A importância da luta contra a corrupção perante os vazamentos da Lava Jato
Sobre as revelações do site The Intercept e o enfrentamento à corrupção.
Os vazamentos das mensagens enviadas entre procuradores da Lava Jato, e mais especificamente entre o promotor Deltan Dallagnol e o então juiz Sérgio Moro, publicados recentemente pelo site de notícias Intercept, movimentaram ainda mais o já conturbado cenário político brasileiro. O escândalo colocou o ministro da Justiça de Bolsonaro em uma situação difícil, aumentou a crise no governo e abriu novamente o polêmico debate sobre o tema da corrupção entre militantes e organizações de esquerda. O material exposto pelo renomado jornalista Glenn Greenwald ainda não foi totalmente publicado, mas comprova a evidente suspeita sobre a relação orgânica entre Moro e os promotores da força-tarefa.
Esta relação não é nenhuma surpresa, já está nítida há bastante tempo. O método de operação da “república de Curitiba” sempre esteve tão evidente que tanto seus apoiadores como seus detratores nunca se preocuparam em separar os interesses do MPF daqueles do juiz. A hipótese de uma relação exclusivamente jurídica entre Dallagnol e Moro nunca foi aventada, apesar do formalismo hipócrita dos dois, assim como nenhum comentarista político jamais negou que havia um nível alto de organicidade entre os investigadores, juízes e desembargadores envolvidos em determinados objetivos comuns. Esta relação também não é novidade para uma militância de direita que sempre viu esta sinergia antijurídica como saída em seu favor perante o problema da falência da Nova República. Os vazamentos realizados até agora provaram algo que tanto os defensores como os detratores da operação já sabiam.
Ainda assim, a comprovação material desta relação é muito importante para a luta política porque, ao se provar empiricamente, desgasta ainda mais o governo Bolsonaro ao inscrever o desvio de Moro no plano jurídico, como um feitiço que se volta contra o feiticeiro. Ao dar publicidade e notoriedade aos planos políticos de Moro e Dallagnol, o vazamento das conversas tira a aura legalista deste grupo político e coloca a luta anticorrupção no país em uma fase menos contraditória, muito mais propícia para a atuação dos socialistas e dos setores progressistas que não estão envolvidos em escândalos de corrupção.
Infelizmente, a defesa firme das investigações sobre empresários e políticos suspeitos ainda é uma posição minoritária entre as organizações de esquerda, o que favorece a estigmatização promovida pela direita, e a publicação destas novas informações serviu mais para a autoproclamação do que para armar a luta política contra o governo. Assim como nos primeiros meses do ano, o nefasto espírito do “eu avisei” tomou conta do debate na vanguarda como instrumento de desforra daqueles que sempre estiveram contra qualquer investigação de corrupção, reunindo o PT e setores aderentes ao petismo em uma posição unilateral cujos furos continuam sem explicação.
É preciso aprofundar este debate que, sem dúvida, foi colocado em novos marcos após a ascensão do governo Bolsonaro e estas últimas revelações. Para isso, é preciso antes romper com a lógica sensacionalista das redes sociais, trocando a argumentação por símbolos gráficos e utilizando da suposta imunidade virtual para realizar provocações e ofensas. Apesar de algumas organizações na esquerda possuírem a tradição da polêmica fraterna, outras menos sérias e seus militantes de base se utilizam do pior que tem para se afirmar nas redes sociais, trocando textos por memes e demonstrando a fragilidade e a superficialidade de certas caracterizações.
Antes de tudo é importante partir do ponto no qual temos maior unidade. O trabalho de Greenwald terá consequências muito positivas para a política brasileira porque atinge não só o ministro Moro e seu falacioso“pacote anticrime”, mas também leva mais uma crise para o já conturbado governo Bolsonaro e pode atrasar o trâmite da Reforma da Previdência. Ao demonstrar empiricamente que a relação entre Moro e os procuradores é iminentemente política, o Intercept dá enorme contribuição para a luta dos trabalhadores contra os ataques do governo e torna ainda mais estratégica a luta anticorrupção ao colocar em cena o fato de que o juiz também é corrupto.
