O problema do capitalismo e do mal-estar social em Sigmund Freud
A respeito da teoria freudiana sobre o mal-estar social e suas origens mais no nervosismo moderno.
A análise sobre a sociedade capitalista e a (re)produção de sofrimento, mal-estar social não é novidade alguma. Aliás, na passagem do século IXX para o XX, Sigmund Freud já manifestava cientificamente tais constatações. A questão é renovar, ampliar este escopo à luz do que a própria realidade apresenta e das novas produções do conhecimento psicossocial. Freud associava o mal-estar a todo o tipo de civilização. Como parte de um pensamento evolucionista vitoriano típico da época, Freud via a cultura em estágios de evolução por escalas e nessa evolução cultural um quê de acréscimo de mal-estar. Esse mal-estar, por sua vez, gera um tipo sofrimento psíquico no indivíduo, uma vez que há uma série de renúncias no âmbito das pulsões internas do ser que, caso realizadas sem limitações severas, para Freud, levaria à ruina da civilização e de seus avanços culturais. Ou seja, as pulsões do indivíduo o levam a agir sob o princípio do prazer, uma vez que este busca a máxima satisfação dos seus desejos instintuais, sobretudo dos dois instintos básicos principais: o instinto de vida e o de morte. São nesses que estão localizados os instintos sexuais e os agressivos. Numa sociedade pautada pelo trabalho e pela disciplina, libido e agressividade precisam ser reprimidas ao passo que canalizadas para outros esforços mais úteis à sociedade, sobretudo mais úteis à classe social dominante. Assim, primeiramente, o mal-estar social é o resultado de renúncias tão caras aos seres humanos.
Em um dos seus livros mais lidos, senão dentro da sociologia, Mal-Estar na Civilização, Freud destaca que os seres humanos abriram mão da satisfação ilimitada dos seus instintos, ou do princípio do prazer como meta principal, pela segurança, logo pela felicidade. Cabe ressaltar, que o que mais ameaça a sociedade é o instinto de morte, onde está contida a agressão. Por isso, Freud vê que a cultura é uma luta constante do instinto de vida contra o instinto de morte, ou seja, de Eros contra a destruição. Desse modo, o psicanalista austríaco, tece uma longa análise deste movimento de renúncia e de conflitos que levaram os seres humanos rumo à civilização capitalista.
Id, Eu e Super-Eu: três fontes fundamentais da psique humana e seus conflitos diante da civilização
Aqui não será possível fazer uma reconstrução extensa do que Freud entendia por Id, Eu e Super-eu, pois seria demasiado. Mas, de forma rasa, é possível caracteriza o Id como nossa parte inconsciente e caótica da psique. Nele estão contidas os instintos, de modo que o Id age de forma não lógica e constantemente pelo princípio do prazer. Ele nos remete às raízes da nossa formação psíquica. O Id é avesso a qualquer tipo de mediação. O Eu, por seu turno, age de forma lógica. Ele busca o prazer e tenta evitar ao máximo o desprazer. Todavia, age sob o princípio da realidade. Ele mede sua vontade de satisfação das pulsões junto com o que a realidade externa lhe permite. Ele limita o Id e, de certa forma, o aprisiona, às vezes com mais e às vezes com menos êxito. Já o Super-eu é uma instância psíquica que não sofre influência do princípio do prazer. Ele reprime o Eu, exigindo-lhe sua submissão aos preceitos morais, ideias. Freud chama-o também de Ideal do Eu, ou seja, o que o Eu deve ser dentro de uma sociedade que reprime as pulsões em prol do avanço da cultura. Podemos dizer que o Id nasce da formação mais primária da psique, o Eu a partir das primeiras percepções do bebê e seus contatos com os primeiros desprazeres da realidade externa e ou Super-eu com o sentimento de culpa que todos nós temos a partir das expectativas sobre não só como devemos agir, senão como devemos pensar. Afinal, para Freud, qualquer civilização não se sustenta se cada indivíduo satisfizer suas vontades de forma ilimitada. Seria a luta de todos contra todos onde prevaleceria sempre a vontade do mais forte, até que este seja substituído por outro ainda mais forte, quiçá mais cruel.
