A literatura de um mundo em chamas

Nesse mundo em chamas, a Literatura será uma vela grandiosa acesa nos intentos revolucionários.

Iolanda Silva Barbosa 28 out 2019, 19:17

“Sábios em vão
tentarão decifrar
o eco de antigas palavras
fragmentos de cartas, poemas
mentiras, retratos
vestígios de estranha civilização…”

Metafórica e literalmente, para o bem e para o mal, nos vemos diante de um mundo em chamas. Chamas de um fogo cada vez mais intenso, de alcance cada vez maior, tanto no que pode transformar quanto no que pode destruir.

São prédios, museus, florestas e ruas a arderem diante de nossos olhos. Em alguns casos, como no de nossos bravos companheiros chilenos e equatorianos, é este o fogo da necessária revolta. Em outros casos, é este o fogo da ruína, que consome muito do que possuímos de mais preciso: nossas riquezas naturais, nossa história, nossa língua, nossa cultura. Infelizmente, esse segundo caso tem sido o mais comum no Brasil.

Se buscarmos as primeiras faíscas nesse rastilho de pólvora, relembramos, por exemplo, o incêndio no Museu da Língua Portuguesa, no final de 2015. Ano passado, foi a vez do nosso Museu Nacional no Rio de Janeiro perder importantíssima parte de nossos registros históricos.

Além de nossa cultura, o fogo notoriamente consumiu nossas florestas nesse ano, graças à política incendiária e destruidora do governo Bolsonaro. Somos um país que arde, consumindo o futuro de gerações e que agora vê os desastres se estendendo até mesmo às nossas águas.

Nesse mundo em combustão, imerso em crises, são muitas as tentativas de reduzir nossa história e cultura a cinzas. Mas afinal, o que a Literatura, em seu caráter essencialmente incendiário- seja pelo papel de que são feitos os livros, seja pelo conteúdo que estes guardam- tem a dizer sobre esse barril de pólvora?

Entre suas múltiplas e diversas possibilidades, sabemos que a Literatura pode ser o testemunho de seu tempo, sobretudo em seu aspecto social, como dispositivo que permite a reflexão e a crítica. Mas pode, além disso, pensar os contornos e expressões catastróficas que a sociedade pode assumir, em futuro próximo ou distante. É o que chamamos de distopias, narrativas cuja popularidade tem aumentado de forma relevante nos últimos tempos.

Ao que parece, tornou-se muito mais difícil falar sobre utopias nesses tempos incendiários, e nos resignamos a cogitar o pior quanto ao nosso futuro. Afinal, a utopia se dá no sentido do positivo, do emancipatório, de sonhos que já há algum tempo foram infelizmente esquecidos ou abandonados por muitos.

Nesse cenário, com as demonstrações de falência e deturpação de muitas promessas relacionadas ao avanço da ciência e da liberdade no século XX[1], as distopias surgiram como resposta aos ímpetos cada vez mais tecnicistas e imperialistas do capitalismo. Erich Fromm, no posfácio à uma das edições de 1984, defende que elas são, na verdade, uma expressão da desesperança e da impotência humana na modernidade.

Ao mesmo tempo, estudiosos desse gênero entendem a importância das obras distópicas como forma de alerta. Seriam, utilizando o termo empregado por Michael Lowy em sua análise das teses de Walter Benjamim, um aviso de incêndio: “um sino que repica e busca chamar a atenção sobre os perigos iminentes que os ameaçam, sobre as novas catástrofes que se perfilam no horizonte.”[2]

Entre as distopias, uma das mais célebres é Fahrenheit 451, escrita pelo estadunidense Ray Bradbury e publicada em 1953. A obra segue os passos do bombeiro Guy Montag, cuja profissão consiste em defender as pessoas “daqueles que querem deixar todo mundo infeliz com teorias e pensamentos contraditórios”, o que, segundo o slogan da corporação, significa reduzir os livros às cinzas, afinal, “Os que não constroem precisam queimar.”

Na sociedade de Fahrenheit, ler tornou-se de fato um crime, embora evidencie-se que “a coisa não veio do governo. Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida”. Na obra, a criminalização da leitura se dá por meio de uma escalada tecnicista e da crescente desvalorização da cultura: “a escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas”.

Na trama, Montag, embora bombeiro, começa a se questionar quanto ao seu próprio ofício. É a aparição de uma jovem, Clarisse, que o desperta da cega empreitada incendiária: desinteressada pelas formas de entretenimento comuns, a menina se dedica à percepção de singelezas, da natureza, do mundo e das pessoas. Além dela, Montag também se vê sensibilizado por uma senhora que, uma vez descoberta pelos bombeiros, prefere queimar junto aos seus livros do que renunciar a eles. Montag passa então a roubar livros e a lê-los, sentindo de forma quase imediata os seus efeitos.

