20 anos sem Heberto Padilla

O poeta e jornalista cubano foi testemunha ocular do desmoronamento do velho regime fulgencista e do florescimento da revolução cubana.

Júlio Pontes 7 jun 2020, 20:32

(En tiempos difíciles – Heberto Padilla)

A aquel hombre le pidieron su tiempo
para que lo juntara al tiempo de la Historia.
Le pidieron las manos,
porque para una época difícil
nada hay mejor que un par de buenas manos.
Le pidieron los ojos
que alguna vez tuvieron lágrimas
para que contemplara el lado claro
(especialmente el lado claro de la vida)
porque para el horror basta un ojo de asombro.
Le pidieron sus labios
resecos y cuarteados para afirmar,
para erigir, con cada afirmación, un sueño
(el-alto-sueño);
le pidieron las piernas,
duras y nudosas,
(sus viejas piernas andariegas)
porque en tiempos difíciles
¿algo hay mejor que un par de piernas
para la construcción o la trinchera?
Le pidieron el bosque que lo nutrió de niño,
con su árbol obediente.
Le pidieron el pecho, el corazón, los hombros.
Le dijeron
que eso era estrictamente necesario.
Le explicaron después
que toda esta donación resultaría inútil
sin entregar la lengua,
porque en tiempos difíciles
nada es tan útil para atajar el odio o la mentira.
Y finalmente le rogaron
que, por favor, echase a andar,
porque en tiempos difíciles esta es, sin duda, la prueba decisiva.

Neste virulento ano de 2020, em que o velho agoniza e o novo não nasce, completam-se duas décadas da morte de Heberto Padilla. O poeta e jornalista cubano é uma testemunha ocular do desmoronamento do velho regime fulgencista e do florescimento da revolução cubana. Naquele inesquecível ano de 1959, o triunfo revolucionário na ilha contagiou a esquerda mundial. Prontamente os intelectuais socialistas de todo mundo se tornaram apoiadores de primeira ordem do regime cubano. Dali até o final dos anos 1960 se viveu o chamado “años del consenso”. 

Se cada revolução elege seu próprio poeta, sinal de que não há revolução sem poesia, como na conhecida sentença de Leon Trotski (“Ela virá, a revolução, e trará ao povo, não só direito ao pão, mas também à poesia”), é possível outorgar à Heberto Padilha o título de poeta da revolução cubana. No “El Justo Tiempo Humano”, em 1962, clamou com entusiasmo: “Por el amor de tu pueblo, ¡despierta!/El justo tiempo humano va a nacer.”. O estatuto de poeta comprometido com a revolução, no entanto, não estava recluso às linhas brilhantes escritas por Heberto. Seu papel como intelectual engajado era ativo, envolvendo-se com o jornal cubano “Revolución” e sendo correspondente jornalístico por dois anos na União Soviética.

O compromisso socialista de forjar genuinamente a cultura, a arte, o conhecimento, parecia enfim encontrar-se em Cuba, sobretudo na “Casa de las Américas” – fundada pelo governo já no primeiro ano da revolução. A trincheira cultural, que reunia intelectuais de todo mundo na defesa da revolução liderada por Fidel Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos, tornou-se peça importante frente as investidas contrarrevolucionárias do imperialismo.

Acontece que naqueles mesmos anos 60, embora o consenso entre intelectuais, dirigentes revolucionários e artistas fosse proeminente, modicamente os primeiros dilemas da revolução viam à tona. Em 1961, por exemplo, o “Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográfica (ICAIC), cujo Presidente era Alberto Guevara, proibiu a exibição pública do documentário “PM – Post Meridien” (Sabá Cabrera Infante e Orlando Jimenéz Leal) sob o argumento de que se tratava de um material contrarrevolucionário. Antes daquilo tomar contorno, Fidel Castro fez o conhecido discurso “Palabras a los intelectuales” (1961), inaugurando as bases da política oficial do governo cubano sobre o papel dos intelectuais e da cultura. “Cuáles son los derechos de los escritores y de los artistas, revolucionarios o no revolucionarios? Dentro de la Revolución todo; contra la revolución, ningún derecho”, sublinhou Fidel.

Anos depois, em 1968, aquela fagulha aberta tornou-se incendiária, desencadeando a maior crise do regime cubano com os intelectuais. Trata-se do livro “Fuera del Juego” escrito por Heberto Padilla. Contra todas as investidas da “Unión de Escritores y Artistas de Cuba” (UNEAC), o livro recebeu o prêmio Julián del Casal. Ao que a UNEAC reagiu oficialmente qualificando Padilla e seu livro como contrarrevolucionários, individualistas, anti-soviéticos e mais uma dezena de acusações inverosímeis. “En Tiempos Difíciles” era um dos poemas mais atacados pelo regime, aquele que supostamente sustentava as acusações feitas. Naquela oportunidade, o júri do prêmio não só decidiu mantê-lo, como também publicou unanimemente um documento que justificava a decisão, combatendo as acusações infundadas feitas à Padilla.

