Reflexões sobre o contexto social-político da África do Sul

Uma análise do congresso de fundação do SRWP a partir da situação política e cultural do país meridional.

Prof. Josemar Carvalho 24 abr 2019, 13:42

Apresentação

Primeiramente quero agradecer ao meu partido, o PSOL, pela confiança política e pela oportunidade que nos foi designada de representa-lo – junto com a Ana Mielke e Deputado Federal Glauber Braga – no Congresso de fundação do Socialist Revolutionary Workers’ Party (SRWP) entre os dias 04 e 08 de abril na África do Sul.

O internacionalismo é ação permanente de solidariedade, de troca de experiencia e de atividade comum. Pois o capitalismo explora as pessoas em todas as partes do planeta, precisa ser superado. O racismo é racismo, em qualquer canto do planeta.

Nesta singela contribuição, quero socializar um pouco da minha experiencia no continente africano. Quero dialogar sobre o processo e a riqueza política e cultural que pude vivenciar.

1. Sobre as bases materiais da África do Sul

A África do Sul é segunda economia da África subsaariana, ficando atrás apenas Nigéria com país multiétnico, a constituição reconhece 11 línguas, tendo a hegemonia do inglês com língua pública e oficial.

Mesmo sendo o país mais industrializado da África do Sul, é possível observar a extrema pobreza. O bairro de Soweto, que tive condições de observar, é um exemplo disso. A miséria é exposta. O índice de assaltos e estupros são muito presentes no país. Dados revelam que sua população vive em média com aproximadamente US$ 1,5 por dia.

Desemprego é dos maiores problemas do país na atualidade, sua taxa está na casa de 25% (sendo que na juventude aproxima-se dos 50%). A contraposição dos opositores (sejam eles de esquerda ou de direita) ao governo da ANC (African National Congress) tem na falta de postos de trabalho seu ponto de partida. Mesmo em crise, sua economia é diversificada, tendo na indústria, no setor de serviços, na indústria, na agricultura e no extrativismo, suas principais bases econômicas.

Os 25 anos de governos da ANC não mudaram a estrutura de poder e econômico do país. Críticas do EPP ( Economic Freedom Fighters – Combatentes da Liberdade Econômica) e do SRWP (Socialist Revolutionary Workers`Party – Partido Socialista Revolucionários dos Trabalhadores Sul-africano), que são partidos de esquerda caminham nesta direção.

2. O contexto histórico-político da África do Sul

A luta política recente na Africa do Sul tem dois recortes importantes: O período do Apartheid (1948-1994) e a construção da hegemonia do ANC frente ao Estado Sul-Africano.

A vitória do Partido Reunido Nacional, e  união deste com Partido Africaner para obter a maioria parlamentar, dando origem a o Partido Nacional foram os passos iniciais para institucionalização do “Apartheid” como regime politico e social do país. Aprofundando a desigualdade racial do século XVII, o sistema de segregação instituiu a mudança de legislação para aprofundar a separação territorial racial e aumentar a exploração sobre os negros.

A dialética da luta contra o período apartheid perpassa por dois momentos: a primeira iniciada em 1948 onde houve a imposição do regime e a usurpação do Estado pela minoria branca. E uma segunda, que tentou abafar a influência do movimento anticolonial do continente em solo sul-africano.

Neste segundo período, os aparatos jurídico e de repressão foram sendo intensificados. Os anos 70 é marcado pelo endurecimento do regime como resposta aos movimentos anticoloniais de cunho socialista em solo africano. A tentativa de imposição do Africâner como língua oficial e de pôr na clandestinidade as línguas locais e o inglês, visava atingir a organização, a troca de experiência com os países vizinhos, bem como a unicidade das diversas etnias. O marco histórico desta virada são as manifestações estudantis de 1976, em especial no bairro de Soweto. Se por um lado, se intensificava internamente a repressão, por outro a luta contra o apartheid ganha dimensões internacionais.  

Com o fim do apartheid, estabelece a hegemonia no cenário politico nacional da ANC. A primeira eleição em 1994, deu a vitória ANC e seu presidente Nelson Mandela. Sua vitória é fruto de ampla mobilização de massas, que envolve sindicatos, partidos num novo projeto de disputa do país. Mandiba governou até 1999.

