O Massacre de Paraisópolis e a Violência Policial: uma análise sobre o racismo, a patologia e a desigualdade sociais

A ida da polícia militar paulista a Paraisópolis foi a invasão da casa grande sobre a senzala para reiterar o sadismo constitutivo da formação do Brasil na forma de racismo e genocídio.

Gilvandro Antunes 4 dez 2019, 14:26

As imagens de uma multidão de jovens correndo desesperada diante do ataque da polícia militar de São Paulo correram o mundo. O saldo: nove mortos. Em ruas e vielas da comunidade vê-se, através das filmagens de moradores atônitos, centenas de pessoas sendo encurraladas com bombas, gás de pimenta e pancadas. Um tom sádico no rosto daqueles que executam aquelas imagens de barbárie. Naquele momento, quantos pensaram: vou morrer. Não há sensação mais terrível do que o sentimento de morte repentina, sobretudo de forma violenta. Ao sádico, trata-se do patológico prazer diante do sofrimento alheio. Freud, em diversos artigos, tratou o sadismo como uma vertente de perversão, embora nem toda a perversão seja patologia. Mas o caso de Paraisópolis trata-se de uma patologia institucionalizada, já tratada por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala. A ida da polícia militar paulista a Paraisópolis foi a invasão da casa grande sobre a senzala para reiterar o sadismo constitutivo da formação do Brasil na forma de racismo e genocídio.   

O Massacre de Paraisópolis, onde por uma ação desastrosa da polícia militar, reforça ainda mais o debate de qual polícia o Brasil tem. O fato é que inúmeros casos que ocorrem todos os dias em centenas de cidades, realçadas por casos de grande repercussão, demonstram que a polícia brasileira muitas vezes é extremamente violenta, racista e corrupta. Diante dos fatos que se amontoam cotidianamente, essa afirmação é tão verdadeira quanto superficial. Não por carecer de comprovação, uma vez que as polícias apresentam alto índice de letalidade, denúncias de violação dos direitos humanos e processos por corrupção. Mas afinal, por que as polícias são assim? Aqui, focaremos nas polícias militares, pois é a esta que cabe o chamado policiamento ostensivo, que gera um contato direto com o restante da população civil.

Muitos debates enfocam que a raiz da violência policial está na sua formação militar, fechada, em estado permanente de guerra, onde o inimigo é a população pobre e negra do país. Isto, por seu turno, pode ser considerado um aspecto que reforça, assaz, esta característica de violência. Não é à toa que a luta pela desmilitarização das PMs é um fato de grande relevância. Todavia, essa não é a raiz, pois ela está na formação de um país forjado na violência que culminou em uma sociedade profundamente desigual. Aliás, a violência está na raiz da formação de qualquer sociedade dividida em classes sociais, afinal, não se pode espoliar um grupo sem a violência, nos mais distintos aspectos, sobre o outro. A Escola de Frankfurt se debruçou sobre a questão da modernidade e da persistência da violência, da violência enquanto um elemento da própria racionalidade moderna, onde a barbárie persiste e até substitui a selvageria nas sociedades industriais. O filósofo Max Horkheimer talvez seja o maior expoente desse pensamento. Não será possível aprofundarmos Horkheimer aqui. Mas este perpassará nesta análise junto com o marxismo e a escola freudiana, de modo que a violência policial tal qual a conhecemos tem origem na desigualdade social entre as classes, se consolida como tal na modernidade e na pós-modernidade e se agudiza no mal-estar social da própria sociedade pós-moderna. Por se tratar de um texto curto, o leitor mais criterioso encontrará, inevitavelmente, lacunas conceituais. No entanto, vai perceber que a objetividade do conteúdo deixa nítida as intenções e os caminhos a até chegar a mesma.

