Bouteflika renunciou: uma rebelião popular em marcha

O odiado Abdelaziz Bouteflika, o octagenário presidente da Argélia, anunciou sua renúncia.

Israel Dutra 12 abr 2019, 17:36

O odiado Abdelaziz Bouteflika, o octagenário presidente da Argélia, anunciou sua renúncia em 02 de abril depois de uma impressionante jornada de mobilizações. Desde então, o povo segue na rua, exigindo a queda de todo o regime.

No final de fevereiro, depois de anunciar que concorreria à sua quarta reeleição, Bouteflika galvanizou um poderoso movimento de massas contra si e o regime que liderou com mão de ferro nos últimos 20 anos.

Voltando de uma temporada internado num hospital caríssimo em Genebra, o todo-poderoso da FLN chegou a Argel, em meio a uma onda massiva de protestos, marcada por um forte “08 de Março” e por um chamado a uma greve geral imediata. Na segunda-feira, 11 de março, veio a notícia que virou comemoração: o presidente autoritário anunciava sua “desistência” como forma de diminuir o verdadeiro levante que estava se iniciando. Buzinaços, festejos, concentrações espontâneas e um sabor inicial de vitória popular. Contudo, Bouteflika não renunciou a seu atual mandato; apenas adiou a data das eleições, numa tentativa de ganhar tempo enquanto aplacava os protestos. Em 15 de março, pela quarta sexta-feira consecutiva, a mobilização ganhou caráter multitudinário, numa das maiores concentrações desde a revolução anticolonial. E assim se sucederam semanalmente ações estudantis combinadas com greves de setores estratégicos como a dos petroleiros da estatal Sonatrach.

Depois da guerra civil na década de 1990, consolida-se um regime autoritário, em que eleições presidenciais são marcadas por fraudes, perseguição e impedimento de opositores. Os resultados costumam favorecer o partido do governo com uma margem de 90% de diferença. Um teatro político para esconder as terríveis condições de vida do povo argelino.

A queda de Bouteflika foi um enorme triunfo. Dois de seus irmãos foram levados à prisão domiciliar. Um dos empresários mais prestigiados do regime, Haddad, um barão do ramo da construção civil, envolto em corrupção, foi detido na fronteira, com malas cheias de dólares. A manifestação de 5 de abril apontou para além do demissionário presidente, com centenas de milhares lutando contra o regime, desconfiados em relação à transição encabeçada por militares. O impacto que teria a derrubada de um sangrento regime para o conjunto do mundo árabe seria enorme.

A história e tradição de luta do povo Argelino, pioneiro na heroica luta anticolonial, durante a ocupação francesa, apenas reforça o caráter estratégico da presente revolução democrática que se ensaia no país.

Da esperança à tragédia: A FLN como expressão da revolução degenerada

Localizada no Magreb, a Argélia é o país de maior território na bacia do Mediterrâneo e o maior produtor de gás natural e petróleo do continente africano. Reúne cerca de 40 000 000 de habitantes, em sua maioria pertencentes a etnias árabes e berberes. Carrega a marca de uma das mais importantes revoluções da história do século XX: a revolução anticolonial, na forma de guerra popular contra a ocupação francesa, que abriu uma nova etapa na luta de libertação nacional na África e no mundo. A ocupação francesa iniciada em 1830 durou até 1962. Após a II Guerra Mundial, o povo argelino intensificou sua luta pela independência.

Em 08 de maio de 1945, durante uma marcha comemorativa da vitória dos Aliados na luta contra o nazifascismo, distúrbios ocorreram na cidade mercantil de Setif, e a polícia francesa comete um massacre contra milhares de argelinos que protestavam pela soberania nacional. O discurso hipócrita da burguesia constitucional francesa exaltava os heróis da resistência em seu país contra as tropas nazistas, mas mantinha uma ocupação militar colonial no continente africano. A partir desta data, o povo argelino começa a gestar uma luta militar de massas contra a ocupação.

Nove anos mais tarde, em março de 1954, um ex-sargento do Exército francês, Ahmed Bem Bella, fundou a Frente de Libertação Nacional (FLN) junto a outros oito exilados argelinos no Egito. A Revolução Chinesa (1949) e a derrota do imperialismo francês na Primeira Guerra da Indochina (1954) estimularam a ação guerrilheira na Argélia por parte da FLN. Uma guerra civil intensa teve início, com custos humanos imensos. Estima-se que quase meio milhão de argelinos perderam a vida nos 8 anos de combates sem trégua; ao menos 3 000 000 de argelinos foram deslocados para campos de reagrupamento.