A hegemonia da ANC segue até os dias de hoje. Thabo Mbeki foi o segundo presidente, governou de 1999 até 2008, tendo uma reeleição em 2004. Renunciou o cargo em meio a crise de corrupção dentro do partido. Kgalema Montlant foi escolhido pelo partido como presidente interino da África do Sul. Em 2009, o partido indica Jacob Zuma que governa até fevereiro de 2018, sobre a acusação de corrupção. Assume-se Cyril Ramaphosa que governa o país até os dias de hoje.

As próximas eleições que ocorreram no dia 08 de maio será um novo momento de rearranjo das forças políticas no país. O SRWP terá um papel importante neste pleito.

3. Os partidos e a estrutural eleitoral da África do Sul

Com fim do apartheid, a África do Sul abriu para eleições pluriétnicas e com vários partidos. Na eleição deste ano, apresentou-se 47 listas partidárias foram apresentadas para o próximo pleito de maio.

O presidente da África do Sul é eleito num sistema muito próximo ao parlamentarismo. A população vota no Partido, que produz a sua campanha a partir de suas figuras públicas.

A estrutura parlamentar é bicameral.  A Assembleia Nacional tem 400 membros, eleitos de forma proporcional. O Conselho Nacional de Províncias (órgão similar ao Senado) com 90 representantes representando paritariamente as 9 províncias.

Mesmo com desgaste político que vem sofrendo nos últimos anos, a ANC é principal partido político da África do Sul. Além Presidência, tem a maioria do parlamento, dirige a principal Central Sindical, a COSATU, tem uma intervenção significativa nos movimentos. A ANC possui uma direção antiga e experimentada. Possui figuras políticas que militaram clandestinidade e que conduziram o processo de finalização do Apartheid.

No campo politico, os escândalos de corrupção e não-solução dos problemas estruturais do país são os maiores problemas que recaem sobre a ANC no debate nacional.

Existem rupturas significativas e perdas dentro sua base social. A ruptura de Julius Malema (EPP) revela o desgaste com a juventude. A NUMSA da COSATU foi um problema no campo sindical. A derrota nas duas cidades mais importantes nas eleições municipais de 2016 (Pretória e Joanesburgo) também são sintomas do desgaste.

O segundo partido de maior peso institucional no país é Aliança Democrática. É maioria na Província de Cabo Ocidental. Ganhou as Prefeituras das duas maiores cidades do país: Pretória e Joanesburgo. Mesmo com rachas e reorganizações ao longo do tempo, o partido tem sua referência histórica, na luta de Helen Suzman, única deputada nos anos 70 a se opor ao apartheid e a visitar Mandela na prisão. Tem como líder para eleições do próximo pleito Mmusi Maimane, jovem negro de 38 anos. É um partido cujo o programa é liberal. É considerado um partido branco, mas suas principais figuras públicas são negras.

O EPP – Economic Freedom Fighters – Combatentes da Liberdade Econômica é um partido de esquerda. Liderados por Julius Malema de 38 anos, o EPP é um racha da juventude com a ANC. Tem como base teórica e metodológica Franz Fanon e por Thomas Sankara. Nas eleições de 2014, obteve 6,35% dos votos, elegendo 25 deputados nacionais. Faz críticas duras ao ANC, na qual acusam de adaptar ao neoliberalismo. Devemos observa-los, para ver como se comportam e como se desenvolvem.

Existem outros partidos de relativa importância. O Partido da Liberdade Inkatha que defende os interesses Zulus. O Partido da Democracia Cristã Africana (African Christian Democratic Party), de base católica. O Agang  foi fundada por Mamphela Aletta Ramphele, ex-companheira de Steve Biko, defende o ativismo. O Partido Comunista Sul-Africano (SACP) é participe da ANC.

O SRWP é um partido novo, fundado com quadros que foram formados no SACP, tendo como seu principal dirigente Irving Jim. Com veremos a seguir.

4. O SRWP seu nascimento

O surgimento do SRWP está diretamente ligado ao desgaste do ANC junto as bases sindicais, em especial o NUMSA, ao Massacre de Marikana e o giro a direita por parte da ANC.

NUMSA (National Union of Metalworkers of South Africa)  é o sindicato nacional dos metalúrgicos sendo o maior sindicato do continente africano, com 450.000 filiados. Fui fundado em 1987 da unificação de cinco sindicatos, e organiza trabalhadores industriais dos setores de engenharia, automobilístico e eletrônico. Até sua expulsão da COSATU foi o principal sindicato da Central.