Violência Policial em um País Capitalista e Profundamente Desigual  

A Organização Não Governamental Oxfam Brasil, reconhecida por estudos sobre desigualdade social, divulgou recentemente a pesquisa A Distância que Nos Une – um retrato das desigualdades brasileiras. Nessa síntese, é demonstrado que seis pessoas detém a mesma riqueza que os cem milhões mais pobres. O estudo traz mais dados que podemos analisar:

“Em relação à renda, o 1% mais rico da população recebe, em média, mais de 25% de toda a renda nacional, e os 5% mais ricos abocanham o mesmo que os demais 95%. Uma pessoa que recebe um salário mínimo mensal levaria quatro anos trabalhando para ganhar o mesmo que o 1% mais rico ganha em um mês, em média. Seriam necessários 19 anos de trabalho para equiparar um mês de renda média do 0,1% mais rico. Essa enorme concentração é fruto de um topo que ganha rendimentos muito altos, mas sobretudo de uma base enorme de brasileiros que ganha muito pouco” (A Distância que Nos Une – um retrato das desigualdades brasileiras, pág. 21).

Assim, o papel de manutenção da ordem da polícia militar se torna a manutenção da ordem vigente com todas aberrações sociais impostas. Afinal, qual ordem deve ser mantida. Nesse caso, não há dúvida, é preciso a manutenção da desigualdade social que mantém os milionários intactos a qualquer crise. Ora, seis pessoas detendo a riqueza de cem milhões demonstra que o braço repressivo do Estado deve ser extremante violento e dar exemplos cotidianos de sua disposição permanente de reprimir o povo sempre que os interesses dos ricos estejam ameaçados. Mas para reprimir sem hesitar, é preciso que a instituição seja constituída de forma rígida, totalmente antidemocrática e sem qualquer tipo de apego a quaisquer noções de direitos humanos ou cuidado à dignidade humana. Afinal, como se mantém milhões de pobres longe dos muros da elite econômica?

A história brasileira mostra que a violência foi a forma legitimadora da edificação de um país assentado na desigualdade. Milhões de africanos e africanas foram trazidos para trabalhar sob a forma de trabalho escravo para a acumulação primitiva para as metrópoles. Depois foram mantidos como escravizados como forma de acumulação para o Brasil imperial. Com a abolição, foram mantidos à força em uma situação de anomia social que excluía milhões de negros e negras do advento da industrialização nacional. Ou seja, os pobres, sobretudo os negros, são mantidos com rígido controle social desde seu desembarque dos navios negreiros. Controla-se nas periferias, controla-se nas penitenciárias, controla-se nos assassinatos em massa. O controle é feito para garantir a liberdade do capital. Vimemos a forma periférica em sua forma desigual e combinada de Vigiar e Punir!

Violência, Legitimação e Racismo

A violência policial, além dos termos que lhe garante a sua funcionalidade, precisa se legitimar perante setores que não estão no controle direto do Estado, sobretudo nas classes médias. Vivemos em um país com mais de 60 mil homicídios por ano. Essas mortes violentas são a parte impactante de um sistema constituído por milhares de crimes violentos contra o patrimônio e a vida. A exposição frequente à violência que milhões de brasileiros passam todos os dias cria uma dependência policial quase onipresente. Isso, por sua vez, aumenta o poder repressivo da polícia militar. Mas para se legitimar, as PMs não se pode reprimir generalizadamente. É preciso reprimir em massa, mas não de forma generalizada. Para isso, é preciso desumanizar o contingente a ser reprimido. Aliás, a desumanização é a forma mais legitimadora da violência. Assim foi na escravidão, assim foi no nazismo e assim o é nas guerras contra os povos árabes. É preciso criar gradações de seres humanos. Desde os mais humanos, heterossexuais, masculinos, brancos de classe média alta até o seu inverso, que seriam os menos humanos. De modo que a polícia age sob os critérios do Estado racista brasileiro ou de quem o dirige enquanto classes sociais. Uma vez que, como marxistas não acreditamos que deputados, juízes, senadores sejam o dirigentes dos Estados, senão os 1% mais ricos. Estes, em sua maioria, são agentes a serviço de uma classe e que, por serem bem remunerados e terem uma fatia do poder, transitam pela classe dominante como se fossem próprios dela.   Michel Foucault, certa vez, em seu livro Microfísica do Poder, disse que “só se aceita que uma pessoa nos pare na rua e nos peça o documento, porque dela temos uma dependência”. A violência urbana legitima a brutalidade policial e a história de violência do Estado brasileiro e de sua burguesia para com os pobres torna essa legitimação mais fácil, do tipo “sempre foi assim”. A polícia é a forma mais violenta do racismos, ela é o racismo institucional armado. De forma que a polícia pode parar alguém, revistar, ser truculenta pelo fato da pessoa ser negra. Poucas instituição podem fazer isso. A polícia pode dizer para um negro: você é suspeito. Ao passo que outras instituições teriam que procurar formas mais sutis de racismo. Mas em nome da “segurança e do bem-estar” das outras classes sociais as forças policiais legitimam o seu racismo. Esse racismo legitimado vai da averiguação humilhante ao assassinato sumário.

