China 1989: Os manifestantes, o Partido e o massacre de Beijing
Sobre os trinta anos do massacre na Praça da Paz Celestial.
Todos acreditamos saber algo dos acontecimentos que se
sucederam na China, em Beijing, há 30 anos. Falamos habitualmente dos
“eventos”, do que ocorreu na Praça de Tianamen em termos de um relato
simples. Protestos e demandas de reformas democráticas por parte de estudantes
universitários, que o Partido Comunista enfrentou com uma cruel repressão, o
que conduziu ao “massacre de Tiananmen”.
Sabemos también que Beijing apagou de modo efetivo esses dias da história
oficial: ninguém fala deles e não se pode encontrar informações na internet
chinesa “revisada”. Além disso, não será fácil hoje em dia encontrar
uma pessoa jovem que saiba algo sobre este tema. Não se duvida de nenhum destes
fatos. Entretanto, a história do que passou durante esses dias de maio e junho
de 1989 entranha na realidade uma mescla mais complexa de elementos do que
habitualmente se conhece.
Houve muita gente que protestou nas ruas durante esses dias, tanto
universitários como gente de outras categorias sociais. Evidentemente, costuma
se dar a cobertura midiática mais ampla aos “líderes” dos protestos,
inclusive anos depois dos acontecimentos. Alguns deles escaparam da repressão
graças à solidariedade de muitos outros; alguns conseguiram chegar a Hong Kong
e dali voaram para os Estados Unidos.
Alguns dentre eles contaram sua experiência daqueles dias. A vida de alguns
mudou completamente: uns se tornaram milionários, outros se converteram ao
cristianismo. Entretanto, se sabe muito menos das histórias das pessoas que
morreram (trezentas pessoas, de acordo com os números do Partido Comunista, mas
muito mais, na casa dos milhares, de acordo com ativistas, famílias das vítimas
e uma série de organizações humanitárias), ou acerca dos milhares de detidos (o
último em ser liberado, que era então trabalhador de uma fábrica, saiu da
prisão em 2016). Pode-se saber mais sobre muitos dos protagonistas
dosacontecimentos no livro de Louisa Lim,
The People’s Republic
of Amnesia: Tiananmen Revisited.
Nos relatos midiáticos, houve escassas menções dos problemas inerentes que
possuía o “movimento estudantil” (a este respeito, Beijing Coma de Ma Jian constitui um
livro excelente para chegar a entender os diversos erros e limitações que
apresentavam os manifestantes estudantis).
Ainda menos gente sabe —ou, se o sabem, julgam digno de ressaltá-lo
— as particulares
condições econômicas e o “clima” que reinava nas fábricas durante
esses anos, fatores que seguem sendo cruciais para a China, tal como é hoje em
dia. Adicionalmente, a decisão do Partido Comunista de lançar o exército contra
as pessoas que protestavam nas ruas e praças teve lugar num momento dramático
para o PCCh, pois tinha que lidar com as sequelas da Revolução Cultural, que
havia terminado somente uma década antes.
As reformas postas em prática por Deng Xiaoping estavam mudando o país a um
ritmo veloz, o que conduziu, entre outras coisas, a novos critérios para
valorizar a “eficiência” de quem se encontrava em posições de poder,
diferentes dos do passado.
O partido estava mudando de um modelo de “gestão política” do
país para um modelo de “gestão econômica”: este processo causou uma
série de problemas e uma generalização da corrupção, o qual foi uma das muitas
razões dos protestos durante esse período.
Decido a este complexo cenário, “os fatos” em torno da Praça de
Tiananmen ainda são estudados pelos pesquisadores, e às vezes se descobrem
novas revelações.
Entre a multidão de diferentes interpretações, vereditos e
excessivas simplificações comuns, a sequência básica dos acontecimentos segue
sendo a mesma: o massacre cometido contra estudantes, trabalhadores e cidadãos
de Beijing; a dramática decisão do Partido Comunista de proceder a medidas
repressivas, ao final de uma luta interna que marcaria para sempre o rumo do
PCCh; e atrás de tudo isso, a “primavera chinesa”, que fora o
resultado de um período de intensa e vívida atividade cultural e política
durante os anos 80.
O ano 1989 constitui um divisor de águas na recente história da China, pois foi
este o ano no qual o contrato social entre o povo chinês e o Partido Comunista
se viu efetivamente transformado, levando o país à senda de crescimento
econômico que alçou sei status como poder global de grande evergadura hoje.
