A importância da luta contra a corrupção perante os vazamentos da Lava Jato

Sobre as revelações do site The Intercept e o enfrentamento à corrupção.

Bruno Magalhães 11 jun 2019, 14:39

Os vazamentos das mensagens enviadas entre procuradores da Lava Jato, e mais especificamente entre o promotor Deltan Dallagnol e o então juiz Sérgio Moro, publicados recentemente pelo site de notícias Intercept, movimentaram ainda mais o já conturbado cenário político brasileiro. O escândalo colocou o ministro da Justiça de Bolsonaro em uma situação difícil, aumentou a crise no governo e abriu novamente o polêmico debate sobre o tema da corrupção entre militantes e organizações de esquerda. O material exposto pelo renomado jornalista Glenn Greenwald ainda não foi totalmente publicado, mas comprova a evidente suspeita sobre a relação orgânica entre Moro e os promotores da força-tarefa.

​Esta relação não é nenhuma surpresa, já está nítida há bastante tempo. O método de operação da “república de Curitiba” sempre esteve tão evidente que tanto seus apoiadores como seus detratores nunca se preocuparam em separar os interesses do MPF daqueles do juiz. A hipótese de uma relação exclusivamente jurídica entre Dallagnol e Moro nunca foi aventada, apesar do formalismo hipócrita dos dois, assim como nenhum comentarista político jamais negou que havia um nível alto de organicidade entre os investigadores, juízes e desembargadores envolvidos em determinados objetivos comuns. Esta relação também não é novidade para uma militância de direita que sempre viu esta sinergia antijurídica como saída em seu favor perante o problema da falência da Nova República. Os vazamentos realizados até agora provaram algo que tanto os defensores como os detratores da operação já sabiam.

​Ainda assim, a comprovação material desta relação é muito importante para a luta política porque, ao se provar empiricamente, desgasta ainda mais o governo Bolsonaro ao inscrever o desvio de Moro no plano jurídico, como um feitiço que se volta contra o feiticeiro. Ao dar publicidade e notoriedade aos planos políticos de Moro e Dallagnol, o vazamento das conversas tira a aura legalista deste grupo político e coloca a luta anticorrupção no país em uma fase menos contraditória, muito mais propícia para a atuação dos socialistas e dos setores progressistas que não estão envolvidos em escândalos de corrupção.​

​Infelizmente, a defesa firme das investigações sobre empresários e políticos suspeitos ainda é uma posição minoritária entre as organizações de esquerda, o que favorece a estigmatização promovida pela direita, e a publicação destas novas informações serviu mais para a autoproclamação do que para armar a luta política contra o governo. Assim como nos primeiros meses do ano, o nefasto espírito do “eu avisei” tomou conta do debate na vanguarda como instrumento de desforra daqueles que sempre estiveram contra qualquer investigação de corrupção, reunindo o PT e setores aderentes ao petismo em uma posição unilateral cujos furos continuam sem explicação.

​É preciso aprofundar este debate que, sem dúvida, foi colocado em novos marcos após a ascensão do governo Bolsonaro e estas últimas revelações. Para isso, é preciso antes romper com a lógica sensacionalista das redes sociais, trocando a argumentação por símbolos gráficos e utilizando da suposta imunidade virtual para realizar provocações e ofensas. Apesar de algumas organizações na esquerda possuírem a tradição da polêmica fraterna, outras menos sérias e seus militantes de base se utilizam do pior que tem para se afirmar nas redes sociais, trocando textos por memes e demonstrando a fragilidade e a superficialidade de certas caracterizações.

​Antes de tudo é importante partir do ponto no qual temos maior unidade. O trabalho de Greenwald terá consequências muito positivas para a política brasileira porque atinge não só o ministro Moro e seu falacioso“pacote anticrime”, mas também leva mais uma crise para o já conturbado governo Bolsonaro e pode atrasar o trâmite da Reforma da Previdência. Ao demonstrar empiricamente que a relação entre Moro e os procuradores é iminentemente política, o Intercept dá enorme contribuição para a luta dos trabalhadores contra os ataques do governo e torna ainda mais estratégica a luta anticorrupção ao colocar em cena o fato de que o juiz também é corrupto.

