Por que defender o impeachment? O marxismo e o uso tático do direito

Análise marxista do processo de impeachment.

As últimas semanas certamente têm sido daquelas onde em poucos dias as disputas sociais e políticas se transformam de forma mais acelerada do que o fizeram em muitos anos. A pandemia do COVID-19 alcança um novo pico no Brasil, com centenas de mortos todos os dias, vindo a agravar crise humanitária. No meio disso, Bolsonaro tem seu momento mais fragilizado no governo, após a saída de Moro do Ministério da Justiça e a denúncia de que o presidente tentou intervir politicamente na Polícia Federal.

Com o aumento da insatisfação em todo país com Bolsonaro, que não só perdia aliados mas tinha seu governo questionado por panelaços por todo o Brasil, inclusive em diversas periferias dos grandes centros, uma polêmica se coloca central: é possível retirar Bolsonaro do poder? Se, sim, o impeachment deve ser o meio utilizado?

Entre aqueles que polemizam com o impeachment vemos posições das mais variadas, mas pelo propósito do texto nos focaremos em duas que se desenvolvem no seio da esquerda. A primeira de que um impeachment seria somente uma saída “dos de cima”, por se basear em uma movimentação da burguesia e que, portanto, não poderia ser uma saída dos socialistas. A segunda, por outro lado, coloca que seria prematuro ou ainda “perigoso” se debater o impeachment, diante de uma suposta falta de correlação social ou parlamentar. Atentemo-nos à ambas:

I – O impeachment é uma saída burguesa? O direito no arsenal tático anticapitalista

O direito, no marxismo, tem um papel fundamental em conjunto com o Estado, como instrumento criado pela própria burguesia como forma de manter o seu sistema baseado no capital. Ele, nesse sentido, cria uma condição de exercer sua dominação de classe de forma aparententemente estática e imutável pelo seu alto grau de institucionalização. É uma parte de um aparato de coesão e coerção que se põe como imparcial e acima das classes, mas se trata de uma forma de garantir a manutenção do modo de produção de exploração capitalista. A partir dessa noção existem aqueles que comentam que a utilização do direito na estratégia revolucionária seria pouco compatível e que, no caso do impeachment, ele só poderia significar uma saída burguesa. Vamos mais a fundo nessa análise.

Evguiéni Pachukanis é considerado o mais importante teórico marxista do direito. Por conta do regime stalinista, caiu no esquecimento por anos até ser assassinado em 1937 devido a suas posições. Aos 33 anos, no ano em que faleceu Lênin, o jurista escreveu um artigo analisando as posições do líder revolucionário sobre o direito. No mês em que se comemoram os 150 anos de Lênin, é fundamental compreender sua visão sobre o uso tático do direito. Em especial, quando o impeachment segue sendo uma polêmica entre as organizações que se filiam à teoria leninista.

Pachukanis expõe que a “incomparável dialética de Lênin talvez não apareça em lugar algum com mais força do que nos problemas do direito”. Sua tática nunca partiu de uma negação da legalidade, da qual considerava de caráter não revolucionária. O jurista russo descreve como Lênin caracterizava o uso tático do direito como algo necessário em certas ocasiões. Principalmente, quando este fosse o único caminho possível de luta. Lênin, ao ser questionado sobre as possibilidades do uso do direito por revolucionários, destaca que nós “somos a favor do uso da legalidade. Marx e Bebel voltaram-se para o tribunal da Coroa mesmo contra seus oponentes socialistas. É necessário saber como fazê-lo e é necessário fazê-lo”¹. Uma de suas principais lições é a compreensão de que é preciso contribuir para a luta com todos os métodos fornecidos pela legalidade.

Portanto, o uso tático do direito não é incompatível com a noção de que o direito e o Estado derivam das relações que sustentam o modo de produção capitalista. Entender a natureza capitalista da forma jurídica e da forma política não impede a utilização tática destas na luta anticapitalista.

Não é nenhuma novidade a concepção leninista sobre o papel do Estado, muito bem elaborada em “Estado e a Revolução” e em “Esquerdismo, a Doença Infantil do Comunismo”. Para a possibilidade de uma mudança conjuntural e maior acúmulo de forças para as classes populares, destaca que é necessário que se utilize das próprias contradições criadas no seio do capitalismo como meios para o avanço da luta revolucionária.