Glenn Greenwald é um jornalista democrático que há anos acompanha a política brasileira. Vivendo há mais de uma década no país, ele e seu companheiro David Miranda (militante do movimento Juntos e hoje deputado federal pelo PSOL/RJ) foram peças-chave durante a campanha em defesa de Edward Snowden, e David chegou inclusive a ser detido pela polícia inglesa em 2013 devido a sua luta pelo direito à informação. Em 2014, o PSOL atuou ativamente na defesa de Snowden através da campanha por sua liberdade, e o Juntos organizou lançamentos do documentário Citizenfour em diversos estados, tendo a atual deputada estadual Luciana Genro (PSOL/RS) como única candidata à presidência que na época defendeu a concessão de asilo para o ativista norte-americano perseguido. Sem nunca ter relativizado o problema da corrupção, Glenn demonstra mais uma vez a qualidade de seu trabalho.
Para Bolsonaro, as revelações do Intercept não poderiam vir em pior momento. Após primeiros meses críticos, o governo ensaiava uma nova tentativa de articulação que fica duramente prejudicada por mais este escândalo. A oposição pode atuar fortemente para derrubar o ministro, complicando bastante a articulação do governo e aumento a percepção de sua incapacidade, por motivos diferentes, tanto perante a classe trabalhadora como perante a burguesia. A escolha de Moro como ministro da Justiça foi um movimento que buscava utilizar o grande prestígio popular do juiz na tentativa de construir uma imagem de combate à corrupção para o novo governo, e pesquisas recentes demonstraram como a popularidade de Moro já era maior que a de Bolsonaro.
Entretanto, Moro acumulou diversas derrotas em seu período no governo como no decreto de flexibilização da compra e porte de armas, no projeto de lei sobre o excludente de ilicitude para defesa de propriedades, na desautorização da nomeação de Ilona Szabó e mais recentemente na disputa pelo COAF, entre outros casos. Ao mesmo tempo, a promessa feita para uma futura vaga no STF (também de forma ilegal) garantiria sua permanência e apoio ao governo, mas as novas revelações complicam esta situação e abrem dúvidas sobre qual será o próximo passo de Bolsonaro. São duas hipóteses: o governo se distancia de Moro e o ministro cai ou o governo dobra a aposta e atua na defesa do ex-juiz. Será um cálculo cada vez mais complexo à medida que novas informações forem reveladas, mas nenhum dos cenários está descartado e nos dois casos acontecerá o aprofundamento da crise no Palácio do Planalto.
A luta anticorrupção entra em um novo patamar porque os vazamentos dão ainda mais provas da corrupção de membros do governo Bolsonaro, já marcado por escândalos como o “caso Queirós” e o “laranjal do PSL”. O desmascaramento público do paladino da justiça cria uma situação na qual os socialistas tem ainda mais condições de assumir a luta anticorrupção perante a população, confiantes de nossas diferenças no campo moral.
Apesar da chuva de provocações, o debate sobre as táticas dos socialistas perante o judiciário está longe do encerramento. No PSOL, esta discussão teve início durante o escândalo do mensalão em 2006, que inclusive provocou a vinda ao partido de setores do PT que se abstiveram perante a Reforma da Previdência aprovada por Lula em 2003. Sempre marcado por lacunas, distorções e falsas polêmicas, este debate volta à cena em uma nova conjuntura que mantém diversos aspectos clássicos das posições divergentes.
A polêmica central continua a mesma, encarar a luta anticorrupção e suas contradições ou negá-la. Aqueles que a encaram enfrentam as contradições próprias dessa posição, atuando na luta para que uma superestrutura contraditória e corrupta por sua própria natureza (o Estado) desenvolva instabilidade interna através do aprofundamento da reivindicação democrática por investigações independentes contra burgueses e outros poderosos. A ideia de que as investigações sempre devem ir até o fim norteia esta posição, promovendo uma política de exigências que nos gabarite perante o povo e impeça o monopólio da luta anticorrupção pela direita. Em um país onde o cárcere é reservado para jovens negros, a exigência de punição para corruptos ricos é essencial no diálogo com a população.
