Machado de Assis real contra o embranquecimento da literatura

Para muita gente, é impensável que aquele que é considerado um dos maiores e mais geniais autores da Literatura Brasileira seja também negro.

Iolanda Silva Barbosa 12 jul 2019, 18:33

“Nem todas as crianças vingam”, bate o coração de Candinho ao conseguir, através da captura de Arminda, a quantia necessária para manter o próprio filho. 

Essa é a frase final do conhecido conto “Pai contra mãe”, escrito por Joaquim Maria Machado de Assis e publicado no livro Relíquias de Casa Velha, no ano de 1906. Embora datada de mais de cem anos atrás, essa fala infelizmente parece bem próxima das recentes defesas enviesadas do trabalho infantil: a alguns, é garantida a infância e a vida, a outros, é negada a dignidade humana. 

No conto de Machado de Assis, Candinho é um homem pobre que busca meios de criar o filho. Para isso, passa a trabalhar com a captura dos escravizados que fugiam. Na situação em que, por falta de recursos, chega a aceitar dar o filho à adoção, encontra Arminda, escravizada que fugira e cuja captura valia grande recompensa.  

O valor da recompensa, assim como o principal motivo da fuga de Arminda, se devia ao fato de ela estar grávida. Isso, no entanto, não é impeditivo para que Candinho a capture e a entregue ao seu senhor, ainda que sob rogativas: “-Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser.” 

Por fim, quando entregue ao seu senhor, Arminda aborta espontaneamente o filho que esperava. A fala de Candinho, com a qual este texto se inicia, busca aliviar qualquer possível sentimento de culpa pela perda da criança- é o filho de Candinho a vida que importa e, no caso, a criança que vingou. É o Brasil escravocrata em que vidas negras são, como canta Elza Soares, “a carne mais barata”, as primeiras a serem “sacrificadas”. 

Nesse sentido, é inevitável lembrar e questionar a postura dos que insistem em dizer que Machado de Assis era aburguesado, alienado e que negava suas origens, não se posicionando de forma mais veemente diante do contexto político e social em que vivia, em especial no que diz respeito à escravização. “Pai contra mãe”, no entanto, é uma das demonstrações do contrário.

A objetividade e o distanciamento com que o narrador desenvolve a trama de Candinho e Arminda é incômoda justamente por expor, sem eufemismos, a realidade. O mesmo ocorre no início do conto, em que são descritos alguns dos instrumentos de prisão e tortura utilizados contra os escravizados, confrontando o leitor com a dinâmica escravocrata, tão naturalizada à sua época.

Como então acusar Machado de Assis de alienação e ignorar o tom de denúncia em sua obra? 

Essa postura, de denuncismos e cobranças, é mais forte no caso do Bruxo do Cosme Velho se levarmos em conta a sua ascendência negra- ascendência essa que, vale dizer, muitas vezes foi entendida apenas em seu aspecto genotípico, mas que não se estende ao questionamento da imagem embranquecida de Machado que foi apresentada e cristalizada no imaginário social comum.

A imagem de um Machado de Assis negro, criada pela Faculdade Zumbi dos Palmares e chamada de Ação ‘Machado de Assis Real’ no início desse ano, chocou muita gente e gerou polêmica nas redes. Para muita gente, é impensável que aquele que é considerado um dos maiores e mais geniais autores da Literatura Brasileira seja também negro.

Esse fenômeno de estranheza e polêmica tem se repetido com frequência cada vez maior, na medida em que a luta da negritude avança e confronta a tentativa de apagamento e embranquecimento de personalidades negras. É a reação de uma sociedade acostumada à uma literatura sobre o negro, nos moldes de uma estética branca dominante, que estabelece narrativas como a da coisificação do negro ou a imagem de um negro que se enobrece por seu embranquecimento. 

O conto aqui retomado inicia-se com a afirmação de que “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos…”. O que se sabe, no entanto, é que a abolição da escravatura não levou consigo todos os instrumentos que colaboravam com sua manutenção, deixando suas marcas e cicatrizes em todas as instituições sociais, inclusive na Literatura.

Embora hoje já não exista o “ferro ao pescoço” ou a máscara de folha-de-flandres descritas por Machado, a branquitude reinventa suas tentativas de aprisionar a negritude- seja excluindo do cânone literário grandes escritores negros, seja tentando deslegitimar ou embranquecer os que nele foram incluídos, como é o caso de Machado de Assis.

Resta-nos, portanto, entender a Literatura como um dos campos de combate e enfrentamento ao racismo e fazer coro à Conceição Evaristo, escritora negra que cravou seu espaço na literatura: “…Em todas as áreas, os poucos negros que conseguem uma ascensão social são vistos como histórias de exceção. Mas as histórias de exceção devem ser lidas para se pensar a regra. Que regras são essas da sociedade brasileira para vermos uma mulher virar um expoente no campo da literatura só aos 71 anos?”

Machado de Assis e Conceição Evaristo não devem ser exceção. Em uma sociedade em que infelizmente ainda hoje “nem todas as crianças vingam” e nem todas as vidas importam, especialmente as negras, é preciso dizer que nem todo grande escritor é branco.


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