Começar
pelo final: as repercussões do massacre de Beijing
Em junho de 1998, o presidente norte-americano Bill Clinton viajou à China e
assistiu a uma cerimônia de boas-vindas na Praça de Tiananmen em Beijing. A
mídia estadunidense criticou o presidente,
acusando Clinton de respaldar a tentativa do Partido Comunista de apagar
da memória os acontecimentos de 1989. Efetivamente, o governo Clinton estava
tentando justamente isso, em favor da política de aproximação com a China
depois do embargo que lhe foi imposto depois do massacre.
A este respeito, resulta interessante advertir que, desde 1949, Washington
havia se mostrado sempre muito preocupado pela China durante sua fase “maoísta”. Por óbvio, tratava-se de um receio
ideológico, baseado no temor de que o comunismo se estendesse cada vez mais.
Depois, ante a abertura realizada por Deng Xiaping, os EUA — sobradamente
encantados com a oportunidade de romper a frente comunista e isolar a União
Soviética — começaram um longo processo de aproximação com a China, que
terminou com a entrada de Beijing na OMC em 2001: o ano em que se sucederam os
massivos protestos contra a globalização em Gênova, e também o ano em que a
história dos Estados Unidos estava prestes a mudar para sempre.
Para apoiar a integração da China nas instituições econômicas mundiais, os EUA
ocultaram debaixo do tapete episódios como os de 1989 (contribuindo assim para
realçar o perfil de um país que chegaria a ser visto, hoje em dia, como
“inimigo”). Os
norte-americanos demonstraram estar equivocados muitas vezes em sua avaliação
da probabilidade de que as reformas econômicas trouxessem a democracia de
maneira automática.
Certamente, os acontecimientos de 1989 demonstram justamente o contrário. O que
ocorreu em 4 de junho de 1989 acabou por ser um precedente sancionado do
caminho autoritário empreendido pelo capitalismo global desde então. De acordo
com Naomi Klein, foi precisamente este “choque” o que impulsionou finalmente a
China pelo caminho neoliberal em direção à globalização.
Se voltarmos a 1998, com a visita de Clinton à China e a controvérsia acerca do
lugar que representavam simbolicamente os acontecimientos de 1989, Jay Mathews,
repórter do Washington Post que
estava presente em Beijing em 1989, sentiu a necessidade, dez anos depois dos
fatos que rodearam Tiananmen, de pôr em relevo uma série de fatos cruciais,
começando por um debate sobre um ponto que poderia parecer trivial a princípio,
mas que resulta de fato bastante importante:
a saber, que vincular la palavra “massacre” com “Tiananmen” é um erro,
pois, como escreve Mathews, “pelo que pode se determinar a evidência
disponível, não morreu ninguém nessa noite na Praça de Tiananmen”.
Mathews não levava em consideração o fato de que o exército matou, desde cedo,
gente nessa noite: de acordo com muitos outros testemunhos, jornalistas e
demais, reconstruiu a seguinte sequência de acontecimentos: “Morreram nessa
noite centenas de pessoas, a maioria deles trabalhadores e transeuntes, mas em
lugar distinto e em circunstâncias diferentes. O governo chinês estima que se
produziram trezentos mortos. As estimativas ocidentais são algo mais elevadas.
Muitas vítimas foram tiroteadas baleasas nos arrededores de Changan Jie, a
Avenida da Paz Eterna, como a um quilômetro e meio da praça, e em
enfrentamentos dispersos em outras partes da cidade, onde, é necessário
acrescentar, muitos soldados foram golpeados ou queimados por trabalhadores
irados”.
Deveríamos deicar muito claro este fato, ninguém — à parte alguns teóricos da
superconspiração, ou recorrendo a um termo
melhor, dos negacionistas — não há dúvida alguma do fato de que
ocorreram estes eventos violentos na China em 1989, tanto em Beijing como em
outras cidades.
Não obstante, tal como apontava Mathews em seu artigo, se reconhecemos a
“excessiva simplificação” dos fatos realizada pela mídia, podemos
chegar a uma compreensão do complexo conjunto de circunstâncias do que se
passou em 1989.
“O problema”, escreve Mathews, “não repousa tanto em localizar
os assassinatos no lugar equivocado mas em sugerir que a maioria das vítimas
eram estudantes”. Tal como escriben George Black y Robin Munro en su libro
Black Hands of Beijing: Lives of Defiance in China’s Democracy Movement, “lo
que tuvo lugar fue una matanza, no de estudiantes sino de trabajadores y
residentes corrientes, precisamente el objetivo pretendido por el gobierno
chino”.