Aqueles que negam esta luta o fazem por dois motivos. Um setor da esquerda combate a luta anticorrupção por simples autodefesa, e estes não são interlocutores deste texto. O setor honestamente contrário à luta anticorrupção (a grande maioria, é importante dizer) tem esta posição porque não aceita as contradições inerentes ao tema, respondendo problemas concretos com propagandismo socialista e deixando certas soluções para um momento pós-capitalista, construindo um refúgio imbatível no qual evitam quaisquer dúvidas e desgastes perante a vanguarda.
Não se trata somente de uma diferença de discurso, mas de abordagens concretas. Enquanto a primeira posição é ativa (defendendo a investigação e punição para corruptos), a segunda é passiva, denunciando a justiça burguesa enquanto desvia do assunto e faz propaganda de um futuro hipotético no qual condições ideais de investigação estarão colocadas. O PSOL sempre se dividiu nessa polêmica onde um lado defende a luta anticorrupção (e se mete em suas contradições) e outro a caracteriza esta pauta como moralista (e nega suas contradições). As duas posições são legítimas, apesar da postura vazia dos provocadores, e na prática levam à distintas localizações na vanguarda.
A posição socialista em defesa da luta anticorrupção sempre teve uma mesma bandeira: desnudar os desvios de recursos públicos (incluindo aqui o grave problema da lavagem de dinheiro) e levar as investigações sobre corruptos até o fim, defendendo-as taticamente sem colocar qualquer confiança no judiciário. Partindo da caracterização da corrupção como mecanismo generalizado no regime capitalista, esta posição apoiou as prisões de corruptos notórios realizada pela Lava Jato, e esta lista não é pequena.
A evolução tática da defesa desta posição teve momentos diversos durante o desenvolvimento dos processos, o que torna capciosa a transposição de declarações passadas para o cenário atual, mas sempre se caracterizou pela coerência e pela tentativa de ampliar o diálogo com a sociedade. O episódio da prisão de Eduardo Cunha, que hoje é tão lembrado, foi composto naquele momento também pela vacilação de muitos setores de esquerda, e eventos como este continuam exemplares para entender e ascensão de Bolsonaro e as dificuldades da afirmação de um projeto independente de esquerda. Enquanto um setor se arriscava nas contradições da vida real, o outro se afastava delas.
A posição de negação da pauta anticorrupção vê esta bandeira como exclusiva da direita devido ao suposto moralismo inerente e a superficialidade que carrega, admitindo somente posições defensivas perante o judiciário e recusando qualquer materialidade nesta área. Esta posição parte de uma premissa verdadeira (a direita realmente se utiliza da luta anticorrupção) para escolher o caminho fácil e negar as possibilidades de disputa que se abrem nesse tema. Na verdade, a questão é mais complexa pois poucos declararam publicamente sua contrariedade à luta anticorrupção e mesmo parlamentares mais próximos ao petismo também fazem esta diferenciação nas tribunas, apesar de criticá-la nos espaços da vanguarda.
É como no já dito “paradoxo das meias”, ilustração na qual alguém procura retirar as meias sem antes tirar os sapatos. Os setores que negam a luta anticorrupção não o fazem publicamente e apoiam investigações de forma abstrata, mas são contra qualquer investigação que se torne concreta porque não toleram as contradições envolvidas. Como um processo jurídico é impossível por fora do judiciário e de seu sistema, a dissonância desta posição fica evidente pois os camaradas defendem investigações mas não aceitam as condições concretas na qual elas ocorrem. Apesar de seu caráter inédito, a Lava Jato também é uma expressão das distorções de um poder judiciário onde a relação de conspiração entre juízes e promotores é a regra, e no afã de se declarar no “lado certo da história” muitos companheiros e companheiras deixam de lado este problema concreto.
Da mesma forma, as lacunas discursivas dos detratores da luta anticorrupção ficam evidentes quando se questiona o destino das investigações em andamento que atingiram figuras como Sérgio Cabral, Eduardo Cunha, Marcelo Odebrecht e tantos outros corruptos notórios. A posição pelo fim da Lava Jato admite a anulação das investigações contra estes sujeitos? Se a resposta for positiva esta esquerda dará um presente para Bolsonaro, que se fortalecerá demonstrando que seus opositores de fato defendem corruptos, e se for negativa ela no mínimo aceitará o mérito das mesmas investigações que denunciam. Quem defende a continuidade da prisão de Cabral é a favor da Lava Jato? É um tema muito mais complexo do que parece e, ao invés de ignorar esta questão, é preciso afirmar uma posição política independente tanto do judiciário como dos setores corruptos, exigindo sempre o desnudamento das relações espúrias do poder.
