O mundo da fantasia continua

A desaceleração das economias capitalistas não pode escapar do frágil crescimento interno mediante a exportação.

Michael Roberts 19 dez 2019, 19:25

O mundo da fantasia continua. Nos EUA e Europa, os níveis das bolsas estão alcançando novos máximos históricos. Os preços dos bônus estão próximos de seus máximos históricos. O investimento, tanto em ações como em bônus, está gerando enormes ganhos para as instituições financeiras e as empresas. Pelo contrário, na economia “real”, particularmente nos setores produtivos da indústria e transporte, as coisas não poderiam andar piores. A indústria automotiva mundial está em grave declínio. As demissões de trabalhadores estão na agenda da maioria das companhias automotrizes. Os setores manufatureiros na maioria das principais economias estão se contraindo. E segundo os chamados índices de gerentes de compras (PMI), que são índices de pesquisas junto a gerentes de empresas sobre o estado e as perspectivas de suas empresas, inclusive as grandes empresas do setor “serviços” estão se desacelerando ou estancando.

A última estimativa de crescimento do PIB real dos EUA foi conhecida no final de novembro. No terceiro trimestre deste ano (junho-setembro), a economia dos EUA expandiu em termos reais (ou seja, depois de deduzida a inflação dos preços) a uma taxa anual de 2,1%, frente a 2,3% do trimestre anterior. Ainda que historicamente se trate de um crescimento modesto, a economia estadunidense está melhor que qualquer outra economia importante. O Canadá está crescendo a somente 1,6% anual, o Japão a somente 1,3% anual, a zona do euro a 1,2% anual, e o Reino Unido a somente 1%. As chamadas “economias emergentes” de maior porte como Brasil, África do Sul, Rússia, México, Turquia e Argentina estão crescendo a um nível que não supera o 1% anual ou inclusive encontram-se em recessão. E a China e a Índia registraram suas menores taxas de crescimento em décadas. O crescimento global geral estima-se ao redor de 2,5% anual, a menor taxa desde a Grande Recessão em 2009.

E a desaceleração das economias capitalistas não pode escapar do frágil crescimento interno mediante a exportação. Pelo contrário, o comércio mundial está em contração. Segundo os dados do CPB World Trade Monitor, em setembro, o comércio mundial diminuiu cerca de 1,1% em comparação com o mesmo mês de 2018, marcando a quarta contração interanual consecutiva e o período mais longo de queda do comércio desde a crise financeira em 2009.

É que as taxas de desemprego nas principais economias são as menores em 20 anos. Isso ajudou a manter o gasto dos consumidores até certo ponto.

Mas também significa que a produtividade (medida como a produção por empregado) vem estagnando, porque o crescimento do emprego coincide ou mesmo supera o crescimento da produção. As empresas contratam trabalhadores pelos mesmos salários em lugar de investir em tecnologias que poupem trabalho para aumentar a produtividade.

Segundo a Conference Board dos EUA, a nível mundial o crescimento da produção por trabalhador foi de 1,9% em 2018, em comparação com 2% em 2017 e se prevê que regresse a um crescimento de 2% em 2019. As últimas estimativas preveem a tendência à baixa no crescimento da produtividade do trabalho global a uma taxa média anual de 2,9% entre 2000-2007 para 2,3% entre 2010- 2017. “Os efeitos de produtividade tão esperados da transformação digital ainda são demasiado pequenos para se fazerem visíveis. É muito necessária uma recuperação da produtividade para evitar que a economia deslize para um crescimento substancialmente mais lento que o experimentado nos últimos anos”.

A Conference Board resume: “Em geral, estamos num mundo de crescimento estagnado. Embora não tenha se produzido uma recessão mundial generalizada na última década, o crescimento mundial agora caiu por debaixo de sua tendência a longo prazo ao redor de 2,7%. O fato de que o crescimento do PIB mundial não tenha diminuído ainda mais nos últimos anos deve-se principalmente ao sólido gasto dos consumidores e aos fortes mercados laborais na maioria das grandes economias de todo o mundo”.

A OCDE chega a uma conclusão similar: “O comércio mundial está em estagnação e está arrastando a atividade econômica em quase todas as principais economias. A incerteza política está minando o investimento e os futuros empregos e rendas. Os riscos de um crescimento ainda mais frágil seguem sendo altos, inclusive graças à escalada de conflitos comerciais, tensões geopolíticas, a possibilidade de uma desaceleração mais aguda do esperado na China e a mudança climática”.

