O vasto, estúpido e inútil muro

Donald Trump aposta sua presidência no muro.

Greg Grandin 26 fev 2019, 14:24

Em um conto publicado em 1950, “O Muro e os Livros”, Jorge Luis Borges dedura o imperador Shih Huang Ti, que ordenou a construção da Grande Muralha da China e a queima de todos os livros do reino. É Borges, então toda razão que ele dá para esses dois desejos aparentemente contraditórios – criar e destruir – é seguida por outra explicação que cancela a primeira.

Borges por fim opta pela ideia de que ambos, a construção e a destruição foram orientadas pelo desejo do imperador de barrar a morte. Shih Huang Ti, conforme dito por Borges, vivia com terror da mortalidade, proibindo que a palavra “morte” fosse proferida em sua presença e procurando desesperadamente por um elixir da juventude.

Talvez, Borges deduziu, Shi Huang Ti ordenou a construção da muralha para preservar o seu reinado para a eternidade, e ordenou a queima de livros para suprimir a ideia de que nada dura para sempre. Pois, se tem algo que a história escrita nos livros nos ensina é que o nosso tempo na Terra é curto. Aparentemente, pelo menos de acordo com Borges, o imperador sentenciou a qualquer um que tentasse salvar um livro a uma vida inteira de trabalho forçado em sua muralha.

“Talvez a muralha fosse uma metáfora”, escreve Borges. Desde sua construção “condenou aqueles que adoravam o passado a uma tarefa tão longa, estúpida e inútil como o próprio passado.”

Nos Estados Unidos, as barreiras físicas de um jeito ou de outro já vem ocorrendo ao longo da fronteira com o México desde o início do século xx- em sua maior parte constituída por arame farpado e cercas – a ideia de um “muro” não ganhou base até depois de os Estados Unidos terem perdido a guerra do Vietnam. Nesta guerra, o Secretário de Defesa Robert McNamara, com a esperança de impedir que as forças do Norte do Vietnam se infiltrassem no sul gastou milhões em 2oo mil carretéis de arame farpado e 5 milhões de postes de cerca com a intenção de construir uma “barreira” – A “linha de McNamara”, como ficou conhecida – que ia do mar do sul da China até o Laos. Essa linha falhou, assim como seus postes e torres de vigilância, que eram queimadas na velocidade em que eram construídas.

Nessa época, ativistas de direita começaram a demandar por um “muro” a ser construído ao longo da fronteira. O biólogo Garrett Hardin, um professor querido na Universidade da Califórnia – Santa Barbara, estava entre os primeiros a clamar por uma barreira como essa. “Talvez, nós construiremos uma muralha literalmente”. Hardin escreveu um artigo em 1977 entitulado “População e Imigração: Compaixão ou Responsabilidade?” publicado no The Ecologist. Hardin era uma das primeiras expressões do que chamamos hoje de “realismo racial”, a ideia de que em um mundo de recursos limitados e declínio das taxas de natalidade de brancos é preciso endurecer fronteiras.

O editorial de 1971 de Hardin na Science, entitulado “A Sobrevivência das Nações e Civilizações” é um exemplo:

Pode um governo de homens persuadir mulheres que é o seu dever patriótico copiar os coelhos? Ou forçá-las? Se renunciamos às conquistas e à procriação em massa, nossa sobrevivência em um mundo competitivo depende de qual tipo de mundo nos encontramos: Um Mundo, ou um mundo de territórios nacionais. Se o mundo é um grande comum, no qual toda a comida é dividida igualmente, então estaremos perdidos. Aqueles que se reproduzem mais rápido substituirão o resto… Em um mundo menos que perfeito, a alocação de direitos baseada no território deve ser defendida se a procriação em ruínas de uma raça deve ser evitada. é improvável que uma civilização e dignidade possam sobreviver em qualquer lugar, mas melhor em poucos lugares do que em nenhum.

Hardin continua para descrever sua posição como “ética da arca”, a ideia de que remos deveriam ser utilizados não só como ferramentas para remar, mas como armas, para afastar outros que quisessem subir no barco. Mais tarde ele seria o defensor do “racismo científico” do The Bell Curve.