Uma revolta nacional – bem retratada no clássico cinematográfico A Batalha de Argel (1966), de Gillo Pontecorvo – foi se desenvolvendo e, logo, conquistou apoio internacional, à medida que o Exército francês reprimia com mais força as ações heroicas da FLN. Em 1956, a França teve que reconhecer a independência do Marrocos e da Tunísia. Dois anos mais tarde, a IV República Francesa, atolada numa crise financeira, veio abaixo. O general Charles de Gaulle formou um governo, sob uma nova constituição, e iniciou uma política de lenta distensão com os rebeldes argelinos. Após muita pressão da FLN, um referendo de autodeterminação argelina entra na agenda da França para desagrado da extrema-direita francesa e dos colonos residentes na Argélia. Estes formaram a Organisation Armée Secrète- OAS (1961-1962) que promoveu ações terroristas tanto na Argélia quanto na França (inclusive contra a vida de Gaulle) para desestabilizar o processo independentista. Depois de muita luta, o povo argelino, em referendo reconhecido por De Gaulle em julho de 1962, finalmente escolheu a independência nacional.

Vale destacar o papel dos agrupamentos trotskystas no fornecimento de recursos para a luta revolucionária. Michel Pablo, num dos casos mais conhecidos, chegou a ser preso por mais de um ano na Holanda em 1960, acusado de apoiar a revolução argelina. Numa declaração a um tribunal de 1961 em Amsterdã, Pablo descreve o drama argelino com as seguintes palavras:

Acaso nos damos conta na Europa Ocidental dos horrores da guerra colonial na Argélia, o fato de que durante os últimos sete anos de massacres e torturas ao redor de um milhão de mortes no lado argelino, mais de dois milhões de camponeses pobres perseguidos em suas aldeias, deslocados? “Reagrupados” em acampamentos temporários, mais de 250 000 refugiados argelinos no Marrocos e Tunísia, a maioria dos quais são anciãos, mulheres e crianças órfãs de guerra, mais de 300 000 argelinos em prisões e campos de concentração na própria França. No entanto, estes dados aparecem na imprensa oficial francesa e nos inumeráveis documentos literários e de outro tipo produzidos por esta guerra colonial, a mais atroz de nosso século.

(“The War in Argelia”, 1961, Michel Pablo – https://www.marxists.org/archive/pablo/1961/11/14.htm)

A solidariedade internacionalista também serviria para forjar a geração estudantil que protagonizou junto ao operariado francês os acontecimentos de maio de 1968, conforme Henri Weber e Daniel Bensaid reconheceram à época:

“ O processo mediante o qual tem adquirido o movimento estudantil francês sua fisionomia atual se iniciou nos últimos anos da guerra da Argélia. Frente as atrocidades colonialistas do norte da África apareceu um movimento de rebelião moral entre os intelectuais e os estudantes franceses. A política do imperialismo francês feria diretamente a ideologia humanista compartilhada na universidade liberal. Casa vez era mais os estudantes que se colocavam contra a guerra colonial. Os mais conscientes e resolutos entravam nas organizações clandestinas de ajuda a FLN : Jovem Resistência, Movimento Anticolonialista Francês, Grupo Nizan. Ombro a ombro com os combatentes argelinos, se encarregavam de atividades de apoio e de reunir fundos. Organizavam, além disso, um perigoso trabalho de propaganda revolucionária no exército, a difusão de panfletos em quarteis, a implantação de núcleos militantes nos regimentos, a realização de espetaculares golpes de mão, como a detenção pela força dos abertos dos comboios de soldados. Frente a traição patriótica do Partido Comunista Francês, algumas centenas de estudantes se esforçaram assim em salvar a honra internacionalista do movimento operário francês.”

