Pandemia e capitalismo

Refletir sobre os sentidos desta pandemia faz-se necessário com disposição teórica que busque a apreensão do movimento em sua totalidade.

Luiz Fernando de Souza Santos 23 mar 2020, 15:50

Uma pandemia ronda o Planeta – foi nominada por COVID-19, novo corona vírus. Os lugares geograficamente mais distantes foram alcançados. Das nações mais ricas e estratégicas para a ordem capitalista mundial às nações periféricas e mais miseráveis, o COVID-19 impõe-se como sombria concretude. Refletir sobre os sentidos desta pandemia faz-se necessário, mas numa disposição teórica que busque a apreensão do movimento de totalidade do mesmo. Sem isso, seus nexos com os padrões de acumulação capitalista contemporâneos ficam diluídos numa névoa de estatísticas, discursos de laboratórios e de instituições estatais, que deixam de fora do debate uma crítica aos interesses das grandes corporações e seus modos de produzirem e reproduzirem o capital.

Ao tomar a categoria de totalidade como princípio teórico-metodológico de abordagem, compreende-se que a pandemia de COVID-19 é parte de um conjunto de crises do capital: econômica, política, ética, ambiental etc. e de uma conjuntura que sintetiza todas as determinações da crise estrutural numa via política reacionária, racista, segregacionista, xenofóbica, antidemocrática, desumana. A emergência dessa pandemia ao lado da crise climática, da queda vertiginosa dos preços do petróleo que atinge duramente as grandes empresas da indústria petrolífera, as guerras, a explosão migratória mundial, e num cenário tomado por governos de política autoritária onde pululam nomes como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán, Mateusz Morawiecki, Sebastian Kurz, coloca o mundo numa rota perigosa. Conforme aponta Naomi Klein, em Não Basta Dizer Não (2017), num contexto assim, o liame para medidas em direção ao estado de exceção, ao desmonte de programas de proteção social, de combate à destruição ambiental, de tratados humanitários internacionais, é fino e frágil. A agenda destrutiva do governo Bolsonaro, no Brasil, é manifestação fenomênica desse perigo.

Mas, como chegamos a este estado de coisas? Como apreendê-lo nas suas determinações essenciais? No caso do coronavírus, quais são as causas estruturais que estão na base de sua dispersão planetária? Tomando a lógica marxista como fio condutor das respostas a tais questões, a categoria de totalidade exige a ancoragem nos processos históricos que vão dar forma à sociedade capitalista. Mas, observando a crítica marxiana em Manuscritos Econômicos-Filosóficos (2004), a necessidade de uma ancoragem histórica não é para encontrar as raízes dos problemas presentes num estado imaginário, numa condição teológico-metafísica, e sim porque a crítica parte dos fatos do tempo presente, faz um giro pela história, para a eles retornar. E nesse giro, a materialidade das contradições do presente está diretamente determinada pelo capitalismo em sua etapa de valorização do capital num circuito de produção e reprodução que se realiza de forma global.

Da relação sociometabólica amigável à relação destrutiva

Num primeiro momento, quando as interações entre as sociedades e o ambiente natural ocorriam em nichos ecológicos bem delimitados, o homem e a natureza mantinham uma relação mais amigável. Como aponta Marx nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos, é um momento no qual “a natureza oferece os meios de vida, no sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos nos quais se exerça, assim também oferece, por outro lado, os meios de vida no sentido mais estrito, isto é, o meio de subsistência física do trabalhador mesmo”. No capítulo V, de O Capital (2013), Marx observa que a categoria trabalho é central na explicação sociológica, posto que é através do trabalho que o homem faz a mediação do seu metabolismo com a natureza. É, o trabalho, atividade em que o homem se distingue dos outros seres naturais pelo pôr teleológico, mas, nesses momentos primeiros, a natureza não é matéria-prima. Sobre esse momento, John Bellamy Foster, em The Vulnerable Planet: a short economic history of the environment, assinala que os impactos ambientais ocorrem em ambientes circunscritos, regionalmente localizados, de modo que as sociedades aí existentes têm um impacto sobre a natureza em escala planetária que é ínfimo, não coloca em risco o conjunto dos ecossistemas globais.