Nas décadas subsequentes, o nativismo anti-imigrante se apossou do movimento conservador e do partido republicano, e a ala direitista de intelectuais construiu uma biblioteca de manifestos de acompanhamento da sinistra visão de mundo de Hardin. – de Palmer Stacy e “A Bomba-relógio da Imigração” de Wayne Lutton, publicada em 1985, para 5 anos depois “O Caminho para o Suicídio Nacional” – construídos sob os argumentos de Hardin.

Algumas das primeiras publicações emergiram na literatura do pós-guerra do Vietnam “Limites para o crescimento” – a ideia rapidamente disseminada de que a sociedade hiper consumista estava se exaurindo – e isso revela a sobreposição entre as preocupações dos ambientalistas, pessoas preocupadas com o controle populacional (com uma obsessão especial pelas altas taxas de natalidade Mexicana), defensores da língua inglesa e nativistas anti-imigração. Hardin é um exemplo dessa sobreposição, assim como Jhon Tanton, que nos anos 70 escreveu um artigo argumentando a favor da eugenia e ajudou a fundar a Federação de Nativistas pela Reforma da Imigração Americana.

Assim como o novelista e ambientalista Edward Abbey autor the “Monkey Wrench Gang”, que já expressou preocupações referentes ao crescimento populacional, o aumento da taxa de natalidade de pessoas não-brancas, e a “Latinização” dos Estados Unidos, quando em 1981 convocou a criação de uma barreira física e uma expansão da patrulha da barreira, para incluir mais de 20 mil agentes (um número considerado como uma proposta radical na época, mas hoje em dia isso é apenas cerca de metade do número de agentes que trabalham na patrulha da Fronteira, imigração e alfândega juntas).

“Essas são propostas duras, e até cruéis”, disse Abbey, em uma carta a Revisão de Livros de Nova Iorque (New York Review of Books). Mas, em eco com a ética da Arca de Hardin, ele escreveu que “A Arca americana está cheia, se não sobrecarregada; e nós não podemos nos dar ao luxo de mais imigração em massa. O povo americano está ciente dessa verdade mesmo que os nossos líderes prefiram tentar ignorá-la. Nós sabemos que eles não a reconhecerão ”

Ambientalistas, ambos mainstream e radicais, se distanciaram da ligação que faziam de sua crítica social para questões de imigração. Mesmo assim, o nativismo se tornou uma questão bipartidária.

De um lado, começou a se infiltrar fundo no partido republicano. Patrick buchanan fez o máximo na sua nomeação em 1992 para desafiar George W Bush para que a ideia de uma barreira no sul se popularizasse. Buchanan realizou uma campanha inesperadamente forte, clamando pelo muro, ou uma vala – uma“”barricada Buchanan”, com ele dizia – a ser construída ao longo da fronteira do México – Estados Unidos e também propagandeando uma emenda na constituição que dizia que filhos de imigrantes no país não teriam direito a cidadania.

Bush ganhou a nominação, mas Buchanan conseguiu inserir na plataforma republicana um pedido para a construção de uma estrutura na fronteira. Dois anos depois, os republicanos da Califórnia defenderam com sucesso a proposição 187, que negava serviços sociais a residentes sem documentos.

Mas, do outro lado, os anos 1990 foram os anos do alto clintonismo. E assim, enquanto os republicanos discutiam formas de como eles poderiam tirar a cidadania de “bebes âncoras”, passas leis que asseguram o uso da língua inglesa apenas, retirar crianças sem documentos das escolas públicas, e negar o acesso a hospitais públicos. Bill Clinton usou esse extremismo para soar moderado enquanto ele emplacava sua própria linha dura. Todos os americanos, dizia ele em seus discursos do estado da união em 1995 deveriam estar “levemente incomodados pelo grande número de estrangeiros ilegais entrando em nosso país”.

Prometendo acelerar a deportação de estrangeiros ilegais que eram presos por crimes, Clinton sancionou vários crimes extremamente punitivos, terrorismo e projetos sobre imigração em leis, o que criou o regime de deportação existente hoje. Essas leis fecharam diversas rotas para migrantes obterem status de legalidade, eliminando revisão judicial e requerendo detenção sem fiança. Esencialmente, toda a burocracia da imigração – seus agentes, cortes, e centros de detenção – agora foram girados para expedir deportações. Esses números aumentaram de forma tremenda. Migrantes, incluindo aqueles com residência legal, agora poderiam ser deportados por qualquer infração, incluindo contravenções, mesmo que a transgressão tivesse ocorrido a décadas antes ou que o assunto já tivesse sido resolvido no tribunal.