A razão do baixo crescimento do PIB real e da produtividade radica num frágil investimento em setores produtivos em comparação com o investimento ou a especulação em ativos financeiros (o que Marx chamou de “capital fictício”, porque as ações e os bônus são realmente somente títulos de propriedade de qualquer lucro (dividendos) ou juros resultado do investimento produtivo em capital “real”). O investimento empresarial em todas as partes é débil. Em relação ao PIB, o investimento nas principais economias é aproximadamente 25-30% menor que antes da Grande Recessão.

Por que o investimento empresarial é tão débil? Em primeiro lugar, é evidente que a enorme injeção de efetivo/crédito por parte dos bancos centrais e a redução das taxas de juros a zero, as chamadas políticas monetárias não-convencionais, não conseguiram impulsionar o investimento em atividades produtivas. Nos Estados Unidos, a demanda de crédito para investir está diminuindo, não aumentando.

E para o caso, até o momento, a redução dos impostos corporativos por parte de Trump, o aumento do gasto fiscal e o aumento dos déficits orçamentários não conseguiram restaurar o investimento.

Nos EUA, o investimento de capital das empresas do S&P 500 aumentou no terceiro trimestre somente 0,8%, num total de $1,38 bilhão, desde o segundo semestre, segundo dados de S&P Dow. Mas inclusive esse aumento modesto pode ser atribuído a alguns poucos investidores: Amazon.com Inc. e Apple Inc. somente aumentaram o gasto de capital em $1,9 bilhão durante o trimestre. Sem eles, o gasto total das outras 438 companhias que tornaram públicos seus dados até agora neste trimestre teria se reduzido ligeiramente. E o gasto geral teria caído 2,2% em ausência de outras três companhias: Intel Corp., Berkshire Hathaway Inc. e NextEra Energy Inc. Juntas, as cinco companhias aumentaram seus investimentos de capital em 4,7 bilhões, ou 30% do segundo trimestre ao terceiro, segundo dados SPDJI.

A explicação dominante/keynesiana do baixo investimento apareceu novamente num blog recente no Financial Times do Reino Unido: “por que está diminuindo o investimento fixo? Uma resposta, que atrevemos a sugerir, é a escassez de demanda. Sem um aumento da demanda de maior oferta, por que uma empresa investiria numa nova planta, loja ou sede regional quando os rendimentos da recompra de ações ou a distribuição de dividendos são tanto maiores como conhecidos?”.

Mas esta explicação é uma tautologia no melhor dos casos e equivocada no pior. Primeiro, em que área da demanda há “escassez”? A demanda e o gasto do consumidor se mantêm na maioria das principais economias capitalistas, dado o pleno emprego e inclusive certo aumento dos salários no último ano. É a “demanda” de investimento a que cambaleia. Mas dizer que o investimento é frágil porque a “demanda” de investimento é débil configura somente uma tautologia que não significa nada.

Uma resposta mais explicativa da teoria keynesiana se apresenta depois. A razão pela qual as políticas monetárias do banco central e os cortes de impostos não conseguiram impulsionar o investimento “se reduz ao apetite pelo risco”. Esta é a explicação clássica dos “espíritos animais” d Keynes. Os capitalistas acabam de perder a “confiança” para investir em atividades produtivas. Mas por quê? A citação anterior do FT indica: “Por que uma empresa investiria em uma nova planta, loja ou sede regional quando os rendimentos da recompra de ações ou a distribuição de dividendos são tanto maiores como conhecidos?”. Mas os rendimentos (a rentabilidade) de investir em capital fictício são maiores porque a rentabilidade de investir em ativos produtivos é muito baixa. Expliquei isso até a saciedade em publicações e documentos anteriores, junto com evidência empírica de apoio.

No terceiro trimestre de 2019, os lucros das empresas dos EUA caíram cerca de 0,8% em relação ao ano passado, enquanto as margens (lucros por unidade de produção) se mantiveram comprimidos em 9,7% do PIB, tendo diminuído quase continuamente durante quase cinco anos.

Entretanto, por óbvio, o fato de não reconhecer ou admitir o papel da rentabilidade na saúde de uma economia capitalista é comum tanto na teoria e nos argumentos neoclássicos como nos keynesianos.