​Glenn Greenwald é um jornalista democrático que há anos acompanha a política brasileira. Vivendo há mais de uma década no país, ele e seu companheiro David Miranda (militante do movimento Juntos e hoje deputado federal pelo PSOL/RJ) foram peças-chave durante a campanha em defesa de Edward Snowden, e David chegou inclusive a ser detido pela polícia inglesa em 2013 devido a sua luta pelo direito à informação. Em 2014, o PSOL atuou ativamente na defesa de Snowden através da campanha por sua liberdade, e o Juntos organizou lançamentos do documentário Citizenfour em diversos estados, tendo a atual deputada estadual Luciana Genro (PSOL/RS) como única candidata à presidência que na época defendeu a concessão de asilo para o ativista norte-americano perseguido. Sem nunca ter relativizado o problema da corrupção, Glenn demonstra mais uma vez a qualidade de seu trabalho.

​Para Bolsonaro, as revelações do Intercept não poderiam vir em pior momento. Após primeiros meses críticos, o governo ensaiava uma nova tentativa de articulação que fica duramente prejudicada por mais este escândalo. A oposição pode atuar fortemente para derrubar o ministro, complicando bastante a articulação do governo e aumento a percepção de sua incapacidade, por motivos diferentes, tanto perante a classe trabalhadora como perante a burguesia. A escolha de Moro como ministro da Justiça foi um movimento que buscava utilizar o grande prestígio popular do juiz na tentativa de construir uma imagem de combate à corrupção para o novo governo, e pesquisas recentes demonstraram como a popularidade de Moro já era maior que a de Bolsonaro.

​Entretanto, Moro acumulou diversas derrotas em seu período no governo como no decreto de flexibilização da compra e porte de armas, no projeto de lei sobre o excludente de ilicitude para defesa de propriedades, na desautorização da nomeação de Ilona Szabó e mais recentemente na disputa pelo COAF, entre outros casos. Ao mesmo tempo, a promessa feita para uma futura vaga no STF (também de forma ilegal) garantiria sua permanência e apoio ao governo, mas as novas revelações complicam esta situação e abrem dúvidas sobre qual será o próximo passo de Bolsonaro. São duas hipóteses: o governo se distancia de Moro e o ministro cai ou o governo dobra a aposta e atua na defesa do ex-juiz. Será um cálculo cada vez mais complexo à medida que novas informações forem reveladas, mas nenhum dos cenários está descartado e nos dois casos acontecerá o aprofundamento da crise no Palácio do Planalto.

​A luta anticorrupção entra em um novo patamar porque os vazamentos dão ainda mais provas da corrupção de membros do governo Bolsonaro, já marcado por escândalos como o “caso Queirós” e o “laranjal do PSL”. O desmascaramento público do paladino da justiça cria uma situação na qual os socialistas tem ainda mais condições de assumir a luta anticorrupção perante a população, confiantes de nossas diferenças no campo moral.

​Apesar da chuva de provocações, o debate sobre as táticas dos socialistas perante o judiciário está longe do encerramento. No PSOL, esta discussão teve início durante o escândalo do mensalão em 2006, que inclusive provocou a vinda ao partido de setores do PT que se abstiveram perante a Reforma da Previdência aprovada por Lula em 2003. Sempre marcado por lacunas, distorções e falsas polêmicas, este debate volta à cena em uma nova conjuntura que mantém diversos aspectos clássicos das posições divergentes.

​A polêmica central continua a mesma, encarar a luta anticorrupção e suas contradições ou negá-la. Aqueles que a encaram enfrentam as contradições próprias dessa posição, atuando na luta para que uma superestrutura contraditória e corrupta por sua própria natureza (o Estado) desenvolva instabilidade interna através do aprofundamento da reivindicação democrática por investigações independentes contra burgueses e outros poderosos. A ideia de que as investigações sempre devem ir até o fim norteia esta posição, promovendo uma política de exigências que nos gabarite perante o povo e impeça o monopólio da luta anticorrupção pela direita. Em um país onde o cárcere é reservado para jovens negros, a exigência de punição para corruptos ricos é essencial no diálogo com a população.

​Aqueles que negam esta luta o fazem por dois motivos. Um setor da esquerda combate a luta anticorrupção por simples autodefesa, e estes não são interlocutores deste texto. O setor honestamente contrário à luta anticorrupção (a grande maioria, é importante dizer) tem esta posição porque não aceita as contradições inerentes ao tema, respondendo problemas concretos com propagandismo socialista e deixando certas soluções para um momento pós-capitalista, construindo um refúgio imbatível no qual evitam quaisquer dúvidas e desgastes perante a vanguarda.

