Construir povo, reinventar a política, radicalizar a democracia

Sobre os desafios para uma esquerda contemporânea, criativa e radicalmente propositiva.

Isaque Castella 26 jun 2019, 19:10

Historicamente a política tem sido encarada enquanto o espaço do consenso, da negociação, de uma lógica voltada para os acordos, os pactos e os modelos de conciliação. Temos assistido a uma limitação da atividade política aos esquemas de gestão dos conflitos no interior de um sistema de travas calcado na paralisia, o que expressa imobilismo, falta de criatividade política e o desejo das elites político-econômicas em manter as coisas bem do que jeito que estão, conservando seus privilégios.

1) Por que é preciso reinventar a política?

Assistimos hoje a um grande questionamento à democracia liberal, que, em um contexto de neoliberalismo e globalização, pregou o fim da divisão esquerda vs. direita e o consenso em torno de um centro político, no qual partidos provenientes de lugares diferentes no espectro se revezam no poder apresentando programas completamente similares. Oposição se tornou algo tímido, apenas protocolar, que se confunde com a situação. O pluralismo liberal, como ensina a cientista política belga Chantal Mouffe, é um pluralismo sem antagonismos e que, na verdade, não é plural. Por essa razão, podemos falar que o modelo democrático liberal-estatal-representativo é de baixa intensidade.

Nesse sentido, o filósofo franco-argelino Jacques Rancière diz que “o que faz da política um objeto escandaloso é ela ser a atividade que tem por racionalidade própria a racionalidade do dissenso” (RANCIÈRE, 1995). Por sua vez, o filósofo Vladimir Safatle nos mostra que “ela não é simplesmente a arte da negociação e do consenso, mas a afirmação taxativa daquilo que não estamos dispostos a colocar na balança” (SAFATLE, 2012, p. 15). Tal dimensão implica assumir uma reinvenção do campo do político em relação ao que se tem atualmente, e ela já despontou.

Pode-se falar de uma política antes e de outra depois de movimentos como o dos Indignados na Espanha, o Occupy Wall Street nos Estados Unidos e as jornadas de junho de 2013 no Brasil. Aqui em nosso país as ruas queimaram questionando fortemente a “democracia” atual e o sistema econômico predatório em que vivemos, com o qual os políticos aparecem bastante comprometidos através de seus programas duríssimos de austeridade fiscal, enquanto uma significativa parcela populacional sofre cotidianamente com serviços públicos muito distantes do “Padrão FIFA”. A casta política foi profundamente abalada, se tornando alvo da fúria popular. “Maldita casta! Bendita gente!”, disse o Podemos na Espanha, fruto desses Indignados.

A democracia representativa, o capitalismo e a sua forma política correspondente: o Estado (em uma chave de leitura pachukaniana) arderam em chamas nas principais cidades do Brasil e do mundo e levaram as pessoas a ocuparem o espaço das ruas. Junho de 2013 significou o esgotamento teórico da Nova República, um grande modelo de conciliação “no andar de cima” que se originou com a “redemocratização”, sendo que esta última não ocorreu de fato após a ditadura militar, já que se conservaram as estruturas de violência, de autoritarismo, de esquecimento e de corrupção marcantes desse período. Safatle tem uma frase bastante forte em seu livro “Só mais um esforço” que diz que “o Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência” (SAFATLE, 2017, p. 59). Não podemos falar em ditadura enquanto passado, ela não está superada. Houve redemocratização apenas em potência, em termos aristotélicos.

O que aconteceu nos últimos anos no cenário político é que esses movimentos emergentes promoveram o colapso desse consenso neoliberal no centro, levando a política mais para os extremos. Estamos diante de um populismo de direita que tem aparecido cada vez mais enquanto uma reação a uma incapacidade das esquerdas de compreenderem e ouvirem as forças anti-institucionais que surgiram. Essas forças são ambivalentes, pois “podem romper o pacto frágil que sustenta a democracia liberal de duas maneiras: empurrando a experiência social para uma reconfiguração, tendo em vista o fortalecimento da soberania popular, a incorporação de um poder popular continuamente reprimido, ou produzindo o contrário, ou seja, levando a experiência social a regredir em direção ao esvaziamento da soberania popular e ao fortalecimento de um poder autárquico de comando” (SAFATLE, 2017, p. 117).