Horda Primordial, Complexo de Édipo, Parricídio, Sentimento de Culpa, Cultura e Civilização
É sabido que Freud adota as concepções de Charles Darwin sobre horda primordial e de Thomas Hobbes sobre de estado de natureza (a luta de todos contra todos). Daí a longa passagem de um estado selvagem para um contrato social civilizatório. Em seu livro Totem e Tabu, Sigmund Freud faz uma longa exposição dessa marcha da história humana tendo como ponto de partida o tabu do incesto, onde, nas mais variadas sociedades e seus diversos estágios (Freud acreditava em estágios evolutivos culturais) a proibição do incesto era a regra cultural mais elementar. Freud recusa a ideia de um comunismo primitivo ao adotar a concepção darwiniana de que as hordas humanoides e também as primeiras humanas possuíam um líder que mantinha sua posição e privilégios através da força bruta. Um dos privilégios era o acesso irrestrito e exclusivo às fêmeas do bando, e qualquer tentativa de mudança era punida com a expulsão ou com a morte. Freud defende a tese de que, como o líder tinha o acesso exclusivo das atividades sexuais do bando, ele era o pai da maioria dos seus componentes. Assim, os machos eram seus filhos e, por não poderem realizar seus instintos e desejos sexuais, possuíam profundo ressentimento quanto ao pai. Desejavam a sua morte. Certa vez, o desejo se trornou realidade e o parricídio se consumara. Os filhos assassinaram o pai da horda primordial e, assim, tiveram acesso às fêmeas. Para Freud, os filhos mataram e comeram a carne do pai, naquilo que depois se tornaria o banquete totêmico (ver em Totem e Tabu). Mas o fato é que mesmo os filhos tendo parte de seu desejo atendido, estes se sentiram culpados pelo assassinato, pois como se sabe, o complexo de Édipo traz sentimentos ambivalentes de ódio e admiração. A culpa fez com que os filhos, subsequentemente a cada geração dos primórdios, adotassem a abolição do parricídio e o reconhecimento do pai, lembrando sempre o arrependimento diante da morte do mesmo através da cultura totêmica onde a figura do pai era representada pela figura do animal totêmico, por exemplo. Onde o totem era a águia, não se podia matá-la, onde o totem era o urso também. Onde o totem era o bisão não se podia comê-lo, etc., à exceção dos rituais totêmicos onde, simbolicamente, se repetia o parricídio com a morte do animal do totem. Todavia isso já representava um forte indício cultural (ver Totem e Tabu). Além disso, foi instituída a fátria dos irmãos, onde haveria regras, pois do contrário, seria a guerra de todos contra todos. De modo que podemos identificar duas renúncias: a do parricídio e de realização ilimitada dos desejos. Vejamos que para o fundador da psicanálise a base para a civilização foi o arrependimento e a renúncia. A partir disso, em toda e em qualquer sociedade os indivíduos terão que ter sentimento de culpa e disposição à renúncia das pulsões, tanto agressivas, quanto libidinais. De modo que não renunciar à agressividade será punido com a lei e não renunciar parte de sua realização libidinal será punido moralmente.
Vejamos em Freud:
“Conhecemos, então, duas origens para o sentimento de culpa: o medo da autoridade e, depois, o medo ante o Super-eu. O primeiro nos obriga a renunciar a satisfações instintuais, o segundo nos leva também ao castigo, dado que não se pode ocultar ao Super-eu a continuação dos desejos proibidos. Vimos igualmente como é possível entender a severidade do Super-eu, os reclamos da consciência. Ela simplesmente dá continuidade ao rigor da autoridade externa a que sucedeu e que em parte substitui” (Sigmund Freud, O Mal-Estar na Civilização, pág. 97).
Aqui cabe um parêntese de que há uma contestação sobre a questão do parricídio, sentimento de culpa e, digamos assim, inauguração da cultura. O antropólogo polonês, Bronislaw Malinowski, em seu livro Sexo e Repressão na Sociedade Selvagem, no qual tece longa exposição de polêmicas com Freud, adverte que a cultura não foi atingida pela coletividade humana por um salto abrupto, o parricídio, e que o sentimento de culpa não é algo inato, mas cultural. De modo que o sentimento de culpa não pode dar origem à cultura, pois é parte posterior e derivativa desta.