Bolsonaro, representante de um projeto político para a derrota dos trabalhadores, ao entrar em crise governamental durante uma das maiores crises sociais do país, impõe como necessidade imediata aos revolucionários o aproveitamento de suas contradições para garantir sua queda. Conforme Vladimir Safatle, “trata-se de mostrar claramente que o país repudia de forma veemente e que demonstrou irresponsabilidade e incapacidade absoluta de gerenciar forças para preparar o país para lidar com uma epidemia devastadora”.³

Ou seja, o impeachment de Bolsonaro seria uma atuação concreta contra a barbárie protofascista em uma verdadeira frente ampla. Algo que não restringe nem diminui as políticas no porvir. Pelo contrário, possibilita que a oposição se fortaleça, através da apresentação de uma saída para a crise que vivemos. Obviamente, não se trata de não fazer oposição à Mourão ou deixar de defender a necessidade de lutarmos por um saída programática para o país, mas de compreender que a derrota de Bolsonaro é fundamental para o avanço dessas lutas.


II – O impeachment e a correlação de forças

Há poucos dias, Orlando Silva, deputado federal do PCdoB, disse, numa live feita com Marcelo Freixo, que o impeachment é uma bomba atômica feita para não ser utilizada; que não precisava de crime políticos para ser promovido; que já foi utilizado pela direita como uma saída política contra o governo de Dilma; além de colocar que pouco adiantaria com Mourão assumindo o cargo. Freixo, o complementa comentando que até então não há votos para o impeachment no Congresso e nem mobilização social. O diálogo ocorreu antes das declarações de Moro, mas sua lógica política vale, ainda, ser debatida.

Esta é uma visão que alguns dos setores mais alinhados ao petismo tem defendido nas últimas semanas. Apesar de uma expansão do debate sobre o impedimento nos meios petistas após os comentários de Moro, o PT e seus aliados ainda não protocolaram ou se somaram aos pedidos de impeachment já efetuados.

Orlando está correto ao dizer que o impeachment é uma saída política e não puramente jurídica. Essa visão do processo de impedimento, porém, tem sua contradição em ver o processo como algo quase que estático – ou se tem correlação ou não tem. Contudo, é o movimento, em meio à dinamicidade das disputas, que marca os períodos de intensa crise política. Lenin, na visão de Pachukanis entendia isso visto que ele “levou    brilhantemente    em    consideração    o    fato    de    que    a    legalidade    a    qual    nosso    inimigo    impõe    sobre    nós    é    re-imposta    sobre    ele    pela    lógica    dos    eventos”³.

Bolsonaro pode cair, a crise no seio de seu governo e de sua própria base se torna a cada dia mais grave. Até mesmo representantes de parcela da burguesia, demonstram o rompimento com o presidente, como o MBL, FHC, João Amoedo, João Dória e Luciano Hang. Além do fortalecimento dos panelaços, que foram ouvidos por todo o país, inclusive em regiões periféricas de forma inédita, o presidente e sua família perderam cerca de 90 mil seguidores nas 6 horas seguintes ao pronunciamento de Moro.

Não devemos nos iludir com a possibilidade de renúncia. Mesmo a crise atingindo um patamar cada vez mais alto, Bolsonaro ainda promove seu projeto de fechamento de regime, através das redes sociais e até mesmo por meio de atos públicos. Ainda após as declarações de Sérgio Moro, ele reforça seu programa ao fazer um pronunciamento com toda sua equipe de governo aglomerada e sem as devidas máscaras.

Ao mesmo tempo, poucos dias depois, uma pesquisa apontou que 54% da população brasileira apoia o impeachment⁴. Sua crise é real e a possibilidade de sua saída se torna bastante concreta. Porém, quais atores políticos e por meio de que saídas poderemos levar ao fim do governo é uma disputa igualmente importante.

Os pedidos de impeachment aumentam a cada dia. Partem da REDE e do PDT, a parcela da direita mais conservadora, demonstrando que o movimento pela sua saída se expande para os mais diversos setores. A noção de que tirar Bolsonaro do poder é um primeiro passo necessário para se combater o COVID-19 no Brasil poder e, com isso, salvar vidas se espalhou em boa parte da sociedade. Sermos a vanguarda desse processo permite disputar também as saídas que podem se apresentar durante essa crise e para que lado avançará a consciência popular nesse cenário.

Por esses motivos, ocupar a frente do um processo institucional que pode derrubar Bolsonaro e, principalmente, a construção da mobilização social por trás dele, significa emplacar uma disputa pelo futuro e nos permite afirmar e fortalecer o nosso projeto em meio a crise. Bolsonaro deve cair e só cairá, dentro dessas circunstâncias, por meio da mobilização social canalizada no processo de impeachment, do qual temos que ser vanguarda.



¹ Carta de Lenin a Gorki. Rev.    Direito    e    Práx.,    Rio    de    Janeiro,    Vol.    9,    N.    3,    2018,    p.    XXX-XXX.    Evguiéni    B.    Pachukanis, página 1907.
² Vladimir Safatle, A única saída é o impeachment, El País, 20 de março de 2020

³ Pachukanis, idem, página 1904

⁴ Apoio ao impeachment de Bolsonaro alcança 54% e aprovação de Moro vai a 57% após sair do Governo, El País, 27 de Abril


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