​Não se trata somente de uma diferença de discurso, mas de abordagens concretas. Enquanto a primeira posição é ativa (defendendo a investigação e punição para corruptos), a segunda é passiva, denunciando a justiça burguesa enquanto desvia do assunto e faz propaganda de um futuro hipotético no qual condições ideais de investigação estarão colocadas. O PSOL sempre se dividiu nessa polêmica onde um lado defende a luta anticorrupção (e se mete em suas contradições) e outro a caracteriza esta pauta como moralista (e nega suas contradições). As duas posições são legítimas, apesar da postura vazia dos provocadores, e na prática levam à distintas localizações na vanguarda.

​A posição socialista em defesa da luta anticorrupção sempre teve uma mesma bandeira: desnudar os desvios de recursos públicos (incluindo aqui o grave problema da lavagem de dinheiro) e levar as investigações sobre corruptos até o fim, defendendo-as taticamente sem colocar qualquer confiança no judiciário. Partindo da caracterização da corrupção como mecanismo generalizado no regime capitalista, esta posição apoiou as prisões de corruptos notórios realizada pela Lava Jato, e esta lista não é pequena.

​A evolução tática da defesa desta posição teve momentos diversos durante o desenvolvimento dos processos, o que torna capciosa a transposição de declarações passadas para o cenário atual, mas sempre se caracterizou pela coerência e pela tentativa de ampliar o diálogo com a sociedade. O episódio da prisão de Eduardo Cunha, que hoje é tão lembrado, foi composto naquele momento também pela vacilação de muitos setores de esquerda, e eventos como este continuam exemplares para entender e ascensão de Bolsonaro e as dificuldades da afirmação de um projeto independente de esquerda. Enquanto um setor se arriscava nas contradições da vida real, o outro se afastava delas.

​A posição de negação da pauta anticorrupção vê esta bandeira como exclusiva da direita devido ao suposto moralismo inerente e a superficialidade que carrega, admitindo somente posições defensivas perante o judiciário e recusando qualquer materialidade nesta área. Esta posição parte de uma premissa verdadeira (a direita realmente se utiliza da luta anticorrupção) para escolher o caminho fácil e negar as possibilidades de disputa que se abrem nesse tema. Na verdade, a questão é mais complexa pois poucos declararam publicamente sua contrariedade à luta anticorrupção e mesmo parlamentares mais próximos ao petismo também fazem esta diferenciação nas tribunas, apesar de criticá-la nos espaços da vanguarda.

​É como no já dito “paradoxo das meias”, ilustração na qual alguém procura retirar as meias sem antes tirar os sapatos. Os setores que negam a luta anticorrupção não o fazem publicamente e apoiam investigações de forma abstrata, mas são contra qualquer investigação que se torne concreta porque não toleram as contradições envolvidas. Como um processo jurídico é impossível por fora do judiciário e de seu sistema, a dissonância desta posição fica evidente pois os camaradas defendem investigações mas não aceitam as condições concretas na qual elas ocorrem. Apesar de seu caráter inédito, a Lava Jato também é uma expressão das distorções de um poder judiciário onde a relação de conspiração entre juízes e promotores é a regra, e no afã de se declarar no “lado certo da história” muitos companheiros e companheiras deixam de lado este problema concreto.

​Da mesma forma, as lacunas discursivas dos detratores da luta anticorrupção ficam evidentes quando se questiona o destino das investigações em andamento que atingiram figuras como Sérgio Cabral, Eduardo Cunha, Marcelo Odebrecht e tantos outros corruptos notórios. A posição pelo fim da Lava Jato admite a anulação das investigações contra estes sujeitos? Se a resposta for positiva esta esquerda dará um presente para Bolsonaro, que se fortalecerá demonstrando que seus opositores de fato defendem corruptos, e se for negativa ela no mínimo aceitará o mérito das mesmas investigações que denunciam. Quem defende a continuidade da prisão de Cabral é a favor da Lava Jato? É um tema muito mais complexo do que parece e, ao invés de ignorar esta questão, é preciso afirmar uma posição política independente tanto do judiciário como dos setores corruptos, exigindo sempre o desnudamento das relações espúrias do poder.