 Para que a extrema-direita não conduza tais forças para esse último sentido, é preciso uma esquerda que se radicalize no sentido democrático e paute o primeiro caminho. Com a crise da Nova República, a esquerda, principal e fundamentalmente a que esteve no poder, por não ser capaz de estar conectada às ruas, por defender com unhas e dentes o establishment, inclusive colocando o aparato de segurança nas ruas para repressão de manifestantes, por preferir manter seus acordos espúrios e o grande modelo dos gabinetes de conciliação dos de cima, pela sua prática corrupta, que não inventou a corrupção, mas se beneficiou incomensuravelmente dela e perdeu a sua legitimidade, acabou como algo velho e corroído.

 “Talvez um dia a esquerda brasileira, ou ao menos aquela que operou no governo, entenda que a política é indissociável de julgamentos morais. A razão é relativamente simples: mais do que um embate a respeito da partilha do poder e da riqueza, a política é uma luta a respeito de formas de vida e modos de existência. Ela não é apenas um problema de redistribuição, mas um problema ligado à possibilidade de criar formas de vida novas (…) Entender isso nos pouparia de ouvir aqueles que tratam a corrupção como um ‘fato social’ inerente ao funcionamento do capitalismo. Pois, mais do que um fato social, ela tem uma dimensão irredutível de deliberação individual. A normatividade dos fatos sociais opera, em larga medida, na inconsciência dos sujeitos. No entanto, ninguém ainda mostrou a possibilidade de alguma forma de corrupção inconsciente, feita à revelia dos próprios sujeitos agentes. Por isso, em vez de um discurso vergonhoso e muitas vezes complacente, travestido de análise sociológica, valeria mais a pena apresentar uma dessolidarização absoluta com os responsáveis por uma das mais imperdoáveis práticas criminosas, a saber, a privatização do bem comum e a destruição das possibilidades de criação de adesão social devido à corrupção do Estado” (SAFATLE, 2017, p. 75 e 77).

2) Reinventar a esquerda é uma tarefa-chave para a reinvenção do político

Cabe à esquerda buscar uma nova existência. E existem dois pontos que estão diretamente conectados à reinvenção política, os quais ela precisa considerar em sua própria reinvenção.

 O primeiro é que uma esquerda democrático-radical precisa defender enquanto demanda política o fim da representação, isto é, da mediação política em prol de uma democracia direta. Pode-se pensar um sistema deliberativo para além dos limites do Estado e que não tenha de forma completamente apartada as dimensões da decisão e da ação, reconhecendo, todavia, a necessidade estatal como instância de implementação de medidas econômicas, mas não como um agente isolado. “O Estado pode paulatinamente deixar de ser um Estado cuja função é a deliberação para ser um cuja função central serão o reconhecimento e a implementação de processos decisórios que se dão no seu exterior” (SAFATLE, 2017, p. 128).

 Ele deve passar por uma mutação em relação a suas origens como forma política do capitalismo para exercer uma função transicional de regulação dos processos econômicos até a abolição da sociedade do trabalho, que deve “libertar a atividade humana da sua colonização pelas formas do trabalho produtor de valor” e logo, combater a espoliação (SAFATLE, 2017, p. 130).

O segundo ponto é que, além das demandas ligadas ao sofrimento com a injustiça econômica, existem as demandas de reconhecimento. Esse é um tema central para a filósofa política estadunidense Nancy Fraser. É comum encontrar na esquerda posicionamentos que colocam as lutas em torno das questões econômicas em um lugar de superioridade hierárquica em relação às lutas por reconhecimento. Não existem lutas secundárias ou apartadas, elas devem estar em comunhão, em aliança.

 O maior problema dessa questão reside em não se cair na lógica da equação das diferenças, que Safatle tanto combate. Uma esquerda democrático-radical deve se engajar com a defesa do igualitarismo radical e não uma organização dos corpos políticos em torno de identidades que, em sua ambivalência, estão por trás das políticas discriminatórias, de exclusão e limpeza étnica representadas por uma perspectiva multiculturalista.

