qual a formação de excedente é garantida através da coação física permanente dos escravos. O patriarcalismo, como vimos em Jessé, é o resultado da mistura do sistema escravista e a ausência ou fraqueza das instituições que, por essa razão, dão sobrepeso à (in)justiça privada centrada no patriarca da família. Desse modo, será família a principal instituição do regime arcaico, a família no sentido estendido, assim, a família + o famulus (escravo de casa em latim). Vamos a Gilberto Freyre:

“A verdade, porém, é que nós é que fomos os sadistas; o elemento ativo na corrupção da vida de família; e moleques e mulatas o elemento passivo. (…) Exprimiu-se nessas relações o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um Deus todo-poderoso, em senhores e escravos. Dele se deriva a exagerada tendência para o sadismo característica do brasileiro, nascido e criado em casa-grande, principalmente em engenho; e a que insistentemente temos aludido neste ensaio. Imagine-se um país com meninos armados de faca de ponta! Pois foi assim o Brasil do tempo da escravidão”. (In SOUZA, Jessé, página 171, Idem).

“Não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo depois de nascido e criado depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta aparentado do menino Brás Cubas na malvadez e no gosto de judiar com negros. Aquele mórbido deleite em ser mau como os inferiores e com os animais é bem nosso: é de todo menino brasileiro atingido pela influência do sistema escravocrata”. (Ibdem, página 172).

O declínio do modo de produção escravista vai ser em razão de uma série de fatores. Por um lado a revolução industrial do final do século XVIII vai colocar o capitalismo industrial à frente do comercial. A produção de mercadorias vai aumentar em quantidade. Na indústria, o capital variável é um fator definidor. Além do mais, o ritmo crescente da indústria requer a expansão de novos mercados e nesse sentido a escravidão na América torna-se um entrave. Por outro lado, a vitória do norte sobre o sul na guerra da secessão de 1861 à 1865 nos Estados Unidos, bem como abolição nas colônias inglesas e a proibição do tráfico de escravos pela Inglaterra (ainda que o tráfico houvesse se mantido de forma ilegal) enfraquecem o apoio internacional à escravidão. Por fim, os fatores internos brasileiros são o ponto culminante para o fim da escravidão no Brasil. O movimento abolicionista crescia com o advento da influência iluminista; com a abolição da escravidão na américa espanhola, sobretudo no sul, tornava os produtos brasileiros mais caros, pois a manutenção de um escravo tinha um custo. Aliás, a proibição do tráfico, a leis Eusébio de Queiroz 1850, Ventre Livre 1871, tornam o escravo mais caro enquanto mercadoria, uma vez que estava sujeita à lei da oferta e da procura. Fernando Henrique Cardosos coloca essa questão em seu livro Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional ao analisar o declínio das Charqueadas em Pelotas, onde o regime de trabalho escravo encarecia os custos de produção quando comparados aos custos do mesmo produto, qual seja o charque, nos países como Uruguai e Argentina onde se aplicava a mão-de-obra assalariada.

Por fim, é essa ligação entre sistema escravista com fraco desenvolvimento econômico e social, violência e patriarcalismo que o Brasil vai fazer sua passagem para a sociedade aberta de classes, para usarmos um termo de Florestan Fernandes, sociólogo que será o centro da análise a seguir.

