Como salvar os multimilionários

Sobre o englobamento dos rendimentos prediais.

Francisco Louçã 5 dez 2019, 13:35

A mera hipótese de englobamento dos rendimentos prediais tem provocado sobressalto e gritos de alarme entre alguns proprietários, agências financeiras e advogados dedicados à magia fiscal, e esta turba já é uma coligação poderosa. É provavelmente tudo um boato, e o Governo pode vir a recuar num ápice, mas os situacionistas têm razão: estão a defender um privilégio e para tanto o melhor é assanharem-se. A sua força, aliás, mede-se facilmente, é a regra dos 28%, ou seja, um proprietário afortunado paga menos IRS sobre os seus rendimentos do que um trabalhador com um salário razoável, cuja taxa de IRS será superior. Considerando a vantagem de quem vive de rendimentos prediais elevados, isto significa uma distorção e desigualdade fiscal que favorece a propriedade contra o trabalho. Péssima escolha para uma economia em que é preciso investir, trabalhar e inovar.

Um pouco mais de justiça

A aplicação do comando constitucional do englobamento seria por isso duplamente vantajosa. Em primeiro lugar, é a Constituição, o que já não é de menos (um dia se discutirá esta leveza que permite que algumas normas constitucionais sejam interpretadas como imperativas e outras como poesia parnasiana, como esta do englobamento, ou a do ensino tendencialmente gratuito). Em segundo lugar, introduz uma correção de justiça fiscal, que se chama progressividade e é o princípio constitutivo do IRS em Portugal. Ou seja, haverá quem pague menos, tendo rendimentos prediais baixos, e quem pague mais, tendo rendimentos elevados.

Presumo que, mesmo que um dia seja aceite esta velha reivindicação da esquerda para o englobamento dos rendimentos prediais elevados, e é difícil que isso aconteça com este Governo, ainda maior será a resistência a alargar o princípio onde ele se tornaria mais relevante, os rendimentos de capital. E, então isso nem pensar, o Governo não cogita um imposto sobre as fortunas, o mais tremendo dos crimes de lesa-majestade. Mas é isso mesmo que se discute em todo o lado.

Fico a contar os cêntimos

A mais recente investida para relançar a proposta de imposto sobre as fortunas foi de Thomas Piketty, com o seu estudo sobre “o capital do século XXI”. A sua teoria é simples: ao longo do século XX e XXI, o que mais acentuou a desigualdade foi o facto de os rendimentos do capital crescerem a uma taxa superior à das economias desenvolvidas no seu todo. Deste modo, o capital acumulou uma vantagem, que se reproduz socialmente e é improdutiva, pelo que a resposta deve ser um imposto sobre as fortunas para reequilibrar a sociedade.

O tema ganhou relevo nas eleições norte-americanas, desde a campanha anterior de Bernie Sanders. Dois dos coautores de Piketty elaboraram a proposta de Sanders, que defende a aplicação de uma taxa de 5% para fortunas acima de mil milhões de dólares e de 8% para as que estão acima de 10 mil milhões. Elizabeth Warren, outra candidata às primárias democratas, apresentou um pacote de medidas fiscais incluindo uma taxa de 3% para fortunas acima de mil milhões, além de uma contribuição de 15% para a Segurança Social para rendimentos acima de 250 milhões de dólares.

Vários multimilionários protestaram veementemente. Bill Gates, o segundo homem mais rico do planeta, que tem 106,8 mil milhões de dólares, veio dizer que teria de passar a contar os cêntimos que sobrariam (os tais 92%, na pior das hipóteses). Jamie Dimon, chefe do JP Morgan Chase, um dos maiores bancos do mundo e que ganhou 31 milhões de dólares em bónus no ano passado, garante que esta medida “insulta as pessoas bem-sucedidas”, que deviam ser “aplaudidas” (fiscalmente).

Se isso bastasse

Um estudo recente, publicado em setembro por uma instituições de referência nos EUA, o NBER, calcula os “ganhos de eficiência de tributação da riqueza”. Fatih Guvenen e os seus coautores comparam um imposto sobre ganhos de capital com um imposto sobre as fortunas e concluem que o segundo é mais eficiente, reduzindo desigualdades e favorecendo o investimento. O argumento, certamente polémico, é que o montante do imposto sobre o rendimento de capital cresce com o valor do sucesso, ao passo que o imposto sobre as fortunas desloca o peso da tributação para os que não realizam investimentos. Isso pode não ser assim se os rendimentos de capital estiverem protegidos por regras fiscais favoráveis ou por um poder que blinde as suas obrigações, o que acontece com frequência. Em todo o caso, é evidente que o imposto sobre fortunas afeta sobretudo quem vive da propriedade e de aplicações e não de rendimentos gerados na atividade económica.

Na campanha eleitoral norte-americana, a perceção da desigualdade e do fosso fiscal constituído pelo privilégio levou aqueles candidatos a apresentarem programas ainda mais ambiciosos. Sanders e Warren retomam a ideia da separação entre os bancos comerciais e os de investimento, e a última pretende aplicar um acréscimo de 7% sobre os lucros de empresas acima dos 100 milhões de dólares, ou determinar a responsabilidade integral das agências financeiras quanto a investimentos de fundos de pensões (e não só até ao valor da sua responsabilidade limitada), além de substituir o sistema privado de seguros de saúde, que gerem um mercado de 530 mil milhões de dólares, por um serviço público universal. O efeito conjugado de todas estas medidas seria que os ganhos de capital, que pagam em média 23,8%, passariam a pagar 37%, e os 0,01% mais ricos, que pagam 33% em IRS, subiriam para 61% (no tempo de Roosevelt passava os 80%). Acresce ainda que estes dois candidatos pretendem impor o desmembramento legal dos impérios digitais e os gigantes industriais: o Facebook teria de vender o WhatsApp e Instagram, a Bayer teria de alienar a Monsanto. Como é que então se podem salvar os multimilionários? Defendendo cada um dos seus privilégios fiscais e votando Trump.

Artigo originalmente publicado no jornal “Expresso” em 16 de novembro de 2019. Reprodução da versão disponibilizada pelo esquerda.net.

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