Aqui, cabe destacar que há dois tipos de legitimação: a sociedade racista legitima o seu próprio racismo através do discurso da prevenção da violência e da paz, assim, o discurso se legitima no discurso de que não é racismo. Ou seja, se afirma o racismo através da sua negação. Pode-se se dizer que é o discurso da democracia racial aplicado à segurança pública.

Assim, o discurso afirma que não há racismo, portanto, não há genocídio da juventude negra, não há encarceramento em massa do povo negro. O que há é estatística aplicada em relação a perfil e crime. Em síntese, racismo pseudocientífico.

Que Polícia Temos?

O Anuário da Violência divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgado em setembro deste ano, compilando dados de 2018, mostram que as mortes violentas tiveram uma queda de 10,2% em relação à 2017. Entretanto, neste mesmo período, cresceu a letalidade policial 6.220 mortes, em 2018, ante 5170 em 2017, um acréscimo de 19,2% em um ano. O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) traçou um perfil dos assassinatos cometidos por policiais em 2018. Destes, 75,4% eram negros, 81,5% só possuíam o ensino fundamental, evidenciando o racismo e o preconceito de classe institucionais. Além disso, para além dos assassinatos realmente em confronto, que de fato existem, há muitos crimes que demonstram nitidamente a prática recorrente de execução sumária. Enquanto setores mais reacionário da classe média e a burguesia, legitimados ideologicamente por pobres, clamam fervorosamente por uma lei pena de morte, mal sabem que as polícias já a praticam da formais mais ilegal possível sendo ela mesma a polícia ostensiva (que detém em flagrante), a polícia jurídica (que “conduz o inquérito”), a promotoria (que “formaliza e desenvolve a ação persecutória”) e o tribunal (que julga). Tudo isso feito em questão de minutos dentro de um beco qualquer. O crime não precisa ser hediondo como o querem parte da sociedade, basta ter o “azar” de pegar uma guarnição violenta. Na verdade, às vezes, não precisa nem ter o crime, mas ter cometido o “crime” de ter nascido pobre, negro e morar na periferia.

Mas quando tecemos duras críticas ao procedimento racista policial, precisamos debater a formação do policial brasileiro. Todavia, é preciso dizer que, independentemente de fatores como a precariedade de trabalho e a formação é preciso investigação externa e rigorosa, bem como punição a todos os casos comprovados. As polícias brasileiras vivem sob más condições de trabalho no Brasil. Os quartéis são um exemplo de como não ter um ambiente de trabalho minimamente adequado. No Rio Grande do Sul, por exemplo, um policial militar de baixa patente recebe pouco e tem seu salário parcelado. Evidentemente, um aumento salarial substantivo teria pouco ou nenhum impacto na violência policial, pois trata-se de uma estrutura histórica. Mas ainda sim é um dado relevante. A formação de um policial militar passa pela reiteração das humilhações dentro dos quartéis. Quando entra para a corporação, o policial militar é vítima da violência moral e aprende que é assim que se faz. A instituição policial prepara seus componentes para naturalizar a violência e a humilhação. Outro fator relevante é o adoecimento psíquico entre policiais, sobretudo, militares. Atualmente, o índice de suicídio entre policiais superou o de mortes em serviço. Não obstante, não há serviços de saúde mental adequados, também há uma cultura de que demonstrar problemas referentes à saúde mental é fraqueza. O que é totalmente incompatível com a cultura militar. Dessa forma, o policial militar, ao invés de fazer tratamento psicológico, prefere trabalhar armado mesmo com adoecimento psíquico. Em Audiência Pública organizada pela deputada Luciana Genro na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, foi possível ver que há uma total precariedade da rede de atendimento à saúde mental dos agentes da segurança pública do Estado, com exceção dos agentes penitenciários. O Rio Grande do Sul é o Estado com maior índice de suicídio entre a população civil do país, 11,65% ante 6,5% respectivamente. Mas o policial militar gaúcho tem três vezes mais chances de suicídio frente a um civil do mesmo Estado. No Brasil é assim, a taxa de suicídio é maior entre policiais do que entre a população em geral. 