​A vacilação de grande parte da esquerda perante a prisão de Temer demonstrou este problema. O desmascaramento do regime corrupto da Nova República foi seguido pelo atual desmascaramento do governo corrupto de Bolsonaro, mas este argumento imbatível continua pouco utilizado porque não pautamos a luta contra a corrupção no diálogo com os eleitores de Bolsonaro. Disputar uma nova maioria social que se projete para o futuro, ao invés de se voltar para a lembrança de um governo passado, é uma tarefa que necessariamente passa também por posições concretas neste tema.

​Lutar para que as investigações de corrupção vão até o fim não significa de forma alguma ignorar riscos ou investir confiança nos mecanismos jurídicos, mas sim ter uma posição de desenvolvimento da indignação popular e da luta social a partir de um polo de esquerda reconhecidamente coerente e ético, tal qual fazemos em outros âmbitos de exigência perante o Estado burguês. Sabemos que a luta anticorrupção é uma pauta democrática impossível de ser solucionada dentro deste Estado, e a coerência em sua defesa pode ser uma grande ferramenta para a construção de uma referência socialista perante uma população que percebe este problema diariamente em seu cotidiano.

​Não é uma tática imóvel, e a defesa da liberdade de Lula demonstrou isso. O entendimento de que sua prisão representou uma intervenção direta da Lava Jato nos rumos da eleição presidencial foi um marco para a mudança de tática pois tal intervenção ocorreu nitidamente a serviço de um programa de direita para derrotar o PT nas eleições, acabando por colaborar para a vitória de Bolsonaro ainda que esse efeito não estivesse claro no momento da prisão. A partir dela, e principalmente devido a notável diferença de seu processo com o de outros acusados, a defesa de sua liberdade transformou-se em uma pauta democrática e houve grande consenso sobre ela, apesar das diferentes gradações da adesão ao mecanismo montado pelo PT para capitalizar politicamente o fato. Naquele momento a polêmica era, e continua sendo, se esta defesa democrática deveria significar uma aproximação política com o PT ou não.

​O fato é que muitos setores realizaram esta aproximação e, ao se colocar sistematicamente contra as investigações, facilitaram as relações com um partido diretamente interessado no abafamento da luta anticorrupção. Muitos companheiros e companheiras do PSOL hoje estão politicamente mais próximos do PT do que o PSOL jamais esteve, e a tentativa mal sucedida da Plataforma Vamos evidenciou o objetivo de estabelecer relações com setores petistas cujas autocríticas são pouco exigidas. A relação de proximidade de Lula com o último ex-presidenciável do PSOL demonstra essa tática, assim como a recente dinâmica de aproximação destes setores com o PT no movimento estudantil, e este elemento prático também é importante nesse debate.

​É o momento de aprofundar o debate contra Bolsonaro e expor cada vez mais para a população suas mentiras e interesses. O incremento da desorganização no governo provocada pelo Intercept pode representar uma nova abertura para o combate contra a extrema-direita se tivermos a flexibilidade para avançar na desconstrução do falso moralismo dos corruptos que hoje ocupam o poder. A construção de uma alternativa socialista é cada vez mais essencial porque a população exige uma alternativa concreta perante a crise, e esta tarefa só será cumprida se tivermos uma posição independente do regime político colapsado e uma postura aberta para responder os anseios da população em todos os âmbitos, inclusive sobre a corrupção.

​Para isso, é necessário defender um programa que toque em temas importantes como o combate ao enriquecimento ilícito e a lavagem de dinheiro, a fiscalização dura do setor financeiro, dos mecanismos de licitação e da movimentação de grandes quantias de capital, a valorização dos servidores públicos envolvidos nestas tarefas e principalmente a fortalecimento do princípio da publicidade perante qualquer iniciativa ou obra pública, garantindo ferramentas para um maior controle social não somente sobre os poderes executivos e legislativo, mas também sobre o judiciário.


TV Movimento

Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Executiva Nacional do MES/PSOL | 01 nov 2024

Notas para um balanço do 2º turno eleitoral

Documento de balanço eleitoral da Executiva Nacional do MES/PSOL
Notas para um balanço do 2º turno eleitoral
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 54
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional

Autores

Pedro Micussi