Provar do veneno no meio da tempestade
Sobre os recentes confrontos de Donald Trump com a gigante das telecomunicações chinesa Huawei.
Quando o Presidente chinês foi recebido como um herói pelas autoridades portuguesas, uma das cerimónias mais notadas foi a assinatura de 17 protocolos e acordos entre as duas partes. Havia de tudo: entre os donos e as suas empresas, fica sempre bem, como foi o caso entre a Three Gorges e a EDP ou entre a State Grid e a REN, com a particularidade que não deixa de ser notada de haver mais uma oficialização da relação estabelecida pela privatização e venda ao Estado chinês, a propriedade da energia portuguesa passa a ser uma questão diplomática; entre a CGD e o Banco da China; entre a RTP e uma congénere; com universidades para o ensino do mandarim; de exportação de uva de mesa; e, para mostrar que não se esquece a boa vontade partidária, entre as câmaras de Tinjin e de Setúbal. Mas o acordo mais importante, rubricado sob os sorrisos do nosso primeiro-ministro e do Presidente chinês, foi entre a Altice/MEO e a Huawei, o gigante chinês que está a investir na tecnologia 5G, e que assim cresceria em Portugal na base desta parceria.
Posso, quero e mando
Poucos dias depois desta feliz assinatura, a diretora financeira da empresa chinesa e filha do seu presidente foi detida no Canadá, havendo um procedimento para extradição para os Estados Unidos. A acusação, que talvez seja o que menos importa, é de violação das sanções norte-americanas contra o Irão.
O Governo dos EUA faz assim demonstração de dois poderes. O poder de perseguir criminalmente quem quer que seja e onde quer que seja em função das suas próprias decisões (a União Europeia recusou as sanções contra o Irão, em função de um acordo de que os norte-americanos se retiraram por ordem de Trump) e a vontade de preservar o controlo sobre uma tecnologia de ponta, que será decisiva para os processos de automação no futuro imediato. Alegando riscos de segurança para o seu país, os governos da Austrália, Nova Zelândia, Japão e Reino Unido anularam ou impediram os contratos com a Huawei para o fornecimento de serviços nesta área. A Universidade de Oxford rescindiu acordos com financiamentos para projetos de investigação, patrocinados pela empresa. E outros aliados de Washington seguiram o exemplo. Deste modo, o Governo português (e o francês) ficou numa posição difícil, e aliás declarou que não acompanhava as sanções contra a empresa.
A alegação norte-americana é que, tendo sido criada por um engenheiro que no passado trabalhou para as forças armadas chinesas, a Huawei é suspeita de criar portas por onde possa entrar a espionagem chinesa nos equipamentos que vende. A partir daqui, sem factos, mas com estas suspeitas, não se sabe mais nada.
Uma interpretação para este processo é que as autoridades trumpianas temem que a Huawei, que é a empresa mundial que regista mais pedidos de patentes internacionais e é desde há seis anos o maior fornecedor do mundo em comunicação móvel (200 milhões de smartphones vendidos no ano passado, 110 mil milhões de dólares de vendas de equipamentos), venha a liderar a inovação num sector estratégico e, por isso, pretende barrar-lhe o caminho usando todos os meios ao seu alcance.
Um mundo bipolar
Ora, é evidente que o controlo de tecnologias de comunicação permite um poder especial, como se verificou quando, em benefício de Trump e de outros, a Cambridge Analytica acedeu a quase noventa milhões de perfis do Facebook, que utilizou em campanhas políticas. Assim, o que está em causa não é propriamente a nacionalidade da empresa e o controlo pelo governo do partido, mas antes o facto de esse poder eventualmente se exercer na fronteira tecnológica, com riscos militares e estratégicos a prazo curto. O problema é mesmo ser tecnologia de comunicação, pois é certo que, ainda há pouco, a relação destas empresas com o Partido Comunista Chinês não pareceu impressionar muito os reguladores norte-americanos quando a Three Gorges passou a dominar a EDP, que controla a energia em Portugal e que, aliás, também tem instalações importantes nos Estados Unidos.
Este conflito tem ainda outra implicação mais vasta. Caminhamos para um mundo em que se podem vir a delimitar duas redes distintas de internet, a norte-americana e a chinesa. A Huawei já dirige redes que representam um terço da população mundial, particularmente na Ásia. A ofensiva de Washington pode portanto ser lida como um ataque preventivo. Os canhões do protecionismo disparam agora com proibições e tutela de contratos. Não deixam de ser letais. Mais uma vez, esta dupla escolha seria um desastre para a Europa.