“Cafarnaum”, o caos sufocante do premiado longa libanês

Dirigido por Nadine Labaki e em cartaz no Brasil, filme aclamado por júri de Cannes e pelo público da Mostra Internacional de São Paulo tem refugiado sírio como protagonista

Isaque Castella 6 fev 2019, 14:53

Zain Al Rafeaa tinha apenas sete anos de idade quando precisou fugir da guerra na Síria com a família. Refugiado em Beirute, no vizinho Líbano, o menino, encontrado nas ruas da cidade, foi escalado para atuar na obra-prima de Labaki, marcada pela pegada documental. Ele interpreta um garoto de 12 anos vivendo em condições extremamente precárias, ao lado de diversos irmãos, em uma área pauperizada da capital libanesa. No seio de uma família desestruturada, Zain, o personagem com quem compartilha seu nome na vida real, é levado a assumir precocemente uma maturidade incomum para crianças da mesma idade, sobretudo no que diz respeito à sua relação com a irmã Sahar.

O título do filme, que nos remete a uma cidade bíblica, significa também caos ou tumulto. E é justamente essa sensação angustiante que a experiência de assisti-lo nos provoca, o que se deve, em grande medida, ao primoroso trabalho de fotografia. A imersão em cenários de gritante pobreza, agitação e abandono por parte das autoridades estatais é uma importante marca da obra, que denuncia mazelas como a desigualdade socioeconômica, a fome, o trabalho e o casamento infantil, a opressão patriarcal, o encarceramento de jovens e crianças, a crise humanitária em torno dos refugiados, dentre outras.

Cada uma das questões recebe um tratamento sensível e, ao mesmo tempo, envolvido em potentes e duríssimas críticas sociais. É possível se traçar um diálogo de indubitável pertinência com o conceito de precariedade na filosofia política da estadunidense Judith Butler, entendido enquanto a exposição mais acentuada de determinadas populações à morte, à violência, às migrações. Trata-se de uma condição politicamente induzida, à qual as personagens de “Cafarnaum” estão submetidas ao, por exemplo, se aglomerarem em espaços que lembram cortiços e estabelecerem relações conflituosas e opressivas entre os próprios oprimidos, em situação de vulnerabilidade.

As injustiças das mais diversas ordens são contempladas pelo filme, sejam elas de classe, étnico-raciais, de gênero, e se reproduzem naquelas periferias de Beirute, sob o império do caos. Desde o início do longa, que utiliza o recurso de flashback, o público consegue perceber que há muitos elementos envolvidos em uma trama na qual o protagonista (sim, uma criança!) está diante de um tribunal, após ser preso por cometer um crime, pretendendo, dessa vez, processar seus pais pelo motivo de ter sido posto no mundo.

Duas histórias principais que se cruzam se apresentam diante de nossos olhos –  a essa altura já marejados – na produção libanesa. Zain, depois de deixar o seu tumultuado e violento núcleo familiar, conhece a refugiada etíope Rahil e seu bebê, de quem passa a cuidar em troca de abrigo e comida, enquanto a mãe, que vive na ilegalidade, trabalha fora o dia todo. O movimento acelerado do filme dá lugar a um propositado “demorar” durante as cenas em que as crianças ficam juntas e enfrentam perigosos desafios.

Se “Cafarnaum” merece muitos elogios, uma das razões passa por sua capacidade de comoção, que não apela à romantização da precariedade. Não há expectativas em torno do convite a uma postura contemplativa. Pelo contrário, somos convocados o tempo todo a nos indignarmos, porém de um modo que tem o mérito de mesclar momentos leves e, por vezes, genuinamente cômicos, com outros que nos traz a convicção de que falhamos enquanto humanidade. Todavia, o pessimismo não triunfa ao final, que, de forma não menos provocativa e cheia de espaços em branco a serem preenchidos, afirma a esperança, o poder que temos de mudar os nossos destinos e travar a batalha pelo direito ao futuro, para que, enfim, possamos viver vidas vivíveis.


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