Black e Munro apontam ainda assim que a repressão mais violenta ocorreu nos
bairros ocidentais do raio de Beijing, não Praça de Tiananmen. Jonathan Fenby,
historiador e expert em Asia e China, coincide também que ali foi onde se
produziu o verdadeiro “massacre”, contra os trabalhadores e os
residentes locais. Centenas de trabalhadores formam massacrados nas ruas. Esta
é a razão pela qual uma série de especialistas acadêmicos e dissidentes
chineses preferem a expressão “massacre de Beijing” à “massacre
da Praça de Tiananmen”.
O Partido
Como reagiu o Partido Comunista aos crescentes protestos, ocorridas simultaneamente à visita de Mikhail Gorbachev à China no final de maio? Este é um dos aspectos mais interessantes quando se examina a situação em 1989. O Partido Comunista atravessou muitas fases diferentes nesse período, como pode se ver nos sucessivos expurgos e nas lutas internas sem restrições, no estabelecimento de um “Comitê Permanente” paralelo, composto pelos chamados ‘oito imortais’, e até na nomeação, por meios tecnicamente inconstitucionais, de Jiang Zemin, prefeito de Xangai, como novo Secretário do PC.
O fato de que os mortos foram em sua maioria trabalhadores nos permite compreender melhor o modo como o Partido filtrou a informação chegada do exterior, nem tanto e não só da própria Praça de Tiananmen. Em 1989, o Partido já estava há dois anos trabalhando para marginalizar a influência política de Hu Yaobang. Se tratava de um reformista considerado demasiadamente indulgente com os protestos que vinham se convertendo em um traço recorrente na China desde 1986.
Hu morreu em 15 de abril de 1989 de um ataque no coração durante uma reunião do Partido, e o luto por sua morte se converteu em um acontecimento que desencadeou os protestos em grande escala dos estudantes, que ocuparam nesse dia a Praça de Tiananmen.
Deng Xiaoping havia decidido que deveria expurgar Hu, ainda que este último tenha sido escolhido por Deng mesmo como seu sucessor (foi preciso esperar até 2005 para que a imagem de Hu ficasse finalmente reabilitada). O ancião Deng era o grande manipulador dos fios do teatro de marionetes no seio do PCCh, ainda que vivesse já então en sua residência particular, longe de Zhongnanhai, o Kremlin chinês. Estava rodeado, entretanto, de seu pessoal, que podia fornecer-lhe informação instantânea acerca do que se sucedia no país.
A casa do ancião Deng seria cenário da reunião mais importante durante esses frenéticos dias de junho de 1989. Deng, veterano político e reconhecido estrategista, captou de imediato a natureza do problema: se os protestos estudantis se extendiam aos trabalhadores, a situação se tornaria desastrosa para o PCCh.
Deng insistiu repetidamente que deveriam ser feitas reformas, mas que era necessário ter ordem para que isso passasse: a população deveria estar trabalhando, não protestando.
Pensou que tinha conseguido arrumar a situação marginalizando Hu Yaobang, mas seu substituto, Zhao Ziyang, se sentia predisposto às reformas, e isso prontamente se converteu num problema para os “oito imortais”.
Em 2001 foram publicados Os papéis de Tiananmen, [The Tiananmen Papers], um livro que contém material de extraordinária importância para uma melhor compreensão do que estava se passando dentro do PCCh por esses dias.
Como escreveu Marina Miranda num artigo de 2001 publicado em Mondo Cinese, o livro é “uma coleção de documentos neibu, ou seja, altamente confidenciais e cuja circulação ficava restringida ao seio do Partido Comunista Chinês”. Estes documentos de alto secredo deve ter sido vazado por alguém que gozava de um papel privilegiado dentro do mecanismo interno do Partido.
Quem os vazou, supostamente “um alto funcionário do Partido”, decidiu adotar um particular pseudônimo: Zhang Liang. “Esta escolha do pseudônimo”, escreve Miranda, “possui um claro significado político: é o nome de um estrategista falecido no ano 187 a.C., célebre por seu ódio em relação à temível dinastia Qin (221-207 antes de Cristo), cujo tirânico governo se compara frequentemente com o regime do Partido Comunista”. Mao acabou associado também à dinastia Qin, da mesma forma que Xi Jinping em época mais recente. De acordo com um especialista acadêmico em China, Kai Vogelsang, os Qin nao só puseram em prática a primeira ideia do Império Chinês tal como hoje o concebemos habitualmente, mas que criaram também um sistema social caracterizado por un nível extremo de vigilância.