Los miembros del jurado del género Poesía que hemos actuado en el concurso UNEAC de 1968, acordamos unánimemente conceder el Premio “Julián del Casal” al libro intitulado “Fuera del Juego, de Heberto Padilla. […] Padilla reconoce que, en el seno de los conflictos a que los somete la época, el hombre actual tiene que situarse, adoptar una actitud, contraer un compromiso ideológico y vital al mismo tiempo, y “Fuera del Juego” se situa del lado de la Revolución, se compromete con la Revolución y adopta la actitud que es esencial al poeta y al revolucionario: la del inconforme, la del que aspira a más porque su deseo lo lanza más allá de la realidad vigente. […] La fuerza y lo que da sentido revolucionario a este libro es, precisamente, el hecho de no ser apologético, sino crítico, polémico, y estar esencialmente vinculado a la idea de la revolución como la única solución posible para los problemas que obsesionan a su autor, que son los de la época que nos ha tocado vivir (DICTAMEN, 1968:1)

Assim o governo cubano decidiu agir contra Padilla, temendo que “Fuera del Juego” contagiasse os círculos juvenis da ilha. A primeira ação tomada foi afastar o poeta da Universidade de Havana, onde ele dava aulas de Literatura. Depois, não cessando a difusão da obra de Heberto Padilla, o Departamento de Seguridad del Estado passou a acusá-lo de atividade subversiva contra a revolução, prendendo-o. Mais de 80 intelectuais mundo afora reagiram à prisão arbitrária de Padilla, entre os quais Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Mario Vargas Llosa e Octávio Paz. Todos até ali eram defensores e colaboradores do processo revolucionário em Cuba. 

O “Caso Padilla”, como ficou conhecido na história, ganhou projeção internacional e passou a preocupar o comando revolucionário cubano. Em abril de 1971 o governo torna pública uma carta feita pelo escritor cubano na prisão, em que supostamente ele assume os desvios ideológicos e súplica retornar às fileiras da revolução. Na sequência, Padilla participa de um encontro de escritores no qual faz uma autocrítica, confessa seus “crimes” e delata seus pares, como parte de um auto-flagelo público. Era o prelúdio daquilo que se firmou entre os anos 1971 e 1975, período em que Luis Pavón Putamayo (Conselho Nacional de Cultural) intensificou a política de censura castrista. 

Censurado e desmoralizado, Heberto amarga o ostracismo por anos, logrando o exílio apenas em 1980 por intermédio diplomático de Vargas Llosa, Susan Sontag e Ted Kennedy. Nunca, porém, adaptou-se plenamente ao exílio nos EUA, sendo impedido por anos de visitar amigos em Cuba. Morreu há 20 anos no Alabama. 

O Caso Padilla é emblemático porque lança luz sobre um tema fundamental: o papel dos intelectuais numa revolução. Certamente não é um dilema que se inaugura na América Latina. Já na URSS, a partir dos anos 1925, se viu o desterro estalinista contra os intelectuais e a cultura. Os suicídios de Serguei Iessienin e Vladimir Maikovski em plena Nova Política Econômica (NEP). A morte Óssip Mandelstam, franco opositor de Stálin cuja morte se sucedeu em 1938 num campo de trabalho forçado. A perseguição contra Boris Pasternak, com a comprovação de documentos oficiais soviéticos cogitando a privação da sua cidadania soviética ou exílio após a censura da sua obra célebre “Doutor Jivago”. O exílio de István Mészáros com a contrarrevolução instalada na Hungria a partir de 1956. 

Tornar a memória de Heberto Padilha, brilhante intelectual e militante cubano, nos obriga a debater o papel dos intelectuais e da cultura na revolução socialista. Ao nos lançarmos nisso, obviamente somos obrigados a tirar lições do passado, fazendo o que conhecemos por balanço. A experiência estalinista organizou derrotas e pode ser provada assim, entre outros argumentos, sob o prisma da questão dos intelectuais e da cultura. A arte só poderia encontrar lugar na forma estética do realismo heroico, ou seja, uma arte exclusivamente engajada e estandarte do programa revolucionário. Ao resto, por óbvio, cabe a alcunha de arte contrarrevolucionária ou pequeno-burguesa. Já aos intelectuais socialistas, estava reservado o espaço do consenso esterilizante. 

A arte e os intelectuais, ao contrário, têm uma razão de ser: o conflito, a liberdade, a crítica, a criatividade, a sensibilidade, o otimismo da vontade, o pessimismo da razão. E só o socialismo é capaz de conviver verdadeira e ativamente com tudo isso.


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