(“Maio de 1968 e Guerra da Argélia”, Henri Weber e Daniel Bensaid, 1968, Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/bensaid/1968/mes/maio.htm)

Logo após sair da prisão em que se encontrava há seis anos, Ben Bella, representando as tendências mais à esquerda no interior da FLN, é eleito presidente argelino por uma ampla maioria em 1962. A marca de seu curto governo (1963-1965) são as nacionalizações de indústrias e de propriedades francesas, além de uma política internacional não-alinhada a nenhum dos blocos da Guerra Fria (Bouteflika, aliás, foi seu chanceler com apenas de 26 anos de idade). Cisões internas da FLN e a pressão vinda da França e EUA por questões fronteiriças com o Marrocos condicionaram o Golpe Militar de 1965. Chega ao poder uma ala da FLN mais ligada ao nasserismo e ao pan-arabismo.

De 1965 a 1978, o país foi governado por Houari Boumedienne , de quem Bouteflika se tornou braço-direito. O ponto alto desse governo foi a nacionalização de 51% da principal petroleira francesa e 100% das companhias de gás natural. A partir da renda do petróleo, pôde-se desenvolver um amplo plano de desenvolvimento nacional, com forte investimentos na saúde e educação pública.

Após sua morte, outra liderança da FLN o substituiu, Chadli Bendjedid (1979-1992), um oficial militar representando uma ala mais próxima da decadente burocracia soviética. Marginalizou-se a geração de Bouteflika (o próprio, acusado de corrupção, parte para um autoexílio de quatro anos na Europa em 1983). Na década de 1980, com a queda do preço do petróleo, a economia argelina entra numa profunda crise, e começam a ser implementadas políticas de reestruturação neoliberal exigidas pelo FMI. O país abandona sua “política industrial” e os trabalhadores das cidades iniciam uma revolta contra a piora do padrão de vida e o regime de partido único. Em 1988, uma revolta operária e popular é esmagada, deixando um saldo de 174 mortos.

Deve-se observar que os golpes dentro da FLN representaram um processo de degeneração do processo revolucionário anticolonial. O golpe dentro da direção da FLN que derrubou Ben Bella em 1965 já indicava a disputa de camarilhas de poder dentro do Estado, com o crescente controle militar tornando-se quase absoluto, impedindo o reforço da auto-organização dos trabalhadores argelinos.

Apesar de conservar o nome e os símbolos, a atual FLN nada tem a ver com o passado glorioso da revolução anticolonial. Tal qual várias outras formações oriundas do guerrilheirismo, como o sandinismo na Nicarágua, a atual FLN é uma máquina governamental a serviço dos ricos, da integração ao Imperalismo e da repressão de opositores internos.

O Regime de Bouteflika e os militares: neoliberalismo e corrupção

O multipartidarismo, na esteira da queda do muro de Berlim, é introduzido nas eleições municipais de 1990, em que a Frente Islâmica de Salvação (FIS) obtém uma vitória expressiva, capitalizando a insatisfação das massas com a burocratização do regime hegemonizado pela FLN. Na iminência de um novo triunfo da FIS (cuja plataforma consistia na islamização da sociedade argelina, em obediência aos dogmas derivados do Alcorão) nas eleições gerais de 1991, o Exército derruba o presidente Bendjedid e encarcera os dirigentes islâmicos. Uma sangrenta Guerra Civil (1991-2002) inicia-se entre a FLN (apoiada na ideia de estabilidade e tradição do antigo regime) e o braço armado da FIS (impulsionado por forças estrangeiras). Os confrontos deixam mais de 200 000 mortos durante a década de 1990.

O esgotamento das energias sociais e econômicas do país trouxe a pacificação e o retorno ao poder da velha geração da FLN. Bouteflika (mesmo tendo nascido em domínios marroquinos) assume seu primeiro mandato presidencial em 1999, após uma eleição recheada de fraudes. A falta de lisura nos processos eleitorais, aliás, se repetiria nas três eleições presidenciais posteriores, sob a completa inação da comunidade internacional, mais interessada na estabilidade dos hidrocarbonetos argelinos que propriamente nos valores democráticos.

Ao ascender à presidência, Bouteflika pôs fim ao conflito militar com a FIS e consolidou o regime dominado pela FLN, em aliança com outros três partidos menores. Valendo-se da alta do preço do petróleo durante os anos 2000, a economia argelina abriu-se mais ao mercado mundial (principalmente, aos capitais sediados na França, Itália e Espanha), aprofundando a dependência ao rentismo petroleiro. Várias empresas e terras públicas foram privatizadas. As conquistas sociais da revolução argelina foram liquidados e doenças que haviam sido erradicadas (tifo, tuberculose, cólera) voltaram a assombrar o povo argelino.

