O Brasil verde-e-rosa das multidões

A Estação Primeira de Mangueira é a grande campeã do carnaval carioca de 2019. A agremiação homenageou Marielle Franco em enredo sobre heróis esquecidos pela história “oficial” do país.

Isaque Castella 7 mar 2019, 09:04

A madrugada de terça-feira, 5 de março, certamente ficará marcada pelo histórico desfile da verde-e-rosa na Marquês de Sapucaí. Tecnicamente perfeita, socialmente imprescindível e emocionalmente arrebatadora, a escola do brilhante carnavalesco Leandro Vieira terminou a apuração da quarta de cinzas, que liderou desde o primeiro quesito, com pontuação máxima, já tendo conquistado os prêmios Estandarte de Ouro (de O Globo) e Tamborim de Ouro (de O Dia).

Se na disputa de 2019 estavam em duelo o carnaval transgressor da Mangueira e um estilo mais tradicional e conservador, apresentado por escolas como a Vila Isabel – e seu enredo sobre a cidade imperial, Petrópolis, calcado em uma perspectiva histórica próxima da versão mais propagada pelos livros de história – é possível dizer que a pegada crítica levou a melhor ao final. Subversiva, a verde-e-rosa derrubou os heróis emoldurados e questionou, por exemplo, a “libertação” dos escravos pelas mãos da Princesa Isabel.

Vieira não precisou de muitos recursos para colocar, com talento e criatividade, sua escola na avenida. Se é verdade que a Mangueira não fez o desfile mais luxuoso do ano, é louvável a forma como costurou um enredo contundente, abraçado pela comunidade e embalado pelo sensacional samba-enredo, cantado com garra pelos componentes da agremiação e pelo público da Sapucaí. A bateria de Mestre Wesley foi outro destaque da apoteótica passagem mangueirense pela passarela do samba, garantindo quatro notas 10 no quesito.

Conhecida por títulos com enredos de grande relevância cultural para o Brasil, como Maria Bethânia (2016), Chico Buarque (1998), Carlos Drummond de Andrade (1987), Caymmi (1986) e “Brazil com Z é pra cabra da peste, Brasil com S é nação do Nordeste” (2002), a escola, mais uma vez, flutuou sobre a avenida, fazendo da competição um mero detalhe diante de sua transcendência. A Mangueira de 2019 recontou a história do Brasil, desconstruindo as narrativas do colonizador.

Já na Comissão de Frente, personagens como Pedro Álvares Cabral tiveram sua “fama” contestada, em uma abertura que representou o dito “descobrimento” como invasão, haja vista a ocupação originária dessas terras pelos povos indígenas. Se para alguns a resistência à colonização não foi mais do que um movimento sem forças, que logo teria dado lugar a uma sujeição pacífica, Leandro Vieira trouxe, ao contrário, conflitos envolvendo os povos que aqui habitavam e os europeus. Os bandeirantes, “desbravadores” do interior brasileiro, não escaparam da crítica. Uma alegoria foi responsável pela releitura do Monumento às Bandeiras, banhado de sangue. O patrono do Exército, Duque de Caxias, apareceu no papel de repressor de movimentos e revoltas populares, pisando sobre corpos reprimidos.

Exaltando personagens negras, indígenas e pobres, historicamente oprimidas, a escola propôs novos heróis. Um deles foi Luiz Gama, ex-escravo, que se tornou jornalista e advogado, e libertou 500 negros. Sua mãe, Luiza Mahin, foi representada na avenida por Leci Brandão, em um momento de grande emoção. Já Zumbi dos Palmares e Dandara foram interpretados por Nelson Sargento e Alcione, o que mexeu com o coração mangueirense e dos amantes do samba. Na última ala, personalidades negras estamparam bandeiras nas cores da agremiação, entre eles Cartola, Jamelão e Marielle Franco. A viúva da vereadora, Mônica Benício, veio à frente dos bandeirões vestida em uma roupa que dizia: “Lute como Marielle Franco”.

“As multidões em verde-e-rosa” fecharam o desfile com uma bandeira nacional um pouco diferente: no lugar dos dizeres “ordem e progresso” foi escrito “negros, índios e pobres”, os verdadeiros heróis da nação tupiniquim. No cortejo mangueirense, os elementos remanescentes do militarismo não tiveram vez, sejam suas personalidades, o slogan positivista ou mito erguido sobre os anos de chumbo. “Ditadura assassina”, disse o enredo em um de seus carros, que contou com a presença da jornalista Hildegard Angel, filha de Zuzu Angel, morta pelo regime militar.

Para o carnavalesco da escola, ao comentar seu trabalho ao final da apresentação, a Mangueira se mostrou novamente como uma agremiação que tem responsabilidade para com o povo brasileiro, o que se justifica sobretudo pelo seu tamanho e por sua tradição. Parece que o maior legado que fica dessa noite simplesmente inesquecível é justamente um convite da escola para que a luta dos oprimidos prossiga, fortalecida pelo reconhecimento de suas raízes.

Que a vitória incontestável da Estação Primeira sirva como um motor das batalhas que travaremos nos próximos períodos! O 8M e o 14M, quando se completa um ano do assassinato de Marielle e Anderson, estão vindo por ai! “É na luta que a gente se encontra!”.


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