Lei de combate ao tráfico e a lógica do aprisionamento brasileiro

É realmente certo fomentar a lógica do aprisionamento feminino mesmo sabendo suas devidas causas e consequências?

Bruna Chamas Biondi 30 maio 2019, 11:41

A urbanização desordenada de um país como o Brasil que fomentou o aumento das desigualdades sociais, fez com que o país se tornasse heterogêneo em oportunidades, renda e segurança, fazendo com que a violência fosse um dos temas mais importantes a serem debatidos e combatidos até os dias de hoje. A falta de oportunidades existentes nas periferias tornou essas regiões alvos para o desenvolvimento do crime organizado e do tráfico de drogas.  Desde então a população periférica vulnerável a falta de oportunidades de empregos arriscam sua liberdade e, muitas vezes, suas vidas em troca de uma recompensa financeira.

Conforme o narcotráfico foi crescendo no Brasil o crime foi se institucionalizando e cooptando as instituições, prova disso é a criação do PCC e das milícias. O Primeiro Comando da Capital trouxe à tona a organização no tráfico, dentro e fora dos presídios, impondo regras que viabilizaram uma menor violência entre os traficantes principalmente entre os carcereiros. Já a milícia é um exemplo de como o tráfico se tornou um lobby entre policiais, traficantes e políticos, viabilizando cada vez mais o sucesso no comércio das drogas.

Como resposta a este crescente comércio o Estado assume, de forme moralista e insuficiente, a solução no aumento da rigidez nas leis de combate ao tráfico e o aumento da brutal atuação da Polícia Militar nas periferias. Uma das políticas adotadas que mais tiveram consequências enrijecimento das penas contra o tráfico foi a criação da lei 11.343/2006, que se baseia em:

“Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.”

Esta lei resultou em um aumento significativo da população privada de liberdade. Segundo a pesquisa realizada de 2016 do INFOPEN – Instituto Nacional de Levantamento de Informações Penitenciárias – em 2006, quando a lei foi criada, o número de presos era de 401,2 mil pessoas e em 2016 passou a ser 726,7 mil pessoas (INFOPEN, 2016). Este número se torna ainda mais assustador quando analisamos o INFOPEN Mulheres que mostra o aumento de prisioneiras de 17,2 mil em 2006 para 42,4 mil em 2016.

O aumento de 181% de homens e mulheres presos no período de 2006-2016 é preocupante, entretanto e enfoque de gênero, vendo que o número de mulheres carcerárias cresceu 246%, é o grande porquê deste texto se direcionar ao encarceramento feminino sob uma ótica feminista. O estudo da realidade carcerária feminina é crucial para a percepção de que a lógica do aprisionamento também é tomada pelo machismo, além de possuir decorrências familiares graves, já que na maioria dos casos as mulheres presas são mães.

A vivência em presídios femininos se dá de forma bem diferente do que a dos masculinos, a começar pela discrepância entre a média de visitas por pessoa que os presos homens recebem (7,8) e a média de visitas por mulheres (5,9). Esses números podem ser explicados por muitos fatores, um deles é o machismo existente dentro das famílias brasileiras que encaram como um tabu vergonhoso ter o contato ou parentesco com mulheres encarceradas. Outro fator importante é que nos presídios masculinos tem-se uma “obrigatoriedade” moral de que as cônjuges e companheiras estejam presentes nos domingos de visita. Por fim, há também o fato de que as mulheres presas – principalmente aquelas presas por tráfico de drogas – em muitos casos entram no crime organizado junto com os seus maridos ou quando seus companheiros são presos, para garantir o sustento dos filhos bem como a sobrevivência dos maridos dentro dos presídios, ou seja, a prisão de seus companheiros também é um porquê do número muito reduzido nas filas de visitas para prisioneiras.  

Outro aspecto importante quando utilizamos uma ótica de gênero é a realidade materna em um ambiente totalmente hostil ao desenvolvimento humano. Segundo os dados do INFOPEN Mulheres em 2016, 75% das mulheres presas do Brasil possuíam um ou mais filhos, isso trazia uma realidade de 1.111 crianças dentro dos estabelecimentos femininos apesar de só 14% e 3% deles possuírem berçários e creches, respectivamente. Este cenário gera um ciclo familiar que dificulta a emancipação dos filhos das presas para uma realidade sócio-educacional distinta. Aqueles e aquelas que passam parte do seu desenvolvimento em ambientes punitivistas, como são as cadeias, compreendem só uma realidade possível para se desenvolver financeiramente (o crime), já aqueles e aquelas que os pais estão presos veem no tráfico a forma mais eficaz de se sustentar bem como sustentar seus irmãos e irmãs. 