Quem efetivamente manda no país desde o final da Guerra Civil são os oficiais militares, os veteranos de guerra, os apparatchicks da FLN e os oligarcas dos negócios, os quais a população apelidou de “Le Pouvoir” (“O Poder”). A maior central sindical do país é controlada pela FLN. Quando eclodiu a Primavera Árabe em 2011, protestos tomaram conta do país por conta da elevação dos preços dos alimentos. Bouteflika conseguiu permanecer no poder, aumentando os benefícios sociais com a renda proveniente da alta cotação mundial do petróleo.

Em abril de 2013, Bouteflika sofreu um AVC e passou três meses em recuperação na França. Desde então, suas aparições públicas se tornaram cada vez mais raras. A queda do preço do petróleo em 2014 agravou os problemas sociais dos argelinos. Hoje, cerca de 30% da juventude (mais de 2/3 da população do país) encontra-se desempregada. Ano após ano, milhares de jovens argelinos tentam atravessar o Mediterrâneo em embarcações precárias em busca de sobrevivência na Europa.

A degradação física de Bouteflika abriu uma disputa no interior de “Le Pouvoir” pela sucessão presidencial. Em 2014, a oposição boicotou as eleições e Bouteflika foi reeleito sem precisar fazer campanha. No início de 2016, o chefe do serviço secreto da Argélia, Mohamed “Toufik” Mediene (até então braço-direito de Bouteflika) perdeu seu posto. Em fevereiro de 2016, o Parlamento argelino aprovou uma reforma que impunha o limite de dois mandatos presidenciais. No ano passado, vários generais foram presos a mando do governo, após a apreensão de 700 kg de cocaína num porto do país. Em outubro último, o presidente da Câmara quase foi derrubado por outros setores da FLN.

A paralisia de Bouteflika aumentou as suspeitas de que os responsáveis por tomar as principais decisões do país atualmente são a cúpula e a influente família de Bouteflika. Desde outubro do ano passado, torcidas de futebol entoavam cânticos exigindo a saída de Bouteflika. O anúncio realizado em 10 de fevereiro de uma nova investida eleitoral de Bouteflika no pleito marcado para 17 de abril detonou as atuais mobilizações massivas no país. A renúncia de Bouteflika colocou fim no seu ciclo presidencial e abre a luta mais imediata para derrubar o regime agonizante.

Revolução e contrarrevolução no mundo Árabe

Em texto de 2011, quando do processo revolucionário que derrubara a Ben Ali e Mubarak, definimos que se abria uma nova etapa para a luta política. O impacto da revolução democrática que percorreu o mundo árabe foi enorme. Assim definimos num extenso artigo, publicado dias após a queda de Hosni Mubarak:

“No mundo árabe, estão em curso poderosas revoluções. Na Tunísia, as massas saíram às ruas e derrubaram o regime de Ben Ali, que estava a 20 anos do poder. O Egito se inspirou no exemplo, e perdeu o medo de Hosni Mubarak, e em uma gloriosa epopéia de 17 dias de mobilizações revolucionarias acabo com o faraó de Egito. É uma grande onda revolucionária, que pode levantar-se contra outros regimes autocráticos da região.”

(Pedro Fuentes e Israel Dutra, “Tunísia e Egito: uma revolução democrática e permanente percorre os países árabes”, 04/02/2011, Disponível em: https://portaldelaizquierda.com/pt_br/2011/02/tunisia-e-egito-uma-revolucao-democratica-e-permanente-percorre-os-paises-arabes/)

O processo que ficou conhecido como “Primavera Árabe” nos meios internacionais, até hoje, é controverso. Muitos setores da esquerda acabaram concluindo, a partir de acontecimentos nas fases posteriores aos levantes, com a vitória contrarrevolucionária do regime de Assad como ponto de inflexão ou o golpe militar de Al Sissi no Egito, que o processo estava esgotado, ou pior ainda, que era apenas uma “miragem”.

Da nossa parte, acreditamos que os recentes processos, com epicentro na Argélia, mas também com a revolução em curso no Sudão, reafirmam os dois polos contidos na nossa elaboração: existem irrupções importantes do movimento de massa, verdadeiras revoluções democráticas e sociais; contudo, não existem sujeitos políticos capazes de transformar em representação os anseios democráticos em novos poderes ou regimes mais populares; tal condição só pode ser explicada pela crise da consciência, em retrocesso, e a dificuldade da esquerda socialista em se enraizar no movimento de massas.