“Como vimos, podemos acreditar que o crime totêmico produz remorsos que se exprimem no sacramento da festa totêmica endocanibal e na instituição do tabu sexual. Isto implica que os filhos parricidas tinham consciência. Mas consciência é um traço mental muito antinatural, imposto ao homem pela cultura. Implica também que tinha possibilidade de legislar, estabelecer valores morais, cerimônias religiosas e laços sociais” (Malinowski, obra citada, pág. 109).
Retomemos, em Freud, o Super-eu é extensivo e modificado à figura do pai. Pois ele nos traz culpa e nos pune, ao mesmo tempo que nos orienta. Desejamos o tempo todo extingui-lo ao mesmo tempo em que reconhecemos nossa dependência para com ele. Assim o é no complexo de Édipo vivido pela criança masculina quando esse toma por objeto erótico a mãe, vendo o pai como um forte obstáculo para a realização da meta. Ela deseja a morte do pai e substituí-lo. Não só o odeia por ter a mãe que lhe é tão desejada. Mas o admira também e sabe que necessita dele vivo para sua proteção. Aliás, o complexo de Édipo se desfaz com a repressão, naquilo que Freud chamou de complexo de castração. Os pais reprimem as manifestações sexuais da criança e esta não vê mais a possiblidade de satisfação edípica, inibindo a meta e canalizando-a para um afeto desexualizado pela mãe. Mais tarde a criança canalizará sua libido para outro objeto que não a mãe. Essa é a repressão que toma o curso normal, diria Freud. Mas pode, em casos mais raros, tomar um rumo neurótico, uma vez que para ele, as neuroses têm origem em conteúdos sexuais infantis recalcados, que emergem do inconsciente para o consciente de forma distorcida. Ao clinicar um menino austríaco a quem Freud denominou de “o Pequeno” Hans ele enfatizou:
“Mas o valor especial desta observação está no seguinte: tratando psicanaliticamente um neurótico adulto, o médico chega enfim, mediante o trabalho de revelar camadas sucessivas de formações psíquicas, a determinadas hipóteses sobre a sexualidade infantil, em cujos componentes ele acredita achar as forças instintuais de todo os sintomas neuróticos posteriores” (Sigmund Freud – Análise da Fobia de um Garoto de Cinco Anos: “o Pequeno” Hans, pág. 124).
Dessa forma, vemos que já na primeira fase a criança se contata e se conflita com seu desejo instintual pela mãe (ID – princípio do prazer), pela sua ambivalência entre o desejo de substituir o pai e mediar isso com sua admiração e dependência ao mesmo (Eu – princípio da realidade) e a repressão familiar que o faz recalcar seus desejos e realinhá-los para outras metas (Super-eu – dever ser, mediante cumprimento das expectativas dos outros).
Capitalismo, Sociedade Repressiva, Indivíduo e Mal-Estar Social
Na primeira parte de texto optei por uma descrição mais extensa de alguns conceitos a serem trabalhados. Talvez para quem já esteja mais afeito a leituras freudianas e do próprio Freud tenha sido cansativo, quiçá desnecessário. Como se alguém escrevesse com conteúdo marxista e tivesse que voltar a conceituar classes sociais, Estado, luta de classes, etc. antes de dizer a que veio. Mas o fato é que o marxismo nos é muito mais familiar, de modo que a teoria freudiana ainda não o é.
O sociólogo e filósofo alemão, Herbert Marcuse, talvez tenha captado como ninguém o significado político e transformador da teoria de Freud. Em seu livro Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud, Marcuse é taxativo ao afirmar que os problemas psicológicos são problemas políticos, ou seja, todo o sofrimento psíquico é social e mudar isso ou não é uma escolha e uma tarefa políticas, depende da luta. A partir da análise freudiana de uma civilização inevitavelmente repressiva, Marcuse vai introduzindo categorias como dominação, trabalho, desempenho, alienação. Assim, coloca com cuidado categorias do marxismo dentro do escopo freudiano. No Brasil, é possível ver em Vladmir Safatle essa tradição. Para o filósofo alemão, Eu age sob o princípio da realidade tal qual em Freud, mediando a realidade externa com os impulsos internos. A inovação marcusiana é que este separa o Eu e seu contato com a realidade externa de acordo com o modo de produção e a classe social. A realidade externa mediada por um operário ou por um camponês não é a mesma do que para um burguês ou para um aristocrata, por questões simples, a repressão que Eu faz para com o ID varia entre as classes sociais.
