Trump, o pensamento nazista e a necessidade de combatê-lo

(E o que tudo isso tem a ver conosco )

Roberto Robaina 17 jun 2020, 20:39

Quando Trump ordenou a repressão aos manifestantes que protestavam diante das grades da Casa Branca, para que pudesse atravessar a rua e ser fotografado posando com a Bíblia em punho, em frente à Igreja Saint John’s, estava apresentando simbolicamente a essência de seu programa para enfrentar a crise em geral e, em particular, a rebelião negra e juvenil que explodira dias antes nos EUA.

Este junho de 2020 entra para a história como a maior onda de protestos dos últimos 50 anos nos EUA. Seus efeitos ainda estão apenas começando. Trump não escondeu que seu governo tratou as manifestações como se fossem uma guerra interna. Por isso, em seus pronunciamentos, ameaçou convocar as forças armadas. Antes disso, e enquanto isso, neste caso pela ordem de governadores e prefeitos, as forças policiais internas tentavam abafar o movimento com toques de recolher, gás lacrimogênio, empurrões, socos e balas de borracha. O movimento não desistiu, não saiu das ruas, e mesmo o toque de recolher foi desacatado e derrotado.

Essa demonstração de coragem dos manifestantes de enfrentarem a polícia consagrou uma vitória estratégica. A repressão foi vencida. Em seguida, os líderes da oposição burguesa vieram a público apoiar abertamente os manifestantes, cujo maior símbolo foi a declaração de Obama. É claro que a vitória foi de uma batalha. Afinal, a guerra mais ou menos aberta, mais ou menos consciente, está longe de ter começado sua fase mais decisiva. Nesse sentido, é preciso reconhecer uma racionalidade na compreensão de Trump: efetivamente trata-se de uma guerra e ele já a declarou. Sua política comanda uma parte da classe dominante dos EUA, além de ter apoio de um setor de massas (também comanda alguns dos seus subordinados pelo mundo, como o presidente Bolsonaro). Aqui há duas observações que devem ser feitas de imediato sobre os EUA a respeito da relação de forças.

A primeira é que o setor de massas que apoia Trump é minoritário, ainda que forte, e sua dinâmica não é de crescimento, embora tenda a ser mais agressivo enquanto perde base social. A segunda é que a burguesia norte- americana não tem uma posição unânime de adesão ao programa de Trump. Longe disso: a classe dominante está dividida. Uma parte importante foi contrária, por exemplo, aos seus discursos durante a rebelião. E claramente a maioria dela, incluindo setores importantes da cúpula das forças armadas (com efetivo de 24% na base formada por negros) se opôs ao presidente depois que os manifestantes provaram que não estavam para brincadeira. Saber como irá se desenvolver a evolução dessa divisão é uma das incógnitas dos próximos anos.

Para nos guiarmos na complexidade da situação mundial, sustento que devemos ter em conta que, nas lutas sociais de nossos dias, há o desenvolvimento de contradições que vão além das contradições de classe. Existe a contradição principal entre o capitalismo e suas forças de negação. Sabemos que essas forças negativas não se desdobram nem automática nem espontaneamente numa afirmação. A ideia comunista, a afirmação positiva alternativa ao capitalismo mais expressiva ao longo da história, continua fraca, depois de um período potente na primeira metade do século XX.

De toda forma, a contradição principal da época histórica é o capitalismo versus comunismo. Outra contradição principal, que se soma à anterior, identifica-se na contradição entre o que Alain Badiou chamou de tradição versus modernidade. Há, nesta segunda contradição, uma espécie de atualização, em tempos históricos diferentes, de uma tensão que também ocorreu durante a ascenso do fascismo e sobretudo do nazismo. Uma atualização de tensões não quer dizer repetição. Temos assim, duas contradições principais, não apenas uma. A partir delas, podemos traçar algum nível de compreensão das subjetividades da situação mundial presente. Para tanto, é imprescindível seguir pensando as coordenadas que marcaram o século XX.