Ao olhar para os acontecimentos de 1989, os documentos dos Tiananmen Papers resultam de crucial importância. São muitos os que debatem sobre sua autenticidade, no entanto. A este respeito, Miranda, junto a outros muitos especialistas acadêmicos na China, sustentam que se pode dar por suoerada a controvérsia, pois temos muito boas razões para confiar na reputação dos especialistas acadêmicos que copiaram e publicaram os documentos: “podemos, em qualquer caso, tomar a reputação acadêmica séria da qual gozam os compiladores do livro como garantia da autenticidade do material: Perry Link, professor de Lengua e Literatura Chinesas na Universidade de Princeton, e Andrew J. Nathan, Professor de Ciência Política na Universidade de Columbia”.
Os anos 80 e os protestos
Ilaria Maria Sala, que estava presente em Beijing em 1989, escrevia
recentemente acerca do espírito dessa “primavera chinesa”: 1989 foi o ponto
culminante de um período enormemente notável no final dos anos 80: “o país
encontrava-se em meio a uma agitação social, política e cultural”, escreve
Sala, “um mundo ébrio de possibilidades: revistas e jornais eram mais
interessantes, com longos artigos de pesquisa publicados em novos meios de
notícias, os chamados Baogao Wenxue (“Reportagens literárias”).”
Em 1988 “estava se produzindo uma profunda reflexão sobre a história
chinesa”, e se colocavam novas perguntas sobre o que verdadeiramente
significavam a identidade e a cultura chinesas. Em seu artigo, Sala recorda o
modo en como descreveu Link, o especialista acadêmico da Universidade de
Princeton que trabalhou nos Tiananmen Papers: “em todos os campos todos os
intelectuais suscitavan estas grandes questões. É um contraste enorme com o que
hoje se sucede”, escreve Sala.
As possibilidades pareciam infinitas. Nos campi “os quadros de anúncios
ofereciam aulas de idiomas e de dança, assim como foros de debate que permitiam
com bastante liberdade aos estudantes uma ampla variedade de temas”.
Ao mesmo tempo, o mundo do trabalho encontrava-se em plena turbulência.
Desde um ponto de vista econômico, o período de reformas criou duas tendências
claras: a proletarização, o período de reformas havia criado duas tendências
claras: a proletarização de enormes massas da população e o surgimento de uma
nova classe de capitalistas.
O processo de proletarização se produziu, em termos gerais, como resultado de
três fatores: a emigração forçosa do campo para as cidades, a derrubada das
empresas de gestão estatal nas cidades e a dissolução dos negócios locais nas
aldeias. O deslocamento rural para as cidades constituiu uma tarefa imensa, que
envolveu cerca de 120 milhões de pessoas desde 1980, em algo que pode ser
sustentado que tenha sido a maior migração da história humana (ver Walker R.
& Buck D., “The Chinese road, Cities in the Transition to Capitalism,” New
Left Review, agosto de 2007).
Um segundo fator responsavel pela criação de uma nova classe salarial
na China foi o desmantelamento das empresas de propiedade estatal (SPE).
As SPE foram o núcleo da industrialização maoísta, e contabilizaram quatro
quintas partes da produção agrícola do país. A maioria destes gigantes se
localizava nas cidades, onde empregavam cerca de 70 milhões de pessoas em 1980.
As primeiras etapas dol desmantelamento se iniciaram em 1988, e o processo
prosseguiu a um ritmo rápido depois da comoção de 1989, momento em que foram
aplicadas drásticas medidas no contexto de uma economia aquecida marcada por
uma elevada inflação.
Foram realizadas outras reformas na década seguinte, confirmando o significado
do que ocorrera em 1989. Em 1994 se incentivou uma maior eficiência mediante
cortes na mão de obra. Esta nova direção da gestão conduziu a demissões
massivas no final dos anos 90, quando o capitalismo chinês experimentou sua
primeira crise de superprodução, a qual marcou uma brusca transição da velha
economia de escassez a uma nova economia de mais-valia. O resultado foi
espectacular: o emprego nas empresas de propiedade estatal ficou reduzido à
metade, à medida que 40 milhões de pessoas encontraram-se sem a tradicional
“tigela de arroz de ferro”, símbolo e garantia de segurança no
emprego nas velhas empresas estatais.