A criminalização da leitura e a existência dos “bombeiros” são, no entanto, apenas uma das características de uma sociedade totalmente adoentada apresentada no livro, em que a conversa e a ação de pensar, por exemplo, foram desnaturalizadas. As relações humanas são cada vez mais vazias, substituídas, por exemplo, por aparelhos eletrônicos (“conchas”). A ideia de família se reduz a comunicações por teleconferência. O índice de suicídios e assassinatos são elevadíssimos e ocorrem até mesmo entre crianças, cuja criação é delegada às “escolas” cada vez mais cedo. Nessa sociedade, há uma perda total da afetividade e uma normalização da violência: a queima de livros é apenas mais um dos espetáculos: “Queimar era um prazer. Era um prazer especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas e alteradas…para derrubar os farrapos e as ruínas carbonizadas da história.”

Tudo isso faz parte, em verdade, de reflexões e críticas que Gilles Lipovetsky denomina hipermodernidade, que por sua vez se baseia em fenômenos como o hipercapitalismo, a hipertecnização, o hiperconsumo e o hiperindividualismo de nossos tempos.[3]

Em sua trajetória de tomada de consciência, Montag se alia a Faber, um ex-professor que tenta sobreviver em uma sociedade em que até mesmo o termo “intelectual” se tornou um palavrão. Embora essencialmente subversivo, Faber se reconhece acomodado e assume a culpa por sua própria condição: “Eu vi o rumo que as coisas estavam tomando, muito tempo atrás. Eu não disse nada. Sou um dos inocentes que poderiam ter elevado a voz quando ninguém atentava para os ‘culpados’, mas não falei, e com isso, eu mesmo me tornei um dos culpados. E quando finalmente montaram a estrutura para queimar os livros, usando os bombeiros, reclamei algumas vezes e desisti”. Fica evidente que Faber reconhece a fundamental importância dos intelectuais na defesa da cultura e contra os retrocessos. Ao encontrar Montag, ele assume uma postura mais combativa e se torna para ele uma espécie de mentor.

Como forma de resistência e de preservação dos bens literários, existem nessa sociedade ainda diversos outros intelectuais que se tornaram repositórios das obras que leram. Segundo eles, “O melhor é guarda-los [os livros] na cabeça, onde ninguém virá procurá-los. Somos todos fragmentos e obras de história, literatura e direito internacional…vagabundos por fora, bibliotecas por dentro”. Ainda assim, creem ser importante se convencerem de que não são superiores a ninguém por isso: “não estamos no controle, somos a minoria excêntrica que clama no deserto”, a esperar o momento em que a Literatura possa outra vez ir a campo aberto.

As distopias não são realidade totalmente desvinculadas da nossa, mas sim constituídas a partir dela. Não são anti-realidades, mas sim realidades distorcidas, exageradas. Nesse sentido, sabemos que a Literatura sempre representou uma ameaça. Assim como em Fahrenheit, queimar livros foi uma prática utilizada em alguns momentos históricos, sempre como sintoma de um período de retrocessos. É o que ocorreu durante a Inquisição (em que, além das “bruxas”, se queimava os livros não prescritos pelo Index Librorum Prohibitorum) e também como recurso de nazistas, em seus Bücherverbrennung.

Se analisarmos cada uma das principais obras distópicas, veremos que baseiam-se sempre, de alguma forma, na relação entre sujeito, poder e cultura.  Afinal, é esta uma das formas de se pensar os efeitos da perda do sentido no campo da cultura, da política, da arte e da educação, considerados por Jean-FrançoisMattéi como “efeitos da barbárie”.[4]

O que se torna cada vez mais evidente é que contra estes efeitos a Literatura é arma imprescindível. É necessário compreender, portanto, que ela pode e deve ser assumida como combustível, no plano das ideias, para as revoluções que impedem a barbárie, antes que ela mesma seja reduzida a cinzas.

E, ainda que, mesmo com todos os nossos esforços, vejamos muitas de nossas riquezas reduzidas a cinzas, a lama ou a óleo, em um mundo que talvez se torne, nas palavras de Chico Buarque, “alguma cidade submersa”, escafandristas explorarão nossos vestígios e neles encontrarão registros, em “eco de antigas palavras/fragmentos de cartas, poemas”, de que houveram também muitos que lutaram e resistiram a impedir a barbárie.

A proclamação da personagem que em Fahrenheit é incendiada junto aos seus livros, retomando a fala de Hugh Latimer para Nicolas Riddley (quando queimados por heresia em 1555), é fundamental: “Aja como homem, mestre Ridley; havemos hoje de acender uma vela tão grande na Inglaterra, com a graça de Deus, que tenho fé que jamais se apagará.”.

Nesse mundo em chamas, a Literatura será uma vela grandiosa acesa nos intentos revolucionários, a iluminar as trevas e os caminhos que nos distanciam da barbárie distópica, nos aproximando da necessária utopia.


[1] Vide estudos, como “As cegueiras da razão” (In: Vestígios: escritos de filosofia e crítica social. São Paulo: Palas Athena, 1998), da professora Olgária Matos.

[2] Aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de História”. São Paulo: Boitempo, 2005.

[3] A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

[4] A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo: Editora UNESP, 2002.


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