A vacilação de grande parte da esquerda perante a prisão de Temer demonstrou este problema. O desmascaramento do regime corrupto da Nova República foi seguido pelo atual desmascaramento do governo corrupto de Bolsonaro, mas este argumento imbatível continua pouco utilizado porque não pautamos a luta contra a corrupção no diálogo com os eleitores de Bolsonaro. Disputar uma nova maioria social que se projete para o futuro, ao invés de se voltar para a lembrança de um governo passado, é uma tarefa que necessariamente passa também por posições concretas neste tema.
Lutar para que as investigações de corrupção vão até o fim não significa de forma alguma ignorar riscos ou investir confiança nos mecanismos jurídicos, mas sim ter uma posição de desenvolvimento da indignação popular e da luta social a partir de um polo de esquerda reconhecidamente coerente e ético, tal qual fazemos em outros âmbitos de exigência perante o Estado burguês. Sabemos que a luta anticorrupção é uma pauta democrática impossível de ser solucionada dentro deste Estado, e a coerência em sua defesa pode ser uma grande ferramenta para a construção de uma referência socialista perante uma população que percebe este problema diariamente em seu cotidiano.
Não é uma tática imóvel, e a defesa da liberdade de Lula demonstrou isso. O entendimento de que sua prisão representou uma intervenção direta da Lava Jato nos rumos da eleição presidencial foi um marco para a mudança de tática pois tal intervenção ocorreu nitidamente a serviço de um programa de direita para derrotar o PT nas eleições, acabando por colaborar para a vitória de Bolsonaro ainda que esse efeito não estivesse claro no momento da prisão. A partir dela, e principalmente devido a notável diferença de seu processo com o de outros acusados, a defesa de sua liberdade transformou-se em uma pauta democrática e houve grande consenso sobre ela, apesar das diferentes gradações da adesão ao mecanismo montado pelo PT para capitalizar politicamente o fato. Naquele momento a polêmica era, e continua sendo, se esta defesa democrática deveria significar uma aproximação política com o PT ou não.
O fato é que muitos setores realizaram esta aproximação e, ao se colocar sistematicamente contra as investigações, facilitaram as relações com um partido diretamente interessado no abafamento da luta anticorrupção. Muitos companheiros e companheiras do PSOL hoje estão politicamente mais próximos do PT do que o PSOL jamais esteve, e a tentativa mal sucedida da Plataforma Vamos evidenciou o objetivo de estabelecer relações com setores petistas cujas autocríticas são pouco exigidas. A relação de proximidade de Lula com o último ex-presidenciável do PSOL demonstra essa tática, assim como a recente dinâmica de aproximação destes setores com o PT no movimento estudantil, e este elemento prático também é importante nesse debate.
É o momento de aprofundar o debate contra Bolsonaro e expor cada vez mais para a população suas mentiras e interesses. O incremento da desorganização no governo provocada pelo Intercept pode representar uma nova abertura para o combate contra a extrema-direita se tivermos a flexibilidade para avançar na desconstrução do falso moralismo dos corruptos que hoje ocupam o poder. A construção de uma alternativa socialista é cada vez mais essencial porque a população exige uma alternativa concreta perante a crise, e esta tarefa só será cumprida se tivermos uma posição independente do regime político colapsado e uma postura aberta para responder os anseios da população em todos os âmbitos, inclusive sobre a corrupção.
Para isso, é necessário defender um programa que toque em temas importantes como o combate ao enriquecimento ilícito e a lavagem de dinheiro, a fiscalização dura do setor financeiro, dos mecanismos de licitação e da movimentação de grandes quantias de capital, a valorização dos servidores públicos envolvidos nestas tarefas e principalmente a fortalecimento do princípio da publicidade perante qualquer iniciativa ou obra pública, garantindo ferramentas para um maior controle social não somente sobre os poderes executivos e legislativo, mas também sobre o judiciário.