Duas forças subjetivas poderosas marcaram o cenário europeu nos anos 20 e 30 do século passado. Ambas prometiam um futuro melhor. O comunismo pregava um homem novo, que não havia ainda surgido, marcado pela liberdade e pela igualdade, surgido da destruição das instituições capitalistas e sua superação por uma nova institucionalidade construída de baixo para cima. O nazismo também prometia um homem novo. Surgiu como reação ao crescimento do comunismo. Como explica Alain Badiou, com seus campos de concentração, suas câmaras de gás, dizia que defendia um homem novo, a restituição do homem velho que foi obliterado e corrompido, cuja purificação exigia um retorno a uma origem desaparecida, pela via da destruição das instituições da democracia burguesa capitalista. Neste caso, como explica Badiou, baseado na defesa de um passado de glórias, um homem inspirado na raça, no sangue, na nação, na terra, tendo como predicado o nórdico guerreiro e ariano. Também o nazismo foi um pensamento político, com seu projeto de guerra imperial, nacional, racial, fundadora de um Reich de mil anos, cujas consequências práticas não foram enfrentadas pelos países capitalistas. O nazismo, porém, tinha um projeto de domínio mundial e de destruição da União Soviética.

O projeto nazista apoiado pela burguesia alemã e que despertou simpatias nas burguesias de outros países capitalistas, entre os quais os EUA, conduziu o mundo a uma guerra aberta, total, sem tréguas, cujo objetivo de exterminar judeus, negros, comunistas e liberdades democráticas era evidente. Tal guerra fez se alinharem contra as forças do nazismo e do fascismo as forças da então URSS e dos estados capitalistas com regimes democráticos burgueses, tendo o movimento operário e popular participado ativamente da resistência contra as forças nazistas, em alguns momentos sendo a principal força dessa resistência, notadamente em países como a França, a Itália e a Grécia, para citar os mais importantes.
A derrota nazista foi completa na segunda grande guerra ao ter de enfrentar conjuntamente as forças soviéticas e norte-americanas, além da resistência. Depois dessa derrota, o estado soviético se fortaleceu.

Num pacto que envolveu a então URSS e os países capitalistas centrais, as democracias burguesas foram reconstruídas e tornaram-se os regimes políticos dominantes na Europa capitalista enquanto a URSS tutelava os estados do leste. A Alemanha foi dividida e seu lado ocidental assumiu novamente o papel de carro chefe do capitalismo europeu até que finalmente a unificação fosse realizada de acordo com as leis do modo de produção capitalista, no que entrou para a história como o colapso soviético.

Para analisar as subjetividades desse período posterior à queda do muro de Berlim, é preciso reconhecer que o movimento comunista sofreu duras derrotas ao ter seu nome vinculado com o advento do stalinismo. O movimento de massas sofreu uma desorientação programática até hoje não superada. A crise do stalinismo dos anos 80 do século passado e a crise da social democracia e das democracias burguesas iniciadas desde então, mas aceleradas no século XXI, mais ainda depois da crise de 2008, provocou um quadro de desorientação geral no mundo. Talvez seja esta marca central da subjetividade do presente e, neste cenário, enfrentamos hoje as novas contradições e tensões que atualizam problemas que aparentemente haviam ficado no passado. Aparentemente, porque o nazismo não foi apenas um momento irracional do desenvolvimento do capitalismo. Ele é um pensamento que se fortalece à medida que o modo de produção se reproduz em decadência.