Para este grupo de indivíduos, a maioria de idade mediana, encarava a
perspectiva de converter-se numa sorte de “infraclasse urbana”, tal como
explicava Dorothy Solinger em seu artigo “From Master to Marginal in
Post-Socialist China: The Once-Proletariat as New Excluded Entrepreneur”,
publicado em Social Exclusion and Marginality in Chinese Societies (Hong Kong
Polytechnic University, Center for Social Policy Studies, 2003).
“Ironicamente”, escevia Solinger, “em sua marcha rumo à modernização e à
reforma econômica, ainda quando a direção política tenha dado renda solta e
incentivado às forças de mercado, deteve ao mesmo tempo o pleno desenvolvimento
de alguns dos processos que surgem de modo geral da mercantilização em outras
partes. Assim pois, na China, em lugar da crescente opulência, ol aumento do
nível educativo e o aburguesamento de
uma grande parte da clase trabalhadora, que se produziu em muitas sociedades
junto ao desenvolvimento econômico — e
de maneira muito destacada entre os vizinhos da China no Leste da Ásia, como
Coreia do Sul, Japão e Taiwan— esta informalização da economia urbana representa
uma regressão, não um ascenso para uma parte bastante numerosa da população
urbana”.
Assim, esta população urbana enfrentou o difícil desafio da relocalização
social no campo laboral, levando em conta suas origens culturais: “A
esmagadora maioria deles foi privada de educação formal, obrigados a deixar a
escola e se somar à Revolução Cultural (o que incluia, para a maioria, um
período prolongado no campo), durante uma década mais ou menos depois de 1966,
e vendo-se portanto desprovidos de toda capacitação”.
Estes processos, que chegaram ao auge nos anos 90, foram resultado direto do
que ocorrera na China no final dos 80. Em outubro de 1983, o Diário do Povo
escrevia que os trabalhadores não tinham do que se queixar: a recessão que se
apoderara do mundo capitalista no início dos anos 80 ofereceu a oportunidade às
autoridades chinesas de recordar os trabalhadores do país que estavam melhor do
que já estiveram algum dia, assinalando o elevado desemprego do Ocidente como
prova da “superioridade do socialismo”.
A direção chinesa considerou este o momento de ressaltar seus êxitos: tal como
escreve Jackie Sheehan em seu libro Chinese Workers: A New History (Londres,
NuevaYork, 1998), se tratava de uma situação na qual “alguns trabalhadores
já estavam advertindo os benefícios do aumento salarial e das bonificações, de
acordo com as reformas, e todos esperavam se beneficiar num futuro
próximo”.
Mas estas expectativas acabaram
desmentidas pela realidade, porque estavam começando a aparecer sinais
de patente injustiça: “Havia pouca aceitação entre os trabalhadores a ideia de
que tudo iria bem se ‘uns quantos se fazem rico primeiro’; consideravam isso
simplesmente como uma injustiça distributiva”. Além disso, “muitos
trabalhadores se sentiam profundamente agravados até por diferenças salariais
que eram consideradas muito grandes de acordo com critérios ocidentais aí onde
se advertiam, no entanto, como injustas […]. Um ressentimiento especialmente
agudo foi o que provocou a brecha cada vez maior entre as bonificações pagas
aos trabalhadores e as que recebiam os gestores superiores das empresas, que em
alguns casos podiam ser de vinte a trinta vezes maiores que o pagamento
equivalente aos trabalhadores”.
No entanto, o efeito negativo das reformas sobre as relações entre os
trabalhdores e a gerência logo se
extenderia “para além das disputas sobre o aumento da desigualdade de renda,
por mais séria que esta fosse”.
Numa época na que se exigia mais e mais eficiência aos trabalhadores, durante
as frenéticas horas de maio e junho de 1989, “as deficiências de gestão se
converteram em significativa maçã da discórdia de um modo que nunca antes havia
se sucedido”, escreve Sheehan, uma questão que Deng mesmo fez questão de
repetir. Depois de expressada sua solidariedade aos estudantes, começaram a
bulir as tensões na panela de pressão que era a Chiba em 1989.
A ‘agitação’ e o resultado final
Neste contexto, a presença dos estudantes na Praça de Tiananmen començou a ser
causa de grande preocupação para o Partido Comunista, temeroso de voltar ao
período de domínio das multidões durante os dias da Revolução Cultural.
Deng mesmo expressou a crescente sensação de irritação, afirmando numa reunião do Partido no final de abril que “não
se trata de um movimento estudiantil corrente. Se trata de agitação”.