Uma possibilidade de romper este ciclo familiar, oferecendo maiores oportunidades para as famílias das carcereiras, seria o Auxílio-Reclusão, que está previsto dentro da lei da previdência social. Este auxílio é acessível aos dependentes das presas em regime semiaberto ou fechado, contribuintes regulares do INSS. O benefício possui alguns critérios como idade, deficiência e tipo de relação com o presidiário. Entretanto, no Brasil apenas 3% das famílias recebem auxílio-reclusão e isso se deve provavelmente a dificuldade no acesso ao auxílio devido a burocracia existente no sistema previdenciário.

O impacto da lei 11.343/2006 citada acima que intensifica o aprisionamento deve servir de reflexão se o sistema prisional brasileiro caminha bem. Ainda na análise do INFOPEN Mulheres vê-se que 45% das mulheres estão presas sem condenação, 62% são negras e 62% estão condenadas por tráfico de drogas. Como bem descreve Drauzio Varella em seu livro “Prisioneiras” a maioria das mulheres que hoje estão privadas de liberdade não são traficantes nem são ligadas a facções criminosas. Como dito anteriormente, os presídios masculinos possuem um alto índice de visitas e em muitos desses encontros os carcereiros pedem “favores” para pagarem suas dívidas contraídas que os ameaçam de morte. Ao cumprirem sua lealdade a maioria das mulheres tem o início de seu ciclo penal nas revistas dos dias de visitas. 

A pergunta que nos resta é: É realmente certo fomentar a lógica do aprisionamento feminino mesmo sabendo suas devidas causas e consequências? Sabe-se o quanto a nossa justiça é tomada por uma lógica racista, não à toa que a maior porcentagem de mulheres presas são negras e nem sequer foram julgadas. O aprisionamento em massa agrava cada vez mais a superlotação dos presídios e a má condição de vida para as que lá habitam. É extremamente necessário que se pense políticas públicas de combate ao tráfico que garantam a dignidade humana e que pense em romper o ciclo geográfico-social que condena todos os dias mulheres e crianças da periferia.

Artigo realizado como recurso avaliativo da disciplina Direito Constitucional ministrada por Marcelo Nerling – EACH USP

Referências

VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. São Paulo: Companhia Das Letras, 2017.

MJ – Ministério da Justiça e Segurança Pública. INFOPEN Mulheres 2º edição, 2018.

Brasil, Constituição. Lei nº 8.213, 1991.

Brasil, Constituição. Lei nº 11.343, 2006.


TV Movimento

PL do UBER: regulamenta ou destrói os direitos trabalhistas?

DEBATE | O governo Lula apresentou uma proposta de regulamentação do trabalho de motorista de aplicativo que apresenta grandes retrocessos trabalhistas. Para aprofundar o debate, convidamos o Profº Ricardo Antunes, o Profº Souto Maior e as vereadoras do PSOL, Luana Alves e Mariana Conti

O PL da Uber é um ataque contra os trabalhadores!

O projeto de lei (PL) da Uber proposto pelo governo foi feito pelas empresas e não atende aos interesses dos trabalhadores de aplicativos. Contra os interesses das grandes plataformas, defendemos mais direitos e melhores salários!

Greve nas Universidades Federais

Confira o informe de Sandro Pimentel, coordenador nacional de educação da FASUBRA, sobre a deflagração da greve dos servidores das universidades e institutos federais.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 21 abr 2024

As lutas da educação e do MST indicam o caminho

As lutas em curso no país demonstram que fortalecer a classe trabalhadora é o único caminho para derrotar a extrema direita
As lutas da educação e do MST indicam o caminho
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 48
Edição de março traz conteúdo inédito para marcar a memória da luta contra a repressão
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Edição de março traz conteúdo inédito para marcar a memória da luta contra a repressão