Queremos marcar inicialmente que a análise da situação mundial contemporânea, desde os anos 80 do século passado para cá, deve levar em conta que os efeitos da subjetividade não podem ser enquadrados numa contradição única. Não estamos mais diante de um cenário mundial cuja contradição entre capitalismo e comunismo, entre burguesia e proletariado, é a fundamental a exclusiva. Há outro eixo, outra grande contradição, a partir da qual se desenvolvem subjetividades e escolhas são feitas. Trata-se da contradição entre modernidade e tradição. Esse é um dos principais aportes de Alain Badiou ao pensamento político contemporâneo. Trabalho no assunto em meu livro sobre o filosofo marroquino/francês. O argumento que segue é extraído de meu próprio livro.

Uma das marcas da tradição é a vontade de preservar, de repetir a identidade. A defesa de valores, da nacionalidade, o estrangeiro como ameaça. Além do patriotismo, a eventual defesa de uma raça ou de uma religião. Não é preciso ser grande estudioso para reconhecer aí características do nazi-fascismo. Assim, as subjetividades contemporâneas combinam essas quatro determinações – capitalismo, comunismo, modernidade e tradição – não apenas duas. E não há uma hierarquia entre elas. Há elementos crescentes da subjetivação da tradição no capitalismo. Na Europa, a xenofobia é uma resultante dessa subjetividade, mais concretamente a perseguição aos estrangeiros e a islamofobia. No Oriente Médio, os movimentos fascistas (ou pós-fascistas) do ISIS são igualmente presos desta subjetividade.

Trump quer se apoiar numa subjetividade que se apoia no capitalismo e no obscurantismo. Com um discurso da defesa da América para os americanos, quer se apoiar na xenofobia, no racismo e na religião, no predomínio do homem branco e rico, se impondo sobre os demais, especialmente contra negros, latinos e imigrantes em geral. E sua política não é uma novidade. Nos anos 80, Nahuel Moreno já apontava que Reagan, o presidente republicano mais semelhante a Trump, era crente de uma filosofia com roupagem bíblica disposto a acelerar a luta contra o mal diante do que afirmavam ser o período do armagedon. Na época, o mal supremo eram a então URSS e o movimento socialista de modo geral. Foi o momento da guerra das galáxias onde de fato começou a se preparar uma política de terceira guerra mundial contra a URSS. O fundamentalismo religioso era a base de massas dessa política. Trump, agora sem a URSS, atualiza esse fundamentalismo e o dirige contra imigrantes e na afirmação da América branca, masculina e racista. Também o dirige contra a China. Este foi o sentido simbólico da foto com a bíblia na mão em frente à Igreja Saint John’s.

A dificuldade de unir a classe dominante norte-americana ao redor destes pensamentos são inúmeras. Não tanto em relação à China, onde existe uma unidade maior em fazer a disputa, embora tampouco a política seja aí uníssona. Mas a unidade de uma política de choque aberto contra imigrantes, por exemplo, está longe de existir, e menos ainda há acordo quanto ao obscurantismo diante do movimento de mulheres, do movimento LGBTQI e tampouco para enfrentar a força poderosa de contestação antissistêmica que inevitavelmente carrega o movimento negro. Neste ponto, Trump pode estar até perdendo espaço. São forças sociais muito poderosas que o enfrentam. E os capitalistas sabem fazer conta. O peso dos imigrantes no interior dos países centrais também é muito visível. Isso vale também para a Europa. A seleção francesa de futebol composta pela terceira geração dos imigrantes vindos da África e comemorada pela população negra francesa que toma conta dos subúrbios e os metrôs de Paris são apenas uma pequena amostragem desta brutal mudança demográfica.

Há também uma questão subjetiva que marca amplos setores das classes médias e mesmo parcelas importantes da classe dominante. A subjetividade da modernidade igualmente acompanha o capitalismo. Então, a contradição entre modernidade e tradição não ocorre entre modos de produção opostos. Ocorre atualmente no interior do mesmo modo de produção capitalista. E a subjetividade moderna, aliás, tem sua origem no capitalismo e tem mais força com seu desenvolvimento: a liberdade do comércio, o turismo, o regime democrático burguês, a criação artística, cientifica e técnica. Essa subjetividade moderna em muitos casos acaba associada ao capitalismo à medida que o capitalismo tem sido apresentado como o único modo de produção natural e a perspectiva comunista aparece como encerrada para amplas parcelas sociais.