Retomamos a importante caracterização de Gilbert Achcar de 2016:

“Por este ângulo, as revoltas regionais poderiam ser analisadas, a partir de lentes marxistas, como um caso clássico de revolução social resultante de um prolongado bloqueio do desenvolvimento que caracterizou a região de língua árabe por cerca de três décadas, com recordes extremamente baixos de produção e altos índices de desemprego, especialmente entre os jovens. Eu estava particularmente preparado para ver as coisas por esse ângulo, já que eu dava aulas sobre “Problemas do Desenvolvimento no Oriente Médio e no Norte da África” durante muitos anos antes das revoltas. Para mim, era claro que o bloqueio do desenvolvimento na região iria, cedo ou tarde, levar a uma grande explosão social.

Foi por isso que descrevi, tão logo os levantes começaram na Tunísia, no dia 17 de dezembro de 2010 e que se espalhou pelo restante da região, como o início de um processo revolucionário de longa duração. Com isso, eu me refiro ao processo histórico de revolução que se desdobra não em semanas ou em meses, mas durante anos e até décadas. As insurreições iniciaram um período de longa duração de instabilidade regional que necessariamente teria altos e baixos, levantes revolucionários e recuos contrarrevolucionários, e claro, envolveriam também bastante violência”

(Entrevista com Gilbert Achcar, Revista Outubro, n. 25, março de 2016 )

Na definição de Achcar está a chave para compreender a desigualdade e a combinação do período em que vivemos. As derrotas na Líbia, Egito e Síria colocaram um entrave importante para o desenvolvimento vivo daquilo que as praças pediram no começo de 2011. Cada um desses processos obedeceu a leis próprias, tendo em comum, a falta de alternativas para construir uma saída positiva diante da irrupção do movimento de massas. O peso das ideologias religiosas ajuda a explicar os conflitos posteriores.

Na Síria, o aparelho de Estado comandado pela dinastia Assad, utilizou das formas mais sangrentas para se aferrar ao poder, desatando uma guerra civil com centenas de milhares de mortos. Até armas químicas foram utilizadas pelo regime assadista. A tensão síria abriu a caixa de pandora do problema dos imigrantes e refugiados; o triunfo militar de Assad, com custos humanos enormes, foi um ponto de inflexão para a dinâmica da revolução árabe aberta em 2011. Podemos adicionar o golpe de Al Sisi no Egito, com a pugna entre entre alas do exército contra a Irmandade. Também foram parados ou desviados processos como o do Iemem e Bahrein. Na Líbia, a fragmentação nacional, motivada pela disputa por Petróleo, divide o país. Por um lado um governo títere (Acordo Nacional, montado pela ONU), por outro projetos militares locais; o fato é que não houve a consolidação de novo tipo de poder: nem um regime mais independente, nem um protetorado do Imperalismo.

Os conflitos militares e a estagnação econômica da maioria dos países do Oriente Médio e do Norte da África incrementam o problema mundial dos refugiados e imigrantes. Face ao esmagamento da Revolução Síria pelo regime Assad, por exemplo quase 300 000 pessoas tiveram que deixar o país em busca de segurança para suas vidas e famílias. É preciso lembrar o papel da União Europeia (onde a extrema-direita surfa eleitoralmente na xenofobia e dita cada vez mais as normativas do bloco) no sentido de pressionar os países do Norte da África para impedir as pessoas de partirem de seus portos no Mediterrâneo. Uma notícia de julho de 2018, da Associated Press, dava conta que a milhares de imigrantes vindos da África Subsaariano eram devolvidos ao deserto e à propria sorte pelo governo argelino.

A disputa política na região envolve os atores do Imperialismo. O Estado de Israel apresentou uma dinâmica de giro à direita, levando a linha belicista de Bibi Netanyahu a explorar cada dia mais novos limites. Precisou buscar aliados externos, com a ascensão da extrema-direita com Trump e Bolsonaro para recuperar do isolamento internacional que deu um salto a partir de 2011 e da campanha BDS. Os ataques recentes, com o novo cerco à Gaza e Cisjordânia recrudescem a polarização.