Vejamos:
“Os vários modos de dominação (do homem e da natureza) resultam em várias formas do princípio da realidade. Por exemplo, uma sociedade em que todos os membros trabalham normalmente pela vida requer modos de repressão diferentes dos de uma sociedade em que o trabalho é o terreno exclusivo de um determinado grupo. Do mesmo modo, a repressão será diferente em escopo e grau, segundo a produção social seja orientada no sentido do consumo individual ou no lucro; segundo prevaleça uma economia de mercado ou uma economia planejada; segundo vigore a propriedade privada ou a coletiva. Essas diferenças afetam o próprio conteúdo do princípio da realidade, pois toda e qualquer característica do princípio da realidade deve estar consubstanciada num sistema de instituições e relações sociais, de leis, valores que transmitem e impõe a requerida “modificação” dos instintos” (Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud, pág. 52).
A isso, Marcuse assimila que estas variações na repressão dos instintos vai variar para algumas classes sociais ou grupos sociais e haverá um conteúdo daquilo que ele chamou de mais repressão (idem, página 53). A mais repressão não é uma repressão que nasce na família, mas nas instituições. Em algumas classes sociais a repressão do desejo e a repressão dos instintos será gratificada com um tipo de satisfação, consumo por exemplo. Em outras, não haverá quase nenhuma gratificação. Assim, vê-se que o princípio do prazer age por um meio primário em todos, mas a mediação do Eu com a realidade vai variar de acordo a exigência da repressão e da possibilidade de gratificação ou não para tal esforço.
Isso quer dizer que Freud negava ou ignorava a existência ou diferenças entre classes sociais? Lógico que não, mas Freud partiu da análise social para chegar ao indivíduo e deste para chegar ao inconsciente. Ao passo que Marcuse retoma o caminho pela mão inversa vai ao inconsciente estudado por Freud para chegar à sociedade, contestando, reformulando, mas, sobretudo, reconciliando a filosofia marxista com a psicanálise estrutural de Freud. De modo que para ambos a repressão é o ponto inequívoco da civilização. Marcuse adiciona ao princípio do prazer o princípio do desempenho (idem pág. 58) onde os indivíduos estarão todos sob o domínio da repressão, porém sob a régua do seu desempenho econômico. Afinal, “(…) sob o domínio do princípio do desempenho, o corpo e a mente passam a ser instrumentos de trabalho alienado” (ibd. Pág. 59).
Assim, é preciso reprimir a sexualidade, libido, mas não reprimir Eros para o trabalho e sim para o trabalho alienado. Nesse sentido, o Super-eu não reprime só para a coesão e manutenção da sociedade. Mas reproduz um tipo de dominação que visa um comportamento conservador. Freud já identificava o Super-eu como conservador e até reacionário, pois ele sempre remete o indivíduo à sua infância, ao domínio do pai, ao sentimento de culpa edípico. O Id também é conservador, pois quer conservar os seus instintos inabalados, mas tentando se libertar, ainda que de forma selvagem, ao passo que o Super-eu é sempre conservador e não deseja liberdade alguma. Não é à toa que Super-eu vai constantemente reprimir o Eu, pois este quer buscar o prazer, mesmo dentro do princípio da realidade. Entretanto, Eu sempre vai tentar se desviar da vigilância do Super-eu. Neste aspecto, Marcuse destaca:
“Vimos que a teoria de Freud concentre-se no ciclo ‘dominação-rebelião-dominação’. Mas a segunda dominação não é, simplesmente, uma repetição da primeira; o movimento cíclico é progresso em dominação. Desde o pai primordial, através do clã fraterno, até o sistema de autoridade institucionalizada que é característico da civilização madura, a dominação torna-se cada vez mais impessoal, objetiva, universal, e também cada vez mais racional, eficaz e produtiva. Por fim, sob o domínio do desempenho plenamente desenvolvido, a subordinação apresenta-se como efetiva através da divisão social do próprio trabalho” (ibd, pág. 91).
