Líbano: uma mobilização histórica do povo contra o governo

Jornalistas analisam manifestações no Líbano.

No domingo, 20 de outubro de 2019, na Praça Riad El Solh, no centro da cidade de Beirute (Líbano), ocorreram manifestações importantes e inéditas a partir da instauração de um novo imposto sobre o uso de aplicativos de mensagens. Na segunda-feira, o governo anunciou uma série de medidas para acalmar a resposta popular.

Quando indaga por que está hoje na rua, Ziad fica estupefata, como se não necessitasse palavras para explicar o evidente: “Me dê uma razão, uma só razão, para que eu não esteja na rua hoje?”. Como Ziad, eram centenas de milhares de libaneses, manifestando-se em 20 de outubro, em todo o país, para expressar sua cólera contra o governo pelo quarto dia consecutivo.

O anúncio em 17 de outubro de um novo imposto sobre o uso de aplicativos de mensagens instantâneas, como WhatsApp ou Skype, acendeu o fogo alguns dias depois; nesta ocasião, autênticos incêndios de bosques, ante os quais os poderes públicos se viram impotentes. A medida, muito mal acolhida considerando as já muito elevadas tarifas telefônicas no país, cancelada pela multidão, deu lugar a um movimento mais amplo de resposta que denunciava a incapacidade do governo frente a degradação da conjuntura econômica, o custo de vida e a corrupção endêmica do país.

A onda alcançou uma amplitude inédita desde 2005. Então, cerca de um milhão de pessoas pisaram nas ruas para exigir o fim da ocupação síria. “Nem sequer as manifestações pela gestão do lixo de Beirute e na região do monte Líbano, em 2015, conseguiram mobilizar tantas pessoas”, assinala Ali Mourad, professor de Direito Público na Universidade Árabe de Beirute. Frente à pressão popular, quatro ministros anunciaram sua demissão no sábado à tarde. Por sua vez, o primeiro-ministro Saad Hariri, anunciou na segunda-feira uma série de medidas para responder ao movimento de revolta: redução da metade dos salários dos responsáveis oficiais; impostos de mais de três bilhões de dólares aos bancos libaneses; privatização do setor de telecomunicações e reforma do setor elétrico.

As duas primeiras jornadas de manifestações estiveram recheadas de tensão. Dois trabalhadores sírios morreram claramente asfixiados num incêndio na quinta-feira em Beirute, segundo a Cruz Vermelha libanesa, que igualmente registrou cerca de uma centena de feridos em todo o território durante as primeiras horas de manifestações. Num comunicado publicado no sábado, a organização de defesa dos direitos humanos, Humans Rights Watch denunciou o emprego “excessivo” de gases lacrimogêneos pelas forças de segurança. Um comitê de advogados voluntários para a defesa dos direitos humanos dos manifestantes registrou 132 detidos na quinta e na sexta-feira, e todos eles foram postos em liberdade no sábado.

Por sua vez, as forças da ordem indicam cerca de 60 feridos entre suas fileiras desde a primeira noite de tensão da quinta-feira. Um tiroteio, por sua vez, deixou dois mortos em Tripoli, quando os guardas de segurança de um antigo deputado abriram fogo, quando este tratava de unir-se às manifestações.

Entretanto, as tensões se reduziram claramente neste fim de semana e o ambiente na rua era festivo e pacífico. Em Beirute, muitas famílias e jovens, de todas as classes sócias, confissões religiosas e tendências políticas, se juntaram na praça dos Mártires e na praça Riad El Solh, no centro da cidade, onde as bandeiras libanesas ondulavam ao ritmo de cantos revolucionários e do hino nacional: “Todos juntos pela pátria”.

A criatividade e o humor estão presentes. Num cartaz assinalando a direção do Serrallo, sede do Parlamento libanês, podia-se ler: “Endereço Conselho de Ladrões”. Entre os slogans gritados pelos manifestantes se ouviam os das Primaveras Árabes: “Revolução!”, “o povo quer a queda do regime”. Num âmbito mais concretamente libanês podia-se igualmente ouvir: “Cristãos, muçulmanos, contra os políticos”. Uma prova de união nacional significativa num país que conheceu 15 anos de guerra civil interconfessional (1975-1990). “Se não estivesse uniformizado, estaria com eles”, sussurra discretamente um militar participante no controle das manifestações. Cenas similares tiveram lugar por todo o país e, sobretudo, nas grandes cidades como Tiro, Nabatieh ou Tripoli, a segunda cidade do país, de maioria muçulmana sunita, no norte, onde se mobilizou um DJ no sábado à noite para o evento.