A polícia e a Conjuntura Brasileira

Comecemos pelo final? Há uma nova polícia, mais dura, mais violenta diante do governo Bolsonaro e dos seus satélites governadores? Não. A polícia é a mesma. Uma polícia forjada na história racista e de afirmação da desigualdade social aperfeiçoada para os seus fins de controle social durante a ditadura militar, que institucionalizou a tortura como política de regime de Estado e deixou nas forças de segurança um legado que se estendeu durante a democracia. Por um lado o sistema de justiça de transição brasileira foi totalmente falha. Não houve punição aos torturadores e mandantes da tortura. Posto isso, dessa parte, criou-se mais do que uma sensação, mas uma realidade de que tortura não é crime, desde que ela seja contra alguém de menor valor social ou em nome do “bem-comum” do “cidadão de bem”.

Mas e o governo Bolsonaro? O governo Bolsonaro é a procura da resolução dos problemas pela via da violência, da legitimação da força como forma dirimir as contradições, sobretudo quanto esta for a contradição entre riqueza e pobreza, capital e trabalho, direito comum e propriedade privada. Se a política da república pós-ditadura militar não resolveu as contradições, tampouco de forma liberal nem de maneira socialista ou social democrata, cabe à força protofascista esgotar tais contradições. Dessa maneira, a polícia além do seu papel repressor recorrente terá cada vez mais seu papel político reforçado. Tal como o é em todos os regimes de inclinação antidemocrática, nesse caso, burgueses ou não. A lei de Excludente de Ilicitude será a legalização da prática de assassinatos, pois ainda que um setor da sociedade legitime tal prática, é sabido que a legitimação é oscilante e precisa sempre ser renovada. Ao passo que a lei positiva essa legitimação sem estar sujeita às oscilações típicas de opinião pública.

Por uma Política Contra a Violência Policial e Contra o Genocídio da Juventude Pobre e Negra

A mobilização antirracista no Brasil é uma realidade urgente. Não é possível a normalização de um genocídio por ano. A vida de jovens negros importam. Parte desse genocídio racial recai sob as forças policiais. Para isso, além das denúncias e exigências de punições é preciso reformar profundamente a polícia. Isto não é tarefa fácil, pois nenhuma polícia quer ser mudada. Além disso não há consenso, uma vez que não é fácil, sobre qual força de segurança pública deve-se ter em um país marcado pela desigualdade social e pelo racismo. Porém, é preciso apontar medidas, ainda que sejam transitórias tais como:

  1. Desmilitarização das polícias, tal qual recomenda o Conselho de Direitos Humanos da ONU de 2012.
  2. Implementação de corregedorias externas civis e totalmente independentes.
  3. Polícia Comunitária onde a corporação dessas polícias sejam escolhidas e fiquem sujeitas à fiscalização parte dos membros da comunidade, Ministério Público e Defensoria Pública.
  4. A formação de policiais nas academias deve estar ligada diretamente a garantia dos direitos humanos. 
  5. Não aprovar qualquer lei que aumente a legitimidade e a legalidade de letalidade policial. A Lei de Excludente de Ilicitude só servirá para matar a classe trabalhadora e a juventude da periferia
  6. Prisão para os assassinos de Paraisópolis

É preciso mobilizar a sociedade, sobretudo as periferias contra o genocídio da juventude negra. “Pois quem cuida de nós, somos nós mesmos!”


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