Outro elemento distintivo da atual conjuntura foi o importante enfraquecimento militar do grupo fundamentalista Estado Islâmico (EI). Meses após o anúncio de sua derrota no Iraque, a organização salafista acaba de perder seu último bastião. Vale lembrar que o autodenominado “califado”, em 2014, chegou a ocupar um território equivalente a Grã-Bretanha. O temor maior agora é que o grupo (pelo visto, bem organizado virtualmente) intensifique suas ações terroristas.

Norte da África, Oriente Médio e Turquia: ares de primavera?

Nota-se nos últimos uma retomada das mobilizações nesta região do globo abalada pela Primavera Árabe do início da década. O ano passado teve início com manifestações multitudinárias contra o regime iraniano e sua política econômica de austeridade. Concomitantemente, em janeiro de 2018, milhares de trabalhadores tunisianos foram às ruas protestar contra o aumento dos impostos e o rebaixamento de seu nível de vida. Em maio de 2018, 30 sindicatos jordanianos iniciaram uma greve geral contra a austericídio aplicado pelo governo; o resultado foi a queda do governo. No Iraque, de 2015 até os nossos dias, registram-se protestos massivos contra a corrupção, a inflação, o desemprego e a crise energética do país mutilado pela Guerra de 2003. Em Gaza, a população palestina foi em grande número às ruas em fevereiro passado para reclamar do modo como o Hamas vem governando a região.

Enquanto escrevemos estas linhas, o povo do Sudão, após quase quatro meses de revolta e repressão, conseguiu pôr abaixo o autoritário e fundamentalista governo de Omar al-Bashir que há 30 anos dava as cartas no país. A mobilização que envolveu milhões de sudaneses teve à frente as mulheres, como bem retrataram o artigo “As histórias das mulheres à frente da rebelião sudanesa” (Democracy Now, https://movimentorevista.com.br/2019/04/as-historias-das-mulheres-a-frente-da-rebeliao-sudanesa/) e a foto viral da jovem Alaah Salah, que está sendo chamada de “A Estátua da Liberdade Sudanesa”. A ‘Zagrouda’, canto das mulheres, se tornou um código para as ações de rua. Quando as pessoas ouvem as vozes das mulheres, sabem que é uma convocatória para o início das marchas.

Por último, devemos nos atentar para a ameaça turca contra os curdos. Depois de longos perseguindo os militantes curdos ilegalizados, o partido de Erdogan (AKP), que acaba de sair derrotado em Istambul e Ankara, também viu aumentar eleitoralmente o prestígio dos curdos nas regiões metropolitanas altamente disputadas de Diyarbakir, Van e Mardin, localizadas no Curdistão turco e que estão sob intervenção de Ankara. Desde que findada a coalizão com os EUA na Síria contra o ISIS no começo do ano, os curdos convivem com a ameaça de um assalto militar turco. Neste momento, será crucial a mobilização em Rojava para se defender com um verdadeiro de uma possível “agressão turca”, além da pressão sobre Damasco para que reconheça a autonomia efetiva do Curdistão Sírio.

A importância e o salto de qualidade que se coloca em marcha, com a unificação das lutas africanas, a do norte magrebino com o sul onde a esquerda se fortalece na luta contra o social-liberalismo como na África.

Com o povo da Argélia, para derrubar o regime e apoiar um novo tempo para as lutas no continente

A revolução popular em curso na Argélia está numa fase decisiva. O país com reservas e tradições de lutas revolucionárias se colocou em movimento. E agora, após a queda de Bouteflika testa os limites da relação de forças, ao colocar o movimento contra o regime e bradar que estão contra todo o “Sistema”. Grito que se ouviu na capital Argel, mas também em Oran e outras cidades do país.

A burguesia aposta numa saída envolvendo os chamados ‘“3B” (o primeiro-ministro Nouredinne Bedoui, o presidente da Câmara Alta, Abdelkader Bensalah, e o Ministro do Interior, Tayeb Belaiz), todos integrantes dos círculos próximos do presidente.

O chefe militar que comandou a repressão e hoje é o nome de confiança do imperialismo, Gaid Salah, se postula como novo homem forte. É decisvo para evitar o fechamento da janela de luta revolucionária, mobilizando contra o pacto que Salah quer presidir para uma transição pactada.

A presença do movimento de mulheres organizadas, na linha de frente, é uma aposta que a esquerda radical faz para não deter o processo. Houve uma importante inflexão de 08 de março, quando a greve internacional das mulheres encontrou na Argélia um protesto feminista que se combinou com a luta contra o regime.