A lembrança da experiência nazista igualmente serve para que o enfrentamento contra a extrema direita xenófoba e racista seja feito também por partidos burgueses do próprio sistema. É o caso de alguns países europeus e se revela no choque de parcelas importantes do Partido Democrata contra Trump, não apenas as representadas pelo independente Bernie Sanders. Afinal, o nazismo tentou ir além da mera reprodução do sistema capitalista. Foi uma experimentação de um modo de produção que se assentava não apenas no trabalho assalariado mas no trabalho escravo dos judeus, dos comunistas e dos países conquistados. Creio que a análise de Nahuel Moreno era correta sobre este ponto. Nada disso quer dizer confiar e muito menos chamar a confiar nas classes médias e em parcelas democráticas da classe dominante. Sem uma luta decisiva do povo trabalhador, dos setores explorados e oprimidos, do movimento negro, juvenil, das mulheres e imigrantes, a extrema direita sairá vitoriosa ou nos arrastará inexoravelmente para uma permanente desagregação social e destruição das condições ambientais da vida. Mas nao confiar não quer dizer nao reconhecer divisões no andar de cima, nos setores médios e saber aproveitá-las. E nesta luta é preciso saber que o pensamento da extrema direita estará sempre presente como tendência para buscar a hegemonia entre os capitalistas porque uma das essências do capitalismo é produzir fenômenos irracionais e contrarrevolucionarios. A extrema direita sempre surge e vem à tona quando o movimento revolucionário cresce. Além disso, e esta atualmente a principal explicação de sua força, segue ocupando espaços deixados pela crise do sistema e as frustrações geradas pela democracia burguesa, pela social democracia e pelo stalinismo. E, lógico, pela fraqueza do marxismo revolucionário como organização que não tem aproveitado a crise capitalista para crescer.

Um ideia alternativa antissistêmica deveria combinar a bandeira da igualdade, base do comunismo, com a modernidade, cuja identidade é ainda com o capitalismo democrático burguês devido ao peso da experiência dos estados ditos socialistas, cuja tradição e a repressão foram a marca, não a modernidade. Com exceção da riqueza da explosão cultural, artística, comportamental dos anos 20 na ex-URSS – e vivida também nos momentos de revoltas e revoluções nos países do leste, em particular na Hungria em 1956 e na República Theca em 1968 – estas experiências defenderam a conservação do partido, do Estado, dos símbolos, da disciplina, da ausência de liberdade não apenas na política mas também na arte. A experiência de modernidade combinada com modo de produção não capitalista foi curta e suas marcas não são mais visíveis pelos trabalhadores e povos do mundo. O stalinismo produziu a frustração das esperanças de um regime igualitário e com liberdade. Produziu tais frustrações desde o seu início, no final dos anos 20 do século passado, mas o aparelho stalinista se manteve enquanto força de estado até os anos 80 do século XX. Por isso, também sua derrota foi positiva para um projeto de refundação da ideia comunista.

Um movimento comunista renovado não pode ganhar força se não se postular também como defensor de uma nova modernidade, que combine igualdade e liberdade. Ao mesmo tempo, não há como desenvolver uma estratégia pela emancipação que não coloque na agenda política de modo permanente a mais ampla unidade para derrotar as forças de extrema direita. Esta necessidade deve ser levada em conta na política cotidiana e na valorização de táticas de unidade com forças democráticas, inclusive forças burguesas, reformistas e ou burocráticas. Saber se movimentar ao redor das duas contradições fundamentais de nosso tempo é um desafio que deve conduzir os nossos esforços; nossa elaboração e nossa ação. É evidente que toda esta orientação é atual para o Brasil de hoje.


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