O NUMSA, como membro da COSATU, compôs a aliança entre a ANC (African National Congress), SACP (South African Communist Party) e a COSATU (federação sindical), em todos os períodos eleitorais pós apartheid.

O Massacre de Marikana[1] também influenciou no processo. As ondas de greves influenciaram a base metalúrgica que passaram a olhar com desconfiança a direção do ANC. O Congresso de 2013 reflete os acontecimentos do ano anterior desde então ensaia um balanço critico sobre a ANC e seus governos. 

 Divergindo de sua aliança histórica, o NUMSA, em seu congresso de 2014, a decide por não apoiar ANC. A ruptura do NUMSA com a aliança, resultou em sua expulsão da COSATU, abrindo uma disputa pela aberta pela orientação da Central. O Congresso de 2014 do NUMSA sela-se a ruptura com a ANC e inicia-se as discussões para a fundação de um novo partido.

Dai então, as bases que se colocaram na construção do novo partido passaram a se manifestar abertamente em oposição ao governo da ANC. Criticando-o, pela esquerda, o SRWP acusa a ANC de não fazer politica de reparação histórica, de implementar medidas neoliberais e não distribuir terra.

Assim como o PSOL, fundado em 2003 em contraposição ao projeto de Lula e do PT, o SRWP surge pela esquerda como um projeto socialista alternativo ao ANC.

5. O SRWP: “Equality-Work-Land”

A consigna do SRWP, Igualdade – Trabalho – Terra (“Equality-Work-Land”), vem de um balanço critico dos governos da ANC e de seus aliados. Afirmam que as condições de vida na África do Sul estão retroagindo nos últimos anos.

O Congresso Fundacional do SRWP, é um marco na organização da esquerda do país e da África Subsaarina. reuniu 944 delegados de todo o país, e mais 50 observadores internacionais. Foi possível observar várias fotos e cartazes de Marx, Lenin e outros revolucionários da esquerda mundial e do continente africano. O que revela um país com uma perspectiva ideológica bem definida.

Está constituído em todo país, nas 9 províncias da África do Sul,  tendo tem base principal, os metalúrgicos do NUMSA. Constroem a SAFTU (South African Federation of Trade Unions / Federação de Sindicatos da África do Sul), nova central sindical, que agrega mais de 800 mil trabalhadores de mais de 20 sindicatos pelo país. Uma outra aposta é a UNITED FRONT (uma frente de movimentos populares), que visa realizar o trabalho comunitário por serviços básicos como água, luz, educação e saúde.

No campo internacional, o SRWP está articulado com a Assembleia Internacional dos Povos na qual inclui o MST brasileiro. Junto com o Partido Socialista de Zambiae, mais recentemente, a Via Democrática (Marrocos) e o Partido dos Trabalhadores (Tunísia), formaram uma frente chamada PAT (Pan Africanism Today), que é o núcleo central da AIP na África. Em setembro de 2018, organizaram a Conferência Pan Africana (ou a Assembléia Africana da AIP), com mais de 400 delegados de cerca de 50 países. Foi a maior Assembléia Regional já organizada nesse processo, iniciado em 2016.

Em conjunto com o Partido Socialista de Zambia, organizam seu próprio espaço chamada Nkrumah School (em homenagem ao líder da independência de Gana, o marxista Kwame Nkrumah), em Bela Bela, cerca de 2 horas meia de Joanesburgo. Tive a honra de visitar a Escola de Formação e, constatei um trabalho sério baseado numa metodologia pedagógica, desenvolvida nos métodos de Paulo Freire.

O SRWP é uma alternativa política de esquerda para o contexto sul-africano. A combinação de seu programa radical com seu trabalho de base cotidiano, é as melhor expressão de um partido que se desenvolve positivamente. Reflete também a predisposição de luta e de construção revolucionária daqueles que não abriram mão dos desafios históricos.


[1] O Massacre de Marikana foi um massacre policial de 34 mineiros no dia 16 de agosto de 2012 que reivindicavam aumento salarial. Foi o mais grave tiroteio policial desde o fim do apartheid, em 1994 – levou a uma onda de greves nas minas da África do Sul e à morte de outros 60 mineiros.


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Pedro Micussi