Não é a primeira vez que o país se vê sacudido por ondas de manifestações; mas para Joey Ayoub, doutorando na Universidade de Edimburgo e membro da organização das manifestações de 2015, estas se distinguem por seu caráter espontâneo. “Em 2015, eram antes de tudo grupos da sociedade civil quem organizaram as manifestações. Hoje, estão na rua mas não como organizadores. O movimento partiu realmente do povo, apesar das tentativas de recuperação por alguns partidos”, explica.

Uma espontaneidade que reúne na mesma multidão os jovens motoboys dos bairros desfavorecidos das periferias do sul de Beirute, de maioria xiita, e manifestantes dos bairros burgueses cristãos do leste da capital. Uma grande divergência que foi delicada no passado, fazendo difícil a concepção de uma identidade comum no seio dos protestos anteriores. “Hoje, a solidariedade entre as comunidades é mais forte”, assevera Joey Ayoub.

Outro traço inédito a destacar deste movimento de protesto: sua descentralização. “Abarca todo o país, enquanto que habitualmente os protestos se limitavam fundamentalmente à capital”, explica o professor de Direito Público, Ali Mourad. “Rompeu-se um tabu, sobretudo fora de Beirute, na relação de vários grandes partidos xiitas Amal e Hezbollah com seus seguidores, que não duvidam e manifestá-lo”, acrescenta o especialista.

Entretanto, tal descentralização não ocorre sem enfrentamentos. Sobretudo em Tiro, cidade dominada por muçulmanos xiitas, ao sul do Líbano, milícias armadas trataram de se infiltrar entre os manifestantes, dando lugar a enfrentamentos. O mesmo cenário ocorre em Nabatieh, feudo do partido Amal: “Não queríamos que as milícias do partido saíssem às ruas; não queríamos lhes dever nada”, critica Hussein, um jovem manifestante sem filiação política.

“As mentalidades estão a ponto de mudar, mas denotamos ainda uma certa reticência em incluir o Hezbollar na denúncia global das elites políticas”, matiza Joey Ayoub. “Com efeito, o “partido de Deus” (considerado pelos EUA como uma organização terrorista) goza de uma aura particular, além das redes clientelares que nutre, já que encarna a resistência contra Israel e a defesa da Síria pelo envio de combatentes”. Prova disso é a reação de Mohamed, 18 anos e habitante de um bairro periférico ao sul, ao discurso do secretário-geral do partido, Hassan Nasrallah, retransmitido pela televisão no sábado: “sempre fala de forma clara, ele é o único que não é corrupto”. Mas na rua, os slogans que acusam Hassan Nasrallah de corrupção são cada vez mais numerosos.

Pode o caos ser pior do que aquilo que vivemos?

Anos de estancamento econômico e de imobilismo político contribuíram para nutrir esta exasperação popular. Desde o início do conflito sírio em 2011, o país experimenta um crescimento débil. Em 2018, não superou 0,2%, contra quase 9% antes do início do conflito. A guerra se traduziu sobretudo pela chegada ao Líbano de mais de um milhão de refugiados a seu território e pelo fechamento de uma parte das rotas terrestres para seus sócios comerciais regionais.

O esgotamento do modelo rentista da economia libanesa desde a pós-guerra civil, aportado pelos serviços e o setor bancário, igualmente contribuiu para deteriorar a conjuntura. A balança de pagamentos mostrava assim um déficit acumulado de 3 bilhões de dólares no final de abril, o que prova simultaneamente a debilidade das exportações de bens e serviços e a desaceleração dos fluxos de capitais da diáspora libanesa para o país. Esta situação implica um risco de médio-prazo desvalorização da libra libanesa, chegando a provocar uma penúria de dólares no final de setembro nos mercados cambiais e adicionando inquietude aos libaneses quanto à situação econômica do país.