No entanto, note-se que ainda que a repressão dos instintos seja diferenciada, bem como a gratificação por isto também, o mal-estar é generalizado. O adoecimento psíquico constatado pelas pressões sociais indistinguem classes sociais. Doenças como depressão, neuroses, histerias, agora fobia, etc. perpassam por todas as classes. Isso porque a sociedade exige uma repressão psíquica a todos. A sociedade é repressiva por natureza. A questão é: se ela pode ser repressiva em graus mais elevados de liberdade. Sobretudo da liberdade criativa. Eis o debate a muito posto.
Repressão Sexual, Princípio do Desempenho e Doenças Psíquicas
Se a repressão das pulsões inconscientes do Id é fundamental para a coesão social, sobretudo em uma sociedade dominada pelo desempenho e pela divisão social do trabalho, marcada pela alienação deste. A repressão sexual é tão importante quanto a repressão da agressividade. Porém, não se trata de reprimir ao fundo de sua existência, mas reprimir para dominá-la. Em sua obra Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, Freud vai destacar que o corpo como um todo é uma zona erógena, ainda que haja partes privilegiadas para excitação. Assim, o corpo todo estará a serviço da libido. Ocorre que em uma sociedade fadada ao trabalho alienado e compulsivo o corpo precisa ser dessexualizado e disciplinado. Pois o tempo é a essência do ritmo do trabalho humano. De modo que é preciso trabalhar tantas horas, tantos dias, tantos meses e tantos anos para produzir mercadorias, receber salário, tirar férias, aposentar-se etc. Bem, para isso, o tempo dedicado ao sexo precisa ocupar um tempo reduzido do dia. Para isso, a atividade sexual precisa se restringir a uma parte específica do corpo, justamente a que é responsável pela reprodução humana: o encontro genital. Igualmente, em Mal-Estar na Civilização Freud aponta:
“A civilização atual dá a entender que só quer permitir relações sexuais baseadas na união indissolúvel entre o homem e uma mulher, que não lhe agrada a sexualidade como fonte de prazer autônoma e que está disposta a tolerá-la somente como fonte, até agora insubstituível, de multiplicação dos seres humanos” (Sigmund Freud – Mal-Estar na Civilização, pág. 69).
Um dos conteúdos analisados por Freud são a perversões e as inversões, vejam que estas denominações, hoje, possuem conteúdos pejorativos. Mas não para Freud, que via questões absolutamente normais nessas práticas. A perversão trata-se, pois, de todas a realização sexual efetuada que não visa a reprodução ou a simples descarga de energia. Podem ser perversões os fetiches, por exemplo. As inversões são designadas a homossexualidade ou bissexualidade, o que aliás, Freud, em Três Ensaios Sobre a Teorias da Sexualidade, se aproxima ao psicanalista húngaro Sándor Ferenczi quando esse propôs o termo Homoerotismo, pois a inversão não se designa a prática sexual em si, e sim a um conjunto de sentimentos que vão muito além do ato sexual. Não à toa, a medicina vigente à época categorizava as perversões e inversões como sintomas patológicos de distúrbios sexuais, o que para Freud era absolutamente refutado. Freud não só afirmava que a heterossexualidade absoluta não é uma normativa inata e sim adquirida culturalmente, e que todos os indivíduos com vida sexual normal possuem um quê de perversões sexuais, sejam masoquistas, sádicas, etc.
Para Freud, a patologia é sexual quando o objeto do fetiche se “independiza” (neologismo meu) do objeto sexual. É muito comum o fetiche com roupas íntimas de ambos os sexos. Isso não tem nada de patológico. Mas o será à medida que a satisfação sexual esteja fora do “objeto” que a veste e sim no próprio objeto. Ou seja, o indivíduo deixa de ter prazer em tudo aquilo que não esteja com o objeto do fetiche. No caso do nosso exemplo é melhor roubar um lingerie da cor e formato desejado para cheira-la do que manter relação sexual com alguém que a veste. Ou seja, o objeto do fetiche se torna preponderante ao objeto sexual. Isso é apenas um exemplo entre tantos. Mas Freud nunca relacionou patologia a opção sexual heteronormativa.