A Casa Branca viu esta campanha anti-imigrante como uma construção das várias leis criminais de Clinton, que interferiram na vantagem republicana nas questões de “lei e ordem”. Seu conselheiro Rahm Emanuel, em um memorando político em 1996, convoca-o a mirar em migrantes em seus locais de trabalho, para traçar um objetivo de fazer certas indústrias “livres de imigrantes ilegais” e alcançar “recordes de deportação de estrangeiros ilegais”. “Isso é ótimo”,escreveu Clinton na margem do memorando.

Até a lei assinada por Clinton colocando um fim nas vida tranquila de migrantes sem documentos, banindo-os de receberem diversos serviços sociais e proibindo jurisdições locais de oferecerem “santuários” a residentes sem documentos.

Mas a jogada de Clinton para o voto dos nativistas tinha um limite. Nao só os ambientalistas, mas também o movimento de trabalhadores estava se deslocando de um foco maior na migração , enquanto os votantes latinos estavam aumentando consideravelmente.

Por outro lado, os republicanos, se comprometeram a uma estratégia de votação de supressão. isso foi baseado em um cálculo mundano: Califórnia, o local de nascimento dos conservadores modernos, não votavam em um republicano desde quando votaram em George W. Bush em 1988. Se o registro de votantes, virasse, e as tendências de preferência continuassem como eram, alguns temiam que os republicanos começariam a perder o Texas, o Arizona e a Flórida, assim como o status de organização política a nível nacional.

Da mesma forma, após a reeleição de Obama em 2012, muitos conservadores vieram a pensar que nem o apelo a questões culturais nem ir na onda de algum tipo de reforma de imigração (modelada no Ato de imigração e Controle de Ronald Reagan em 1986, que viabilizou um caminho para aproximadamente 3 milhões de residentes sem documentos) necessariamente ajudaria o partido republicano com votantes Latinos.

Votantes latinos não são leais aos democratas por causa da promessa de reforma da imigração, a revisionista nacional Heather MacDonald escreveu, mas porque eles valorizam “uma rede mais generosa, forte intervenção governamental na economia e taxação progressiva”.

No Instituto Americano de Empreendimentos, Charles Murray concorda que Latinos não eram hereditariamente conservadores. Eles não são mais religiosos que outros grupos, Murray apontou, e também não são mais homofóbicos, e eles são apenas um pouco mais contra o aborto do que a maior parte da população (entretanto, Murray disse que os trabalhadores Latinos que vão à sua propria casa aparentam ser homens de trabalho duro, e competentes, o que é algo com o qual ele tratou como sinônimo de conservador)

O fato de que sozinha, essa comunidade de grande quantidade de Latino Americanos dos Walmarts são sindicalizados e deveriam colocar um fim a um dos clichês favoritos de Ronald Reagan, até recentemente, gostavam de repetir como um mantra reconfortante: que os latinos eram os republicanos que ainda não sabiam. O crescente entendimento de que muitos migrantes latinos eram na verdade social democratas ajudou a equilibrar a balança de poder dentro do partido republicano para as forças agora chamadas de Trumpistas.

No despertar da catastrófica presidência de George W. Bush, movimentos conservadores, paralisados por seus próprios excessos ideológicos e sentindo que eles estavam perdendo uma batalha cultural mais ampla, aproveitaram a demonização de imigrantes como uma forma de compensar por contravenções sem ter de recorrer à moderação. Ativistas da direita, pensadores e políticos responsabilizaram o ato de Imigração e Controle de Ronald Reagan não apenas pela tomada da California pelos Democratas, mas pela eleição de Barack Obama em 2008 e sua reeleição em 2012.