Todavia, com a emergência do sistema capitalista essa relação muda profundamente. A relação sociometabólica do homem com a natureza passa a ser mais intensamente mediada por meios de trabalho cujas propriedades mecânicas, físicas, e químicas das coisas são mobilizadas para uma intervenção mais profunda sobre as outras coisas. Sob condições de produção capitalista, a natureza é fundamentalmente matéria-prima, a relação homem e meio natural é estranhada, coisificada. O que resulta disso, segundo Michael Löwy é:

 Crescimento exponencial da poluição do ar nas grandes cidades, da água potável e do meio ambiente em geral; aquecimento do Planeta, começo da fusão das geleiras polares, multiplicação das catástrofes “naturais”; início da destruição, numa velocidade cada vez maior, das florestas tropicais e rápida redução da biodiversidade pela erxtinção de milhares de espécies; esgotamento dos solos, dsertificação; acumulação de resíduos, notadamente nucleares, impossíveis de controlar; multiplicação dos acidentes nucleares e ameaça de um novo Chernobyl, poluição alimentar, manipoulações genéticas, “vaca louca”, gado com hormônios. Todos os farois estão no vermelho: é evidente que a corrida louca atrás do lucro, a lógica nprodutivista e mercantil da civilização capitalista/industrial nos leva a um desastre ecológico de proporções incalculáveis. Não se trata de ceder ao ‘catastrofismo’ constatar que a dinâmica do ‘crescimento’ infinito induzido pela expansão capitalista ameraça destruir os fundamentos naturais da vida humana no planeta (LÖWY, 2014, p.40).

No capitalismo, para que o capital se valorize, para que os produtos do trabalho como mercadoria circulem, a relação do homem com a natureza precisa romper os laços com os espaços geográficos bem delimitados. O resultado, já o conhecemos das reflexões de Marx e Engels do Manifesto do Partido Comunista: “impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo terrestre. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte” (MARX & ENGELS: 2007, p. 43).

Já não há possibilidade para relação amigável entre o homem e a natureza. E se há espaços que lembrem isso (parques nacionais, reservas extrativistas, terras indígenas, terras de comunidades quilomboloas entre outros), na ordem da mundialização do capital, em que tudo deve ser submetido à lógica predatória da indústria e do sistema financeiro, tais espaços e os grupos sociais que o habitam são considerados como inimigos, agentes de subversão, obstáculos ao progresso. Desse lógica, emergem as condições de destrutibilidade apontadas acima por Michael Löwy. Está dado o contexto a partir do qual as pandemias na contemporaneidade podem ser sociologicamente compreendidas.

Pandemia como objeto biopolíticocultural

Robert Wallace, biólogo evolucionista, filogeógrafo, em Big Farms Make Big Flu: Dispatches on Infectious Disease, Agribusiness, and the Nature of Science (2016), aponta que os surtos de gripe que podem evoluir para pandemias, devem ser tomados como objetos bioculturais, antagonistas sóciopolíticos, resultantes das articulações entre a agricultura em escala global, a capacidade de suporte dos sistemas ecológicos, a presença de outras doenças, a dialética do mundo natural e os conflitos sociais. Diante de objetos assim, um primeiro desafio é ir além dos limites das especializações disciplinares e das falácias platônicas que cada disciplina constrói ao considerar que o real é como informa o seu campo circunscrito.

Das pesquisas que desenvolveu sobre o H5N1, que emergiu em Guandong, China, em meados dos anos de 1990, e de outras pesquisas relacionadas, Wallace passa a compreender que os interesses econômicos e o poder político moldam as doenças infectocontagiosas com escopo planetário e delimitam o campo de atuação das ciências que tomam estas por objeto de estudo. Os patógenos que podem colocar em risco humanos e não-humanos não se deixam aprisionar em fronteiras disciplinares. “Pathogens, a great and terrible global threat to human and many a non-human alike, as much a Sword of Damocles hovering above civilization as climate change, respect little of disciplinarity. Pathogen dynamics often arise from a multitude of causes interacting at multiple scales of time and space and across biocultural domains” (WALLACE, 2016, p. 12).