Branqueamento, Modernização e Liberdade em Anomia social no Brasil

A proclamação da Abolição da escravidão no Brasil em 13 de maio de 1888, como é amplamente sabido, não resolveram o problema da exclusão do negro no Brasil. Na verdade, como afirma Florestan Fernandes os negros saíram de uma condição de escravo para uma condição de anomia social. Em 1808, a família real chega ao Brasil fugida das invasões napoleônicas. Essa data marca o início de um caminho discreto rumo à modernidade no país. Entretanto, é com o desenvolvimento do clico do café, na segunda metade do século XIX, que a modernização toma contornos mais robustos. Dois fatores principais levam à adoção da implementação da mão-de-obra livre na agricultura cafeeira, que começa com a mão-de-obra escrava. O já referido custo de produção com o aumento do preço de um escravizado e políticas que levam a cabo a tese de que para que o Brasil se modernizasse era preciso parecer-se com um país europeu, ao menos o quanto possível. Para isso, era necessário, de acordo com as teses racistas, embranquecer o país. Diante dessas perspectivas, o negro não tinha como competir pelos postos de trabalho com o europeu branco, no caso do café, o italiano. O fato é que a dinamização econômica do café urbanizou cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, mas o negro ficou às margens dessa urbanização modernizadora. Assim, o negro ficou alijado da lavoura cafeeira e dos posto mais dinâmicos das ocupações urbanas.

Florestan Fernandes nos explica:

“No que concerne à estrutura ocupacional da cidade, parece claro que a competição econômica com o ‘estrangeiro’ engendrou, prematuramente um processo de pura sucessão ecológica. O negro e o mulato foram eliminados das posições que ocupavam no artesanato urbano pré-capitalista ou no comércio de miudezas e serviços, fortalecendo de modo severo a tendência de confiná-los a tarefas brutas, mal retribuídas e degradantes. (…) O impacto da competição com o ‘estrangeiro’ foi aniquilador para o negro e para o mulato” (FERNANDES, Florestan, A Integração do Negro na Sociedade de Classes, página 10, Editora da USP, 1965, São Paulo).

Mais adiante:

“Excluídos das ocupações conspícuas e mais ou menos compensadoras, o negro e o mulato estavam ‘condenados a vegetar socialmente’ – como eles próprios falam. Não podiam romper a crosta secular da miséria ostensiva, da dependência disfarçada ou da semi-dependência, transplantada das pessoas do mundo rústico para a cidade. Nem tinham como superar as condições de existência social anômica, herdadas diretamente das senzalas e reativadas pelas peripécias de desagregação do regime servil”. (Idem, pág. 173).

“(…) deve-se considerar que a perpetuação indefinida de anomia social suscitou condições sociopáticas específicas. Em si, a anomia acarretava na submissão da ‘população de cor’ a um nível miserável de existência”. (Ibdem, pág. 1975).

Vejamos senão que anomia social a que foram jogados os negros no período pós-abolição não teve “apenas” consequências econômicas, mas também na consciência de classe, esta ficou muito tempo deficitária em relação ao trabalhador branco, sobretudo o operário fabril. O estado de anomia social desestruturou as famílias negras e isso é um passo decisivo para as possibilidades de sucesso ou não na ordem competitiva. Como destacara Florestan:

(…) apenas uma minoria da ‘população negra’ encarava o casamento como um valor social e seguia à risca um estilo de vida compatível com a estabilidade da família integrada (Ibdem, pág. 156).

As poucas famílias negras integradas logo após à escravidão faziam questão de se manter distanciadas das famílias desestruturadas, mostrando que muitas vezes a ascensão social era, de certa forma, viver em estilo de famílias brancas, muito embora tais famílias não negassem a sua negritude.

Outra questão fundamental para o a assimetria abissal no que tange à inserção de negros e brancos à sociedade competitiva capitalista é o conceito de trabalho para cada camada social. Sabe-se que no Brasil escravocrata o trabalho era considerado “coisa de negro”. Ou seja, trabalhavam os negros e os brancos pobres que precisavam trabalhar como negros. Sérgio Buarque de Hollanda descreve que o espírito aventureiro do português era incompatível com o espírito da ética protestante. Em muitas historiografias há relatos de portugueses, brasileiros brancos e mestiços que tinha escravos e que os colocavam para pedir esmola na cidade enquanto seus senhores esperavam o fruto de tal “empenho”. Assim, a ética do trabalho não era o centro da “vida nacional”. Ao se libertarem, muitos ex-escravos viam no ócio uma possibilidade de dignidade. Não obstante, tentaram vivenciar isto em um período em que a dinâmica do trabalho seria o motor cultural da nova sociedade. Mas os que tentaram se inserir, pois a realidade objetiva assim impunha, não tiveram nenhuma possibilidade concreta. Salvo raras exceções.