De acordo com essa linha de pensamento, a anistia de Reagan adicionou (como um resultado da naturalização de cidadãos tendo a possibilidade de patrocinar a cidadania de outros membros da familia) 15 milhões de novos cidadãos as fileiras dos votantes. Steve King, liderança e ideólogo dos nativistas republicanos na Câmara, disse que esse suposto aumento “levou a eleição de Barack Obama”.

Antes das eleições de 2016, a maioria dos republicanos acreditava que milhões de “imigrantes ilegais” haviam votado em 2008 e 2012 e estavam planejando votar novamente em 2016. Não existem evidências que dão suporte ao que esta tese defende, ainda sim tal argumento é utilizado para justificar os esforços contínuos para suprimir os votos de pessoas não- brancas. Mais recentemente, Tucker Carlson da Fox usou deste argumento para minimizar a interferência da Rússia na política interna dos Estados Unidos, acusando o México de “rotineiramente interferir em nossas eleições ao inflar o nosso eleitorado”.

Prestes a enfrentar uma câmara liderada por democratas, sitiado em um combo de diversas investigações criminais a nível estadual e federal , e afundando com a popularidade lá embaixo nas pesquisas, Donald Trump está agora segue apostando sua presidência no muro, fechando o governo até que ele consiga chamar de vitória. Isso também parece um calculo mundano. Conforme seus oponentes permanecem divididos ele pode seguir mobilizando por volta de 30% do país que acredita que precisamos de colocar um muro ao sul da fronteira.

“A presidência dele está acabada se ele nao conseguir construir o muro”, Steve Bannon, conselheiro anterior de Trump e talvez o mais famoso realista racial do país, disse recentemente a repórter de Nova Iorque Mattathias Schwartz “Ele sabe disso. “

Bannon continuou dizendo que Trump precisa criar fatos na base:
ou você tem uma crise ou não tem… se é uma crise, aja como tal. Declare uma emergência nacional de segurança ao na zona sul da fronteira. Coloque tropas não para ajudar a patrulha da fronteira mas para substituí-las, depois traga o corpo de engenheiros do exército para construir o muro. Pegue as retroescavadeiras e comece a cavar. Os democratas, os republicanos do empresariado, a mídia, talvez os tribunais – todos enlouquecem. Todos lutam contra. Mas você é o Trump , e você está finalmente construindo esse maldito muro.

Ainda sim, há um excesso no ódio que Trump coloca que nao pode ser explicado pela sua forma de fazer politica pelo poder, ou tambem pelos recentes relatorios que dizem que o muro era simplismente um dispositivo de memória para manter a curta atenção de Trump focada em um único ponto. Promessas de construção do muro canalizam tendências psíquicas que correm fundo na cultura americana, e agora parece ser a única coisa que unifica os apoiadores de Trump, e direciona o seu ódio à pessoas que representam os ideias que eles dizem valorizar,

Por todo os Estados unidos, Latinos vem reenergizando bairros e povoando os centros, abrindos lojas e bombeando dinheiro em pequenos negócios bem estabelecidos. A América do strip-mall seria mais tolerável se não fosse pelos mexicanos e americanos da América central que transformaram lojas vazias em taquerias, carnicerias, pupuserias, dentre outros empreendimentos. Até Charles Murray disse que eles tem uma boa ética de trabalho. É como se, ao forçar os latinos para a margem, a Direita quisesse acelerar para jogá-los do abismo, e terminar o esvaziamento que começou a anos atras com o crescimento de uma globalização corporativa.

Ao mesmo tempo, entretanto, e voltando a Borges, o ódio parece sintomático do terror à mortalidade, do tipo que o escritor argentino atribuiu a Shih Hung Ti. Em outras palavras, a dependência dos Estados Unidos no trabalho realizado por pessoas não-brancas confirma a sua base social de existência, e apesar da legitimidade, de direitos sociais e democracia social. Em uma cultura politica que considera os direitos individuais sacrossantos, diretos sociais ocupam um lugar pior que a heresia. Eles significam limites, e limites significam morte, a extinção da única premissa americana que – sendo essa atual, distribuição de riqueza racialmente segregada, extraída e produzida em um mundo a beira do colapso – tudo vai seguir assim para sempre.

Artigo originalmente publicado na Jacobin. Reprodução da tradução de
Bárbara Chiavegatti para o Portal da Esquerda em Movimento.

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