O predomínio de formas de relação entre o homem e a natureza baseada na subsistência, no impacto ecologicamente localizado da produção, foi há muito substituído por espaços atravessados pela lógica produtivista capitalista, que transformou social e fisicamente os ambientes terrestres e marinhos que, por sua vez, criou uma nova dinâmica, de escopo global, de distribuição dos caminhos através dos quais os patógenos evoluem e se dispersam. Antes, os surtos eram mais localizados; com o advento do capitalismo, desde as grandes navegações até a contemporaneidade, assim como as mercadorias, eles se mundializaram. Todavia, ressalta Wallace, há que se considerar que os patógenos não são objetos inertes da dinâmica do capital. Eles interagem com esta, forçam mudanças nos processos de produção da grande indústria agrícola, e assim, patógenos e agronegócio criam mutuamente as condições de sua reprodução e de circulação. Ao fim e ao cabo, as pandemias se explicam menos por teorias conspiratórias em torno de vírus produzidos em laboratórios e deliberadamente disseminados em determinadas parte do Globo e mais pelas condições estruturais da produção da grande indústria agrícola, os interesses das corporações e as disputas geopolíticas entre as nações imperialistas, que criam as bases para eventos como o H5N1, H1N1, Ebola e, nesses dias correntes, o COVID-19.

No caso particular do Novo Corona Vírus há que se destacar o feixe de crises do qual ele é apenas uma parte. Tal pandemia emerge no âmbito de profunda crise econômica e das alternativas políticas de corte protofascistas, reacionárias, de extrema-direita, que pelo mundo afora impõem um desmonte total de políticas sociais, do que restou do Estado de bem-estar, dos acordos internacionais para o combate à mudança climáticas e outros ataques aos sistemas ecológicos planetários, o desmonte do mundo do trabalho via supressão de direitos e a imposição de atividades laboarais precarizadas, de baixos salários, temporárias, parcelar; o ataque às instituições de ensino e produção da ciência e à oferta de serviços de saúde gratuitos; a imposição de políticas contra imigrantes, políticas racistas, xenofóbicas. Em contexto assim, o COVID-19 pode significar o aprofundamento da suspensão de normas democráticas e da opção pela negação do diferente, daqueles grupos, etnias, religiões, gêneros, que não fazem parte do establishment da estrutura do capitalismo a não ser numa posição subalternizada ao mesmo tempo em que garante que os processos produtivos e de consumo pilares do sistema, que ativam e reativam as possibilidades de pandemias, sigam intocáveis.    

COVID-19: pandemia de classe, de gênero e racializada

Com a rápida dispersão do COVID-19 pelo Planeta a face sombria, distorcida, do capitalismo se apresenta impune. Na Grécia, os campos de refugiados têm milhares de pessoas para as quais as políticas de prevenção ao vírus inexistem. Não há casa onde ficar em isolamento, nem saneamento, nem água, nem alimentação adequada. No Irã o vírus se apresenta de forma mais letal, potencializado que é pela política de “Maximum Pressure” da administração Trump para sufocar economicamente o país e derrotar a República Islâmica. Em 19 de março de 2020, as autoridades médicas do Irã anunciaram que a cada 10 minutos uma pessoa infectada pelo COVID-19 morre naquele país. O governo Trump, que é o responsável direto pelo desmonte das condições de saúde e pelos limites estruturais de enfrentamento do novo coronavírus naquele país, faz um silêncio sombrio. A OMS, sobre o continente africano, alerta que as nações ali devem se preparar para um cenário de grande risco dada as condições infraestruturais de suporte à saúde, as altas taxas de pobreza, superpopulação de cidades sem saneamento e os conflitos internos. Por todo o mundo, nações sob governos de extrema-direita ou sob a pressão desta, fazem do fechamento de suas fronteiras, à guisa de proteger seus cidadãos, uma redução do enfrentamento ao COVID-19 às suas visões de mundo racializadas, xenofóbicas. O perigo é o outro.

O mundo do trabalho, já precarizado, está em decomposição. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que a crise provocada pela pandemia de COVID-19 resultará no desaparecimento de 25 milhões de postos de trabalho e aumento exponencial das formas precarizadas emprego. David Harvey, em Anti-Capitalist Politics in The Time of COVID-19 (2020), assinala que, dado o escopo da crise, cadeias produtivas sofrerão rupturas, fábricas vão parar, diminuindo a demanda final numa ponta e demanda por matéria-prima noutra. O resultado será a recessão e a escalada do desemprego, uma vez que o capital migrará para formas de valorização que demande sistemas de produção baseados em uso menor de exploração da mão-de-obra.

No Brasil, um conjunto de medidas que impuseram um teto dos gastos, reformas trabalhista e previdenciária e, mais recentemente, o avanço de propostas de reforma tributária e de reforma administrativa, em conjunto, atingem profundamente os pilares de segurança jurídica, econômica e social dos trabalhadores, bem como precarizam os serviços públicos essenciais, como educação e saúde.