Dessa forma, a monogamia heterossexual dominada pelo patriarcado nada mais é do que uma forma de dominação social para a garantia dos objetivos sociais de uma sociedade hierarquizada e repressiva. Em um ótimo texto denominado A Moral Sexual “Cultural” e o Nervosismo Moderno, Freud é enfático quanto à produção de patologias que essa moral repressora causa na sociedade como um todo. No qual diz:
“(…), a influência danosa da civilização se reduz essencialmente à repressão nociva da vida sexual das populações (ou camadas) civilizadas, devido à moral sexual “cultural” nelas vigentes” (Sigmund Freud – A Moral Sexual “Cultural” e o Nervosismo Moderno, pág. 366).
Depois, Freud arremata:
“É licito, portanto, proclamar o fator sexual como o essencial na causação das neuroses propriamente ditas” (idem, pág. 367).
Todavia, Freud destaca que essa repressão não é igual a todos, pois os homens vivem uma dupla moral sexual e as mulheres só a repressão (é claro que a luta das mulheres fez isso mudar substancialmente hoje em dia, mas a moral segue vigente, ocorre que a transgressão altera a dominação, mas a vitória do movimento feminista é inegável). Para Freud a dupla moral masculina é a prova do fracasso dessa repressão e que ela só poderá levar a neuroses e a histerias. Em suma, a produção de patologias psicossociais. Mas como a fonte da sociedade é a labuta e não o prazer ou a felicidade paga-se este preço.
Mal-Estar Social, Medo e as Expectativas que Pressionam o Indivíduo
Em Marcuse, vimos que a sociedade moderna capitalista se baseia também no princípio do desempenho. Em um modo de produção onde a valorização do capital se dá de forma ininterrupta e que boa parte desta se realiza através do trabalho alienado e do consumo exacerbado de mercadorias e que este consumo é parte indissociável da subjetividade alienada capitalista, as metas sociais giram em torno do trabalho compulsivo e pela busca de dinheiro. Ocorre que, em maior ou menor grau, o mundo capitalista é marcado por uma forte desigualdade social. Quem nunca viu falar da diferença entre os 1% mais ricos do planeta em detrimento da imensa maioria de bilhões de pobres e miseráveis? A questão é que o modelo a ser seguido é dos bilionários, essa é a meta, esses são os vencedores. Diante disso, milhões de pessoas todos os dias buscam o seu lugar ao sol capitalista. Afinal de contas, quantas pessoas estão sonhando neste exato momento com uma casa própria em um bairro de classe média, com um carro na garagem, uma família feliz e planos para uma bela viagem. Mas imaginem que essa tarefa é extremamente árdua para a maior parte da civilização. Mas muitos chegam a ter parte destes sonhos conquistados, ainda que seja uma minoria. Não obstante, a meta principal é a felicidade, uma vez que o carro, a casa, a família, a viagem são todos “objetos” símbolos da felicidade do mundo capitalista. Não que o mundo socialista não haverá tais itens, mas a felicidade assim imposta é parte de um sistema que troca renúncias por felicidade e segurança. Todavia, a contradição é tão grande que é justamente segurança e felicidade as coisas mais difíceis em um mundo como o nosso. Freud é enfático ao afirmar que os indivíduos buscam a felicidade e a segurança quando “pactuam” viver em sociedade. Porém, diante de uma felicidade intrinsicamente associada ao consumo de mercadorias e uma crescente falta de segurança a própria existência humana em seu sentido subjetivo fica comprometida. Na obra de Marcuse aqui trabalhada, ele fala que tanto a ciência, quanto a religião negaram o que prometeram, qual seja a libertação (pág. 79). Não há felicidade e segurança sem libertação, libertação do que causava medo aos seres humanos nas três fontes de sofrimento a que Freud se referiu em Mal-Estar na Civilização: medo da agressão de outros seres humanos, medo da inevitabilidade da morte, medo das forças da natureza. Assim, ciência e religião falharam na redução do sofrimento. A religião por motivos óbvios, já a ciência, porque ela está, na maioria dos casos, ligada a interesses de Estados, classes, mercados, ou seja, dissociada do bem comum (se é que há).