Dessa forma, criam-se dois tipos de cidadãos: aqueles que haviam se europeizado e aqueles que ficaram presos a um passado que que pouco ou nada de prestígio havia. Ao negro, que sofrera 3,5 séculos de escravidão, restou-lhe um estigma do qual na verdade ele era a vítima. O negro ficou associado ao atrasado, ao rústico, ao não desenvolvimento.

Evidentemente estamos falando de um período pós-abolição e dos cinquenta anos subsequentes. Atualmente, muita coisa mudou, mas ainda persistem a desigualdade e racismo. Cabe ressaltar que nós negros e negras nos inserimos à sociedade de classes com muita obstinação, através da luta coletiva e/ou individual. Entretanto, a anomia social ainda perpassa por vários negros, condenando milhões de brasileiros a uma vida exposta à pobreza e à violência.

Racismo e Distinção de Classe no Brasil Contemporâneo

A sociedade e o Estado brasileiros do século XXI são bastante distintos daqueles do início do século XX. A economia é outra, a demografia é outra e os costumes são outros. O papel da mulher mudou, a expectativa de vida avançou. Mas por que o racismo persiste? Por que passados 130 anos da abolição a situação de milhões de negras e negros persiste em estar em total desvantagem em comparação a muitos dos seu compatriotas brancos? Por que a realidade do negro no Brasil se alterou, mas não completamente? Devemos buscar a resposta na herança escravista, culturalmente arraigada e herdada. Se hoje o trabalho não é “coisa de negro” há trabalhos que são para o negros, onde os brancos mais pobres também disputam. Com o desenvolvimento do capitalismo o trabalho intelectual passa a ser o mais valorizado em detrimento do trabalho corporal. Assim, corpo e espírito se separam no mundo do trabalho. Cabe à elite, isso inclui os setores médios e altos da classe média, o trabalho intelectual e caberá ao pobre o trabalho braçal desvalorizado. Ocorre que pobreza e raça estão intimamente associadas no capitalismo, e em se tratando de uma das mais desiguais sociedades do mundo como a brasileira cor da pele e possibilidade de mobilidade social vertical estão umbilicalmente ligadas.

Todavia, frente a uma racismo evidente, o Brasil conseguiu a façanha de exportar para o mundo uma genuína farsa coletiva, como essa fosse a contribuição humanitária genuinamente brasileira. Trata-se do mito da democracia racial, analisada aqui por Florestan Fernandes:

“Entretanto, a ideia de democracia racial não só se arraigou. Ela se tornou um mores, como dizem alguns sociólogos, algo intocável, a pedra de toque da ‘contribuição brasileira’ ao processo civilizatório da Humanidade”. (FERNANDES, Florestan, O Significado do Protesto Negro, página 30, ed. Expressão Popular, 2017, São Paulo).

A democracia racial brasileira serve para encobrir uma dura dominação racial. Mais do que isso, ela serve para legitimar uma grave distinção racial e de classe. Mas como pode haver democracia racial se mais em 2016 44 mil pessoas negras foram assassinada no Brasil? Essa é uma das formas de legitimação, a outra é a farsa da meritocracia. Essa, por seu turno, é mais recente, já é fruto da pós-modernidade. A sociedade competitiva e impessoal dá a cada cidadão a oportunidade de escolher seu destino. Nada mais falacioso. Como uma sociedade pode dar a oportunidade a cada cidadão se temos uma massa de milhões de subcidadãos, nesse caso de negros, brancos pobres e mestiços? Assim, a meritocracia esconde uma perversa lógica da legitimação do privilégio. Afinal de contas em uma país em que milhões vivem na miséria, poder se dedicar exclusivamente aos estudos é um privilégio. Max Weber já havia alertado que as classes sociais privilegiadas não querem só garantir seu privilégio, mas também legitimá-lo. A melhor forma de legitimar é a meritocracia, ela legitima a desigualdade, pois ela torna a ascensão social inata ao ser humano que a consegue. Mas para isso é preciso uma outra forma de legitimação: a hierarquia social. Assim, a psicopatologia da elite brasileira consegue conciliar meritocracia com o conceito de que “alguns são mais gente do que os outros”. Consegue conciliar meritocracia com indiferença ao trabalho análogo a escravidão. Para a maioria dos negros, vale essa psicopatia da elite, pois são contra as cotas raciais nas universidades, através do discurso da igualdade e ainda acham que existem trabalhos de e para os negros. A elite brasileira legitima a “igualdade” e o preconceito no mesmo discurso.