O receituário neoliberal -que se agudizou com a crise de 2008, criando as condições de emergência de governos de extrema-direita em diversas nações, ao mesmo tempo em que a circulação de mercadorias e pessoas aumentou profundamente, interligando de modo inédito e inexorável lugares localizados nos mais diferentes ponto do Globo- pavimentou a estrada para pandemias como o COVID-19. Eventos assim, como acentua David Harvey, não são naturais, eles se explicam em articulação com a dinâmica do capital e, dada as condições estruturais desses, é preciso desmistificar o mito de que pandemias atingem de modo indistinto todas as classes sociais. Os efeitos econômicos da crise imposta pelo COVID-19 e a magnitude de sua letalidade, serão filtrados de modo a protegerem as elites econômicas. O preço alto será pago pela classe que vive do trabalho. Esta última, é majoritariamente composta por trabalhadores temporários, horistas, terceirizados, precários; são marcadamente mulheres, negros e estrangeiros. O COVID-19 se desdobrará em seus efeitos econômicos de forma essencialmente destrutiva, deixando exposta a face misógina, racista e xenofóbica do capitalismo. É urgente uma alternativa para além dos limites do capital.

 Ecossocialismo ou Barbárie

Ao refletir sobre uma alternativa no quadro atual de profundas crises do capitalismo, isso significa abrir mão da ilusão de reformá-lo. O fetiche da reforma embriagou a classe trabalhadora e suas organizações de modo que o legado é uma conjuntura de morte, na qual o COVID-19 é a manifestação mais visível e assustadora, mas, se assim o é, é porque o contexto para uma pandemia foi forjado sob o embalo de discursos que prometiam domesticar o capitalismo. Mas, um modo de produção cujas crises derivam da busca vertiginosa e determinante do seu modo de ser em busca da valorização do capital, não pode ser suavizado, domesticado.

De uma perspectiva ecossocialista, Michael Löwy aponta que é preciso subverter o aparelho de produção e de poder político. A produção deve estabelecer uma relação com o mundo natural fundada em formas não-predatórias dos sistemas ecológicos, a começar por modelos energéticos não-predatórios, não poluentes, e por uma lógica produtiva para o valor-de-uso ao invés do valor-de-troca. Ao considerar a produção alimentar, Robert Wallace chama a atenção para a necessidade de supressão do agronegócio, da produção de alimentos essencialmente capitalizadas que se desdobra em graves impactos ao ambiente natural. No lugar do agronegócio, deve-se investir na produção agroecológica, que garanta a proteção dos produtores e da natureza, o que significa criar novas mediações entre a vida econômica e o mundo natural.

De um ponto de vista político, elemento-chave para uma relação metabólica entre economia e ecologia na qual os elementos desses par não estejam em posição antagônica, é mister ir além de meros ajustes na condução do Estado. Urge uma ordem política na qual o planejamento pelos produtores associados, nas suas múltiplas determinações de gênero, raça, etnia, seja o fundamento da democracia.

O COVID-19 lança o conjunto da humanidade diante de duas alternativas irredutíveis entre si. De um lado, seguir o caminho degenerado em reacionarismo, política fascista, da ordem neoliberal, e mergulhar em definitivo na barbárie das crises econômicas, políticas, de saúde, ambientais etc., de outro lado, suprimir (no sentido marxiano de Aufhebung, que vai além, conservando o que torna o ser mais inteligível, não-estranhado) a ordem barbarizada por uma outra fundada em princípios ecossocialistas, nos quais as fendas, os abismos, metabólicos entre economia e ecologia sejam fechados.

Referências Bibliográficas

FOSTER, J.B. The Vulnerable Planet: a short economic history of the environment. New York: Monthly Review Press, 1999.

HARVEY, D. Anti-Capitalist Politics in the Time of COVID-19. Disponível em: http://davidharvey.org/2020/03/anti-capitalist-politics-in-the-time-of-covid-19/. Acessado em 19 de março de 2020.

KLEIN, N. Não Basta Dizer Não: resistir à nova política de choque e conquistar o mundo do qual precisamos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017.

LÖWY, M. O Que é Ecossocialismo? São Paulo: Cortez, 2014.

MARX, K. e ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Boitempo, 2007.

MARX, K. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

_________ O Capital, Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.

WALLACE, R. Big Farms Make Big Flu: dispatches on infectious disease, agribusiness, and the nature of science. New York: Monthly Review Press, 2016.


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