Frente ao marasmo, os credores de fundos internacionais se comprometeram na conferência CEDRO, que ocorreu em Paris em abril de 2018, a distribuir uma ajuda de 11 bilhões de dólares na forma de doações e empréstimos, tendo como contrapartida reformas orçamentárias. O governo trata hoje de encher o caixa para equilibrar o déficit público. A tentativa do governo libanês de impor novos impostos, entre eles o referido às chamadas mediante aplicativos de mensagem instantânea, inscreve-se no marco do exame de um novo projeto de austeridade para 2020, seguindo o de 2019, que já previa numerosas medidas fiscais.

Esta tentativa de reequilíbrio, através de impostos indiretos, se faz portanto em detrimento das classes médias e populares, já concretamente afetadas pela crise econômica. “Este sistema de imposição regressiva afeta de forma desproporcional os mais desprovidos e favores os segmentos mais acomodados da sociedade”, observa Sami Atallah, diretor do Centro Libanês de Estudos Políticos (LCPS). Por outro lado, “as categorias de impostos que afetam mais as classes médias e populares, como o imposto de renda e os impostos sobre o consumo, cresceram com maior rapidez entre 2008 e 2016 que aqueles que atingem as rendas elevadas como o dos lucros das empresas, os ganhos de capital e dividendos, e os tributos sobre a propriedade”, afirma.

Por outro lado, apesar do esforço fiscal pedido, os serviços públicos estão hoje longe de estar em dia, como recordam alguns manifestantes com amargura: “Sabe o qué viver aqui? Nada funciona: nem os hospitais, nem as escolas, nem a eletricidade. Temos de pagar tudo isso com o nosso bolso, já não podemos mais”, se desespera um manifestante. Desde o fim da guerra civil em 2005, por exemplo, o Líbano não consegue assegura a produção necessária de corrente elétrica para fazer frente a demanda do país, obrigando que particulares e empresas tenham de recorrer, a preços proibitivos, a geradores proporcionados por empresas privadas.

“Os contribuintes também têm a impressão de que o dinheiro desses impostos é roubado pelo Estado, mediante a corrupção”, diz Sami Atallah. Assim em 2018, o Líbano ocupava a 138ª posição sobre 180 na classificação dos países mais corruptos, de acordo com o organismo Transparency International. Como ocorreu quando as manifestações de 2015 na crise do lixo, a corrupção se situa no núcleo das queixas dos manifestantes. “Os políticos veem o Estado como uma grande torta e repartem seus pedaços”, declara Rita, professora.

Uma disfunção inerente ao sistema de governação específica do Líbano: uma democracia consensuada, na qual cada comunidade religiosa tem assegurada uma representação política. “O Estado é reduzido a este equilíbrio entre as diferentes facções confessionais que redistribuem os ingressos. O confessionalismo e o clientelismo funcionam a uníssono”, afirma Joey Ayoub. Um modelo que hoje perde impulso, dado que a capacidade de redistribuição das diversas facções políticas está parcialmente esgotada pela degradação da conjuntura. As expectativas sobre o curso que deve se dar ao movimento diferem, ainda que o rechaço à classe política seja unânime. Apesar das palavras de ordem reclamando a demissão do governo, alguns ainda preferem considerar estas demandas como uma vigilância em relação aos representantes políticos. O plano apresentado na segunda-feira (21/10) pelo primeiro-ministro Saad Hariri será decisivo para medir o tom dos próximos dias e definir as derivações do movimento.

Em qualquer caso, os libaneses mobilizados não parecem apenas receptivos aos discursos que jogam com o medo ao caos como única alternativa. “Imagine uma situação sem governo, sem segurança, sem dinheiro nos bancos nem no mercado, sem farinha nem petróleo… Aonde vai o país?”, se perguntou o ministro de Assuntos Exteriores, Gebran Bassil, numa coletiva de imprensa na sexta-feira (18/10). Uma situação que não aterra Mireille, como imagem de muitos cidadãos: “Pode o caos ser pior do que aquilo que vivemos?”.

FONTE: https://www.mediapart.fr/journal/international/211019/au-liban-une-mobilisation-historique-du-peuple-contre-le-gouvernement


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