O Imperialismo francês, com Macron e o núcleo duro do empresariado- que até o último minuto estiveram com o antigo ditador, agora apostam suas fichas em Salah e na hipótese de ser um fiador internacional da ‘transição pactada’.

O movimento popular, com uma vanguarda juvenil, movimento de mulheres e batalhões radicalizados como os petroleiros da Sonatrach luta para organizar formas embrionárias de poder local e contra a burocracia da poderosa central sindical, UGTA, ligada a FLN.

Nessa sexta-feira, 12 de abril, novas manifestações são aguardas nos centros urbanos da Argélia. A IV internacional e o PST(partido alinhado na Argélia) colocam a necessidade de uma greve geral, capaz de organizar os setores populares, para lutar por uma assembleia nacional constituinte.

A revolução argelina e as mobilizações no Sudão encontram os elementos que se descongelam da revolução democrática de 2011. Como escrevemos naquele momento, o problema de direção é crucial para apontar uma saída, democrática, anticapitalista e antipatriarcal, para responder à crise orgânica dos regimes. Utilizando a metafora do artigo anterior que em nossa visão, retoma sua atualidade, as revoluções de 2019 colocam um novo impulso no trem que se movimentou em 2011. Em qual estação ele vai parar- como tomamos na teoria da revolução permanente- é o desafio de todos os socialistas solidários com os levantes que comovem o mundo.


Cronologia da Revolução Argelina

Acompanhe abaixo uma rápido cronologia dos eventos que abalarão a Argélia nos últimos 60 dias:

24 de fevereiro: Bouteflika é internado em Genebra;

01 de março: Uma manifestação multitudinária chega às imediações do palácio presidencial em Argel. A repressão policial é forte com mais 180 feridos e 45 manifestantes detidos.

03 de março: Encerradas as inscrições eleitorais com quatro chapas presidenciais inscritas.

08 de março: As jovens mulheres lideram a terceira sexta-feira consecutiva de protestos contra o regime argelino.

09 de março: O Ministério da Educação anuncia, sem maiores explicações, a antecipação em 20 dias das férias escolares previstas para 20 de março.

11 de março: É divulgada uma carta oficial de Bouteflika renunciando a um quinto mandato e adiando indefinidamente as eleições de 18 de abril. Uma reorganização ministerial começa a ser realizada.

13 de março: Começa a ser formado um comitê eleitoral com personalidades afins de Bouteflika responsável por definir o calendário do próximo pleito.

15 de março: Nova sexta-feira de protestos nas principais cidades do país. O pedido agora é pela saída imediata do presidente.

19 de março: Novos protestos no dia em que se comemora a Independência argelina.

26 de março: O chefe do Exército, Ahmed Gaid Salah, apoiado pela maior central sindical do país, pede a saída de Bouteflika.

28 de março: O segundo homem mais rico do país (patrimônio estimado em 600 milhões de euros) e financiador das campanhas de Bouteflika, Ali Haddad, renuncia à presidência da maior entidade patronal do país.

29 de março: Outra sexta-feira de protestos. O alvo agora é todo o regime e o chefe do Exército, Salah, há 15 anos no posto.

31 de março: Uma nova reorganização ministerial é feita por Bouteflika sem alterar a maioria dos principais nomes da cúpula de poder.

02 de abril: Bouteflika finalmente renuncia por meio de uma carta lida por Salah, que lidera um comitê de transição.

03 de abril: Acusado de corrupção, Ali Haddad é preso 5 mil euros em dinheiro vivo enquanto viajava para Túnis.

05 de abril: Os argelinos voltam às ruas protestando contra a transição controlada pelo triunvirato que designam como “3B” (o primeiro-ministro Nouredinne Bedoui, o presidente da Câmara Alta, Abdelkader Bensalah, e o Ministro do Interior, Tayeb Belaiz), todos integrantes dos círculos próximos do presidente demissionário.

09 de abril: O Parlamento nomeia Abdelkader Bensalah (aliado de Bouteflika e presidente da Câmara Alta) como presidente interino pelos próximos 90 dias. Sua tarefa principal será organizar novas eleições em que não poderá se candidatar. O anúncio é recebido com protl com gritos de “Fora Bensalah”.

12 de abril: Milhares de manifestantes vão às ruas novamente exigir a queda do regime avalizado por Ahmed Gaid Salah.


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