Relaxar a quarentena em São Paulo: irresponsabilidade que matará milhares
A deputada estadual Mônica Seixas (PSOL-SP) critica a flexibilização da quarentena em São Paulo promovida pelo governador João Doria.
João Doria cometeu uma enorme irresponsabilidade ao permitir o relaxamento da quarentena em boa parte do estado de São Paulo a partir de 01/06. Desincentivar a quarentena justamente quando a pandemia chega perto do pico em São Paulo e em todo o país trará inúmeras mortes e fatalmente demandará medidas de isolamento social mais duras posteriormente.
Cabe lembrar, primeiramente, que Doria contradisse seus próprios discursos anteriores – como é o costume de um político que já é famoso pela volatilidade de suas afirmações. No dia 13/05, classificou o relaxamento da quarentena na Alemanha como medida “precipitada”. Uma semana depois, cogitou lockdown. Apenas mais uma semana depois, anunciava o relaxamento da quarentena no estado que governa. Doria também havia dito que só haveria flexibilização nas cidades que atingissem 55% de isolamento. Mas das 104 que passaram a poder fazer o relaxamento, só 2 cumpriram a meta na data em que o relaxamento foi divulgado: Ubatuba e São Sebastião. Presidente Prudente, por exemplo, que recebeu permissão para fazer a modalidade mais branda de quarentena, tinha apenas 39% de isolamento social. Isso porque 55% de isolamento já é bem menos do que a recomendação da OMS, que é entre 60% e 70%. Com o relaxamento da quarentena, é presumível que essas taxas de isolamento caiam ainda mais.
Ora, o que mudou em tão pouco tempo para que Doria revisse suas próprias considerações sobre a pandemia? “A curva foi achatada”, diz o governador. Entretanto, de acordo com nota técnica elaborada por pesquisadores da USP e pela organização “Ação Covid-19”, os próprios dados apresentados pelo governo, se analisados corretamente, apontam que houve crescimento da contaminação por Covid-19 no estado, e não diminuição. Mais ainda, o mesmo estudo aponta que o Brasil e o estado de São Paulo em particular estão entre as regiões do mundo em que a pandemia espalha-se com maior velocidade. Ou seja, o epicentro do coronavírus do mundo está abandonando as políticas para conter sua disseminação.
Isso sem falar que os dados sobre contaminação no Brasil não refletem a realidade. Apenas indivíduos sintomáticos graves são testados, mas não os assintomáticos ou sintomáticos leves. Sequer todos os profissionais de saúde do estado de São Paulo (setor da população mais suscetível a contaminar-se e transmitir o vírus) já foram testados. Ora, só há caso confirmado de coronavírus se houver teste, portanto, os dados sobre o avanço da doença no estado não são plenamente confiáveis.
A testagem em massa é o principal requisito para se cogitar reabertura. Pois a Covid-19 é uma doença que se espalha rápido e de maneira silenciosa já que 80% do contaminados são assintomáticos. Dessa forma, é preciso que o governo garante condições de monitoramento constante da contaminação para pensar em relaxar a quarentena. Para se ter uma ideia de como nosso estado está distante dessa realidade, a “precipitada” Alemanha realiza cerca de 32 mil testes a cada 1 milhão de habitantes. Já o estado de São Paulo realizou cerca de 4400 a cada 1 milhão de habitantes. Se fosse um país, estaria em 121º lugar no ranking de testes, atrás de países como Equador e Iraque. O nosso maior problema é que não sabemos o tamanho do problema. Relaxar a quarentena nessas condições é como dirigir à beira de um precipício de olhos vendados.
Além disso, chamou a atenção dos pesquisadores que elaboraram o estudo mencionado anteriormente o fato de que o plano do governo apenas cita critérios adotados pela OMS para considerar seguro o relaxamento da quarentena (como taxa de ocupação de leitos e velocidade de contaminação) mas não obedece a eles. Por exemplo, a OMS recomenda que o isolamento social só seja flexibilizado se houver diminuição no número de infectados por 3 semanas, redução no número de óbitos por 2 semanas, se a taxa de ocupação de leitos não subir em 2 semanas, etc. Nenhuma das regiões que vai flexibilizar a quarentena em São Paulo obedeceu a qualquer um desses critérios. Ou seja, critérios como curva de contaminação foram citados pelo governo apenas para transparecer responsabilidade, mas foram completamente ignorados. Para passar ainda mais impressão de que a decisão do governo obedecia a critérios científicos e objetivos, foram atribuídas “notas” que mediam a segurança de cada região para a abertura. Acontece que os critérios dessas notas foram simplesmente inventados pelo governo.