A baixa rentabilidade nos setores produtivos da maioria das economias estimulou o giro dos lucros e a acumulação de efetivo das empresas à especulação financeira. O principal método utilizado pelas empresas para investir neste capital fictício foi recomprar suas próprias ações. De fato, as recompras se converteram na maior categoria de investimento em ativos financeiros nos Estados Unidos e, em certa medida, na Europa. As recompras nos EUA alcançaram quase $1 bilhão em 2018. Isso equivale somente a algo em torno de 3% do valor total de mercado das 500 ações principais dos EUA, mas ao aumentar o preço de suas próprias ações, as empresas atraíram outros investidores para impulsionar os índices do mercado de valores a níveis recorde.

Mas todas as coisas boas devem chegar a seu fim. Os rendimentos do investimento de capital fictício dependem em última instância dos lucros informados pelas empresas. E estiveram caindo nos últimos dois trimestres. Na última parte deste ano, o investimento em recompras das empresas começou a cair. Segundo Goldman Sachs, a recompra se desacelerou em 18% até $ 16 bilhões durante o segundo semestre, antecipando que a desaceleração continuará. Para 2019, as recompras totais cairão 15% até $710 bilhões, e em 2020 GS prevê uma diminuição adicional de 5% até $675 bilhões. “Durante todo o ano de 2019, esperamos que o gasto em efetivo das empresas do S&P 500 diminua em 6%, o maior descenso anual desde 2009”, disse a firma. De todos os modos, as recompras são um campo dominado pelas grandes empresas, muitas delas titãs tecnológicos antigos. As 20 recompras principais representaram 51,2% do total para os 12 meses que finalizaram em março, afirma o S&P Dow Jones Índices. E mais da metade de todas as recompras agora estão financiadas por dívida – “algo assim como hipotecar sua casa até o fundo, e depois usá-la para organizar uma grande festa por todo o alto”. Mas uma vez que chega inevitavelmente a recessão, o resultado pode não ser agradável para as companhias com muita alavancagem, em grande parte graças às recompras.

O valor de mercado da dívida corporativa negociável em dólares estadunidenses (U$D) disparou para cerca de $8 trilhões, mais de três vezes o tamanho que possuía no final de 2008. De maneira similar, na Europa, o mercado de bônus corporativos triplicou até os 2,5 trilhões de euros ($2,8 trilhões) desde 2008. Desde 2015-2018, foram emitidos mais de $ 800 bilhões em bônus corporativos não financeiros de alto grau para financiar fusões e aquisições. Isto representou 29% de todas as emissões de bônus não financeiros, contribuindo para a deterioração da qualificação creditícia. E a “qualidade creditícia” da dívida corporativa está se deteriorando com os bônus de baixa qualificação que agora perfazem 61% da dívida não financeira, frente a 49% em 2011. E a participação dos bônus com qualificação BBB nos investimentos europeus também aumentaram de 25% para 48%.

E depois estão as chamadas “companhias zumbis” que ganham menos que os custos de pagar sua dívida existente e sobrevivem porque conseguem seguir endividando-se. São principalmente pequenas empresas. Ao redor de 28% das empresas estadunidenses com capitalização de mercado de $ 1 bilhão ganham menos que seus pagamentos de juros, muito por cima do período anterior à crise e isso com taxas de juros historicamente baixas. Bank of America Merril Lynch estima que há 548 empresas zumbis na OCDE contra um pico de 626 durante a crise financeira de 2008.

Com a dívida empresarial agora mais alta que seu pico no final do tenebroso 2008, o presidente do FED de Dallas, Robert Kaplan, advertiu que as companhias excessivamente alavancadas “poderiam amplificar a gravidade de uma recessão”.

Entretanto, para muitos economistas convencionais, o pior pode ter passado. Um acordo comercial entre Estados Unidos e China é iminente. E há indícios de que a contração nos setores manufatureiros das principais economias está começando a ser freado. Se é assim, então pode-se evitar um “transbordamento” nos chamados setores de “serviços” mais dinâmicos e maiores. O crescimento econômico global pode ser o mais lento desde a Grande Recessão; o investimento empresarial é mínimo no melhor dos casos; o crescimento da produtividade está caindo; e os lucros globais são planos, mas o emprego segue sendo forte em muitas economias, e os salários inclusive estão se recuperando.

Portanto, longe de ir rumo a uma recessão mundial absoluta em 2020, é possível que somente tenhamos outro ano de crescimento deprimido na recuperação global mais longa porém mais débil do capitalismo. E o mundo da fantasia pode continuar. Veremos o que acontece.

Artigo originalmente publicado em The Next Recession. Tradução de Charles Rosa para a Revista Movimento.

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