Olhar para o outro primeiramente a partir da sua diferença à minha identidade é reificante, pois nasce uma escala hierárquica em torno do que seria aceitável ou não, melhor ou pior. Judith Butler, filósofa estadunidense, tem uma ideia muito interessante de que “devemos considerar uma certa leitura pós-hegeliana da cena do reconhecimento na qual, precisamente, minha própria opacidade para mim mesmo desenvolve minha capacidade em fornecer um certo modo de reconhecimento ao outro. Ela deverá ser, talvez, uma ética baseada em nossa partilhada e invariável cegueira parcial a respeito de nós mesmos” (BUTLER, 2005, p. 41).

Já em “Circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo”, Safatle mostra a potencialidade do conceito de proletário em Marx enquanto força social de des-diferenciação. “A política desconhece indivíduos, e essa talvez seja uma das lições mais atuais de Marx” (SAFATLE, 2016, p. 244). “Trata-se aqui de defender a hipótese de que a política des-identifica os sujeitos de suas diferenças culturais, ela os des-localiza de suas nacionalidades e identidades geográficas, da mesma forma que ela os des-individualiza de seus atributos psicológicos. Por isso, dentro dessa perspectiva, a política é, acima de tudo, uma força de des-diferenciação capaz de abrir aos sujeitos um campo produtivo de indeterminação” (SAFATLE, 2016, p. 244).

 As lutas por reconhecimento exigem para o combate à injustiça um retraimento do Estado e do direito em relação à multiplicidade de formas de vida. É necessária “uma profunda desinstitucionalização através da qual o direito não seja ampliado, mas, de certa forma, atrofiado. Na desinstitucionalização há uma forma de reconhecimento antipredicativo que retrai e desativa o ordenamento jurídico, abrindo a ‘possibilidade de uma existência humana fora do direito’” (SAFATLE, 2016, p. 248). Como mostra o autor, essa vida para além do direito é muito cara à filosofia do italiano Giorgio Agamben e sua ideia de “poder destituinte”.

3) É hora de lutar pela radicalização da democracia

Quando a gente fala em democracias radicais, sempre no plural, resguardando a possibilidade de disputas de sentidos, penso que nos aproximamos de algumas ideias muito importantes como desinstitucionalização, auto-organização, construção de horizontalidades. Como tentei mostrar, a reinvenção da política e da esquerda hoje passam por radicalizar a democracia.

            A política é algo incrível, haja vista o seu significado já trabalhado como possibilidade de criar formas de vida novas, o que tem tudo a ver com reinvenção e também com radicalização democrática. A política diz respeito ao bem viver, de maneira que vai muito além da organização sociopolítica estatal e da sociabilidade atual, que implica em integração com o nosso ambiente, com as diversas formas de vida humana e não humana, e que precisa ter uma preocupação com a aproximação do que poderíamos chamar de justiça.

Se eu fizesse uma pergunta: “O que é justiça?”, certamente a mesma poderia ser respondida de diversas maneiras, como foi na história da filosofia do direito e da filosofia política. Uma resposta interessante é a que seria dada por Jacques Derrida, o filósofo franco-argelino da desconstrução, a saber, justiça é o próprio movimento da desconstrução, que se dirige, por exemplo, a um direito “desconstrutível”, o que é admitido pela democracia. “Não deixa de ser dramático ver membros de certa esquerda citando Tocqueville, certos de que a democracia exige instituições fortes: a democracia não exige um poder instituído forte e não deve depender de instituições que sempre funcionaram mal” (SAFATLE, 2012, p. 51).

 A discussão que envolve direito e justiça sempre foi complexa. Em um colóquio na Cardozo Law School em Nova York em outubro de 1989, Derrida fez uma afirmação interessantíssima: “quero logo reservar a possibilidade de uma Justiça, ou de uma lei, que não apenas exceda ou contradiga o Direito, mas que talvez não tenha relação com o Direito, ou mantenha com ele uma relação tão estranha que pode tanto exigir o Direito quanto excluí-lo” (DERRIDA, 2007, p. 58).

4) Desconstruir as velhas estruturas

Pensar a “desconstrução” é trazer à tona a necessidade de se promover desmontagens em estruturas conceituais edificadas historicamente e em toda a arquitetura de mecanismos que serviram e servem às diversas formas de subjugação. Desconstruir é gerar inversões e deslocamentos, que não assumem necessariamente uma permanência temporal, mas são perpassados pela transitoriedade, pela provisoriedade, pelo movimento, pela dinâmica, pela abertura à constante ressignificação.