Jessé Souza discorre sobre essa questão:

“Preconceito, nesse sentido, é presunção de que alguém de origem africana é ‘primitivo’, ‘incivilizado’, incapaz de exercer as atividades que se espera de um membro de uma sociedade que se ‘civiliza’ segundo o padrão europeu e ocidental” (SOUZA, Jessé, A Elite do Atraso, página 71, editora Leya, 2017, Rio de Janeiro).

Desse modo, podemos dizer que o aparente é a meritocracia e o estruturante é o preconceito. Porém o estruturante, nesse caso, também aparece de forma lateral no discurso. A elite branca legitima sua busca por distinção de classe através do mito da democracia racial, que, por sua vez legitima o discurso da meritocracia, mas deixa vazar no discurso o preconceito. Muitas vezes naquilo que Freud falava que “É no chiste, no ato falho e no sonho que se revela a verdade”. Nesse caso, o chiste é a piada racista, o ato falho é “minha empregada é quase da família” e o sonho nesse caso pode ser traduzido pelo desejo de eliminação ou subjugação do “diferente”.

Outro fato importante é que o discurso da violência urbana também tem legitimado o racismo. Em nome da autopreservação causada pelo medo, as pessoas se sentem legitimadas a atravessar a rua diante de uma pessoa negra. O medo, nesse caso pode ser real. Mas ele não deixa de ser legitimador do preconceito só por ser inconsciente.

Em síntese, a elite brasileira segue o discurso de que os negros são gente de segunda classe, não afeita ao trabalho. Gente que deve ser vista com desconfiança. Ela, a elite, trouxe a herança perversa da concepção racista de quando a população negra foi jogada em um estado de anomia social.  Nesse sentido Jessé Souza tem razão: trata-se da elite do atraso.

O Movimento Negro Deve Lutar e Não Retroceder um Passo

O movimento negro já mostrou-se forte em diversas situações da luta pela abolição à luta pelas cotas raciais. Mas é preciso que a luta negra seja também a luta pelo socialismo democrático. No capitalismo não há espaço para a igualdade, pois o capitalismo é a atual sociedade dividida em classes sociais. Coube ao negro novamente uma dupla alienação por ser negro e ser proletário. Mas também caberá às negras e aos negros a dupla emancipação. No Brasil, a luta pelo socialismo passa pela questão da negritude. O Protesto negro deve se fortalecer ao mesmo passo que deve estar cada vez menos isolado e cada vez mais com um sentido de classe. Como já dissera Florestan Fernandes: “O protesto negro não pode enveredar para a utopia burguesa”.

Florestan segue:

“O negro deve participar ativa e intensamente do movimento operário e sindical, dos partidos de operários, radicais e revolucionários, mas levando para eles as exigências especificas mais profundas de sua condição de oprimido maior”. (FERNANDES, Florestan, O Significado do Protesto Negro, página 41).

É preciso organizar a luta da juventude negra na periferia, nas universidades, nas escolas, nos locais de trabalho e unificá-las. É urgente organizar a luta negra nesses tempos difíceis, o governo de Jair Bolsonaro tem a tarefa de aumentar o genocídio da juventude negra, seus ataques aos direitos dos trabalhadores que estão por vir atingirão centralmente os negros. Se não lutarmos a derrota será pesada e a reabilitação será difícil. Não há outra possibilidade senão organizar a resistência.


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Pedro Micussi