Tomemos como referência a taxa de ocupação de leitos de UTI, talvez o mais importante dos dados já que indica a possibilidade ou não de colapso do sistema de saúde. No estado como um todo, no momento em que este texto é escrito a taxa de ocupação está em 70,4%. Na Grande São Paulo, está em 83,4%, mas no dia em que o relaxamento foi anunciado estava em quase 90%. Não é preciso que a lotação chegue a 100% para a situação seja considerada crítica e indique sobrecarga no hospital. Estes números podem variar muito de um dia para o outro e, para que médicos não tenham escolher entre quem respira com máquina e quem morre, a taxa não deve superar em hipótese alguma os 60%.
É particularmente indignante a perspectiva de relaxamento da quarentena na capital. Por sua preponderância demográfica e econômica, circulam pela cidade pessoas que vêm e vão das diferentes regiões do estado. Dessa forma, a flexibilização na capital pode contribuir ainda mais para espalhar o Covid-19 pelas cidades do interior. Como apontou a Fundação Fiocruz, a contaminação por coronavírus não pode ser observada por regiões isoladamente, mas considerando as fronteiras e deslocamentos entre elas. O plano de Doria, ao contrário, considera as regiões do estado como ilhas. Como evitar que pessoas que vivem em regiões “vermelhas” (supostamente mais afetada pelo Covid-19) visitem regiões “amarelas” (teoricamente menos contaminadas) e levem para lá a contaminação?
Cabe lembrar também que isolamento social não é simplesmente uma decisão individual, mas um direito exercido por quem pode. Quando um shopping, por exemplo, é liberado para funcionar, visitá-lo é uma opção para os clientes mas não para os funcionários que ali trabalham. Entre eles haverá pessoas que precisarão encarar o transporte público mais cheio devido ao fim da quarentena, trabalhar e depois voltar para o convívio – em imóveis muitas vezes superlotados – com amigos e familiares dentre os quais poderá haver pertencentes ao grupo de risco. Se a intenção fosse preservar o sustento desses trabalhadores, melhor seria que o governo oferecesse auxílio emergencial estadual, crédito para micro e pequenos empresários, programa de reconversão industrial para reaquecer a indústria, dentre outras medidas que o nosso mandato e vários outros já propuseram que são melhores do que obrigar o trabalhador a arriscar sua vida e de sua família. Empresários usam a desculpa de “preservar a economia” para esconder seu desejo de explorar trabalhadores não importa em qual circunstância.
Portanto, decisão de liberação da quarentena obedeceu apenas ao critério da conveniência política e não ao da saúde pública. Doria cedeu à pressão de prefeitos candidatos a reeleição, bolsonaristas e empresários que querem obrigar seus empregados a arriscarem suas vidas e de suas famílias Uma decisão que custará caro e causará danos irreversíveis. De acordo com estudo da Imperial College de Londres, quando o isolamento social cresce em 50%, a contaminação por Covid-19 desacelera em 3 vezes, mas, quando o isolamento social cai em 50%, a contaminação cresce em 11 vezes. Ou seja, quando for atestado o fiasco da retomada das atividades – o que fatalmente ocorrerá – será preciso muito mais tempo de uma quarentena bem mais rigorosa para retornar ao patamar atual de contaminação. Portanto, a justificativa de que o relaxamento da quarentena visa “salvar a economia”, além de política e moralmente questionável, é tão simplesmente falacioso uma vez que os prejuízos econômicos a médio prazo podem ser maiores do que os da manutenção da quarentena. Mas, acima de tudo, há aquele fator que talvez seja o único absolutamente irreversível: a morte. Milhares irão morrer vítimas da irresponsabilidade e do oportunismo de Doria.