Diante disso, as patologias psíquicas do social se multiplicam junto com seus sintomas, pois se neste caso não são as neuroses e as histerias, agora é o estresse, a ansiedade, a depressão, etc. Mesmo quando estamos felizes, sentimos uma profunda angústia de perder essa felicidade, mesmo quando temos sucesso profissional temos medo de perdê-lo. Ficamos infelizes só de pensar em ficarmos infelizes. Quando o poeta Antônio Carlos Jobim escreveu a letra da música A Felicidade, imortalizou a frase: “Tristeza não tem fim, felicidade sim”. Poderia ele dizer: “Angústia e desamparo não têm fim, felicidade e segurança sim”.
Vejamos que a sociedade capitalista, sobretudo em sua fase neoliberal, é uma produtora de doenças psíquicas. Quando o dito popular afirma que dinheiro não traz felicidade trata-se de uma afirmação seguramente correta. A felicidade não é privilégio de uma classe social. Na verdade, dinheiro, ou melhor, riqueza, traz prazer. Com isso, estou longe de afirmar que tanto faz ser rico ou pobre. Todavia, estou tratando de felicidade em quanto um conceito filosófico, mais profundo e não só enquanto um estágio que causa fontes de prazer. Marx em seu estudo sobre o suicídio percebeu rapidamente que este atinge todas as classes sociais. É sabido que o índice de suicídio por 100 mil habitantes não está relacionado com ao acesso dos indivíduos à riqueza monetária. Às vezes, se verifica exatamente o contrário.
Em verdade, o que se verifica que vimemos em uma sociedade que mede, compara e descarta o ser humano o tempo todo. Isso, por seu turno, gera grande insegurança, forte angústia e um medo constante. Medo de não estar à altura das expectativas sociais, familiares, etc.
Um Mundo Sem Mal-Estar é Possível?
Essa resposta é extremamente complexa. Freud era taxativo ao afirmar que não. Mas para Freud, a civilização não era só mal-estar, mas também avanços culturais significativos. Freud via a necessidade de uma sociedade em que a repressão da libido não fosse parte fundamental da coesão social. Ele objetava essa dupla moral que adoecia psiquicamente os indivíduos. Além disso, ainda que a civilização tenda a reprimir as pulsões, sobretudo as contidas no instinto de morte, o aprisionamento de Eros acabava inevitavelmente liberando o instinto de morte, uma vez que os instintos sempre acabam se manifestando de alguma forma. O enfraquecimento de um fortalece o outro e muitas vezes esse outro liberado se manifestará de forma patológica, sempre ameaçando os pressupostos da civilização. Freud era muito cético em relação ao próprio socialismo, não por ser contra este. Mas por achar que os instintos naturais humanos não se dissolvem com a mudança do modo de produção. Nós, que militamos por outro tipo de sociedade, portanto, um novo tipo de relações humanas, acreditamos que parte do mal-estar social está ligada não só a repressão dos instintos, senão também pela dominação de uma classe pela outra. Uma sociedade socialista pode trazer novas formas de mal-estar, pode manter algumas das mesmas. No entanto uma coisa é certa: a sociedade capitalista é patológica e causadora de sofrimento. Ela é o próprio mal-estar.
Referencial Bibliográfico
FREUD, Sigmund – Análise de um Garoto de Cinco Anos (“O Pequeno Hans”), in Obras Completas vol. 08, ed. Companhia das Letras, São Paulo- SP, 2014.
___________ – Análise Fragmentária de uma Histeria (“O Caso Dora”), in Obras Completas, vol. 06, ed. Companhia das Letras, São Paulo – SP, 2016.
___________ – A Moral Sexual “Cultural” e o Nervosismo Moderno, in Obras Completas, vol. 08, ed. Companhia das Letras, São Paulo – SP, 2014.
___________ – Inibição, Sintoma e Angústia, in Obras Completas volume 17, ed. Companhia das Letras, São Paulo – SP, 2017.