Desconstruir é agir tanto no micro, no âmbito do cotidiano, quanto no macro, em relação aos esquemas políticos, econômicos, sociais, culturais mais amplos, sendo tais dimensões interdependentes. Um exemplo para visualizarmos essa ideia seria o de que não se faz política apenas quando se chega a um nível de poder institucionalizado, mas em todo ato, gesto, palavra, relação, interação. Ocupar um espaço em locais historicamente excludentes em relação a determinados grupos é político por si só, e é desconstrução. Só que, muitas vezes, essas circunstâncias dependem de transformações em uma esfera mais geral das sociedades. E é ai que reside a necessidade de pensarmos alternativas macropolíticas para podermos operacionalizar efetivamente a desconstrução.

5) Construir povo

Uma alternativa que me parece fortemente desconstrutora é a da radicalização da democracia, que tem a ver com um processo contínuo de aprofundamento da tradição democrática, calcada nas ideias radicais de liberdade e igualdade, que devem ser ampliadas para as mais amplas esferas possíveis e existentes. Aqui se está sob a perspectiva teórica de Mouffe e Laclau com sua proposta de democracia radical e plural, a qual consiste, simplificadamente, em um novo projeto hegemônico para a esquerda política, baseado na articulação, que se dá discursivamente, de distintas demandas democráticas, com toda a tensão própria desse processo, em uma nova identidade coletiva.

É crucial se compreender a influência pós-estruturalista em tal formulação, o que implica em um abandono do essencialismo, que falava em identidades políticas prévias. Construir uma identidade coletiva é construir um povo, mas que sempre pressupõe um externo, haja vista a impossibilidade de um consenso absoluto. Essas ideias estão presentes no livro “Construir Pueblo. Hegemonía y radicalización de la democracia”, que é um diálogo, uma conversação entre o cientista político madrilenho Íñigo Érrejon e Chantal Mouffe, a cientista belga da democracia radical e plural.

As diferentes lutas contra diferentes subjugações (ligadas à injustiça econômica ou ao reconhecimento) precisam ser articuladas nesse novo projeto hegemônico de esquerda, em que esse campo saia do centro e volte à luta hegemônica, desligando-se do consenso neoliberal. Essa nova identidade a ser construída é a identidade da desconstrução (fruto da construção de um povo, para fazer um jogo de palavras), de uma convivência que é mais efetiva, que reconhece e respeita as diferenças subjetivas, não demolindo a tradição democrática do liberalismo político, mas aprofundando-a.

6) O que é preciso para deter o “neofascismo”?

Um populismo de esquerda, não no sentido tradicional do termo “populismo”, com sua conotação pejorativa. Íñigo mostra como se deve construir um povo de outra forma e a importância de se disputar inclusive a questão nacional, que não pode ser deixada para a direita, como tem ocorrido. Ora, não seria a hora de se pensar uma esquerda que considera o componente nacional (ou melhor, plurinacional), mas sabe da importância do internacional, de estar em uma luta que é maior, e que é democrática, é popular?

E não dá para se fechar os olhos com relação às “paixões”, como coloca Chantal. A direita trabalha com elas o tempo inteiro, enquanto a esquerda não entende que política não é só “racionalidade”. É urgente a necessidade de superação do consenso neoliberal e do enfrentamento do populismo de direita, o que a socialdemocracia, a esquerda da ordem e seu “neoliberalismo com a cara social” não é capaz de oferecer, bem como a ultra-esquerda, em sua ortodoxia.

É de suma importância que se compreenda que as pessoas se organizam em um corpo político não a partir de ideais abstratos, mas de suas experiências de precariedade, e isso é o que as conecta, construindo a identidade a que já me referi, em constante rearticulação, uma identidade que não deve ser agressiva, que nos permita compartilhar o comum e seja propícia a um modelo de convivência mais efetivo, isto é, democrático-radical. Para tanto, considero útil a adoção de um novo léxico político – que se descole do glossário tradicional das esquerdas – apto a corresponder às novas especificidades da luta hegemônica no século XXI.


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