Ao mesmo termo se recorreria no artigo de opinião do Diário do Povo publicado
em 26 de abril, que condenava os protestos estudiantis com toda nitidez. Foi
este o momento em que se deteriorou sem remédio a relação entre o Partido Comunista e os manifestantes.
Desde esse momento, Deng trabalharia junto ao Comitê Permanente até a dramática
votação sobre a declaração do estado de sítio (que seria revogado apenas em
1990). Em sua crônica desde a China, com
data de 20 de Julho de 1989, publicada em The New York Review of Books,
Roderick MacFarquhar escreveu, “Dividido na cúpula, o Partido Comunista Chinês
já não podia lidar com as múltiplas pressões que sofria e e rachou. Enquanto
que o primeiro-ministro, Li Peng atuou como líder severo a modo de testa-ferro, está claro que as decisões não foram tomadas
em última instância em seu Conselho de Estado, ou o Politburó, nem sequer pelos
cinco homens do Comitê Permanente mas
pela dupla encarregada pela Comissão de
Assuntos Militares, Deng Xiaoping e presidente Yang Shangkun, secundados por um
grupo de idosos revolucionários virulentos”.
O voto para declarar a lei marcial supôs um exemplo claro do funcionamento do
mecanismo que havia sido estabelecido: em essência, Zhao Ziyang era o único a
favor de escutar os estudantes,
inclusive de apoiar algo assim como uma “retratação” do artigo de 26 de
abril (uma idea rechaçada de forma clamorosa por parte de Bo Yibo, um dos “oito
inmortais” e pai de Bo Xilai, de mais recente fama).
Entre 26 e 27 de abril, o Comitê Permanente do Politburo se reuniu para votar a
proposta de declarar o estado de sítio.
Os cinco membros votaram do seguinte modo: Li Peng e Yao Yilin votaram
a favor, Zhao Ziyang votou contra e Qiao Shi se absteve. Nesse momento, a
iniciativa passou para os oito inmortais: já não havia volta.
Tal como se afirma em The Tiananmen Papers, “Na manhã de 18 de maio, os oito
anciãos —Deng Xiaoping, Chen Yun, Li Xiannian, Peng Zhen, Deng Yingchao, Yang
Shangkun, Bo Yibo e Wang Zhen— se reuniram com os membros do Comitê Permanente
do Politburó Li Peng, Qiao Shi, Hu Qili e Yao Yilin, e com os membros da
Comissão de Assuntos Militares, o general Hong Xuezhi, Liu Huaqing e o general
Qin Jiwei, e acordaram formalmente declarar o estado de sítio em Beijing”.
O Secretário Geral Zhao não assistiu a este encontro e pouco depois foi expulso
de seu posto. Antes de que se pusesse sob prisão domiciliar, situação na qual
permaneceria até sua morte em 2005, em 19 de maio, às quatro da manhã, Zhao
compareceu à praça e se mesclou entre os estudantes. Acompanhado pelo Diretor
do Gabinete Geral do Partido, Wen Jiabao (que se desempenharia mais tarde como
primeiro-ministro da República Popular da China entre 2002 e 2012), Zhao disse
aos estudantes: “Chegamos demasiado tarde”.
Antes, em 18 de maio “Li Peng e outros funcionários do gobierno se encontraram
no Grande Salão do Povo com Wang Dan, Wuerkaixi, e outros representantes
estudantis. Li afirmou que ninguém havia declarado nunca que a maioria dos
estudantes tivesse sido vista envolta em agitações, mas que, com excessiva
frequência, gente sem intenção de criar agitação o que de fato conseguira era
provocá-la. Manteve-se firme com respeito à redação do editorial de 26 de abril
e afirmou que o momento atual não era apropiado para debater as duas demandas
dos estudantes. Wang Dan havia declarado que a única maneira de tirar os
estudantes de Tiananmen consistia en reclassificar o movimento estudiantil como
patriótico e retransmitir ao vivo o diálogo entre os estudantes e a direção na
televisão”.
Não havia mais espaço para o compromisso: a decisão de “desalojar a praça” veio
diretamente de Deng Xiaoping e o “massacre de Beijing” teve lugar durante a
noite de 3 a 4 de junho.
Foi um momento no qual se caçava literalmente as pessoas nas ruas da China.
Entretanto, no interior do Partido Comunista tomava forma uma ideia clara: não
se devia ía permitir que o que